Leonardo A. Amorim Indica

Texto: Leonardo A. Amorim*. Foto: Renata Baracho.

Em paralelo ao lançamento temporário de Vamos Ficar Sozinhas nos dias 23, 24 e 25 de Maio, compartilho essa curadoria de filmes alagoanos que me tocaram nesses 4 anos que vivi no audiovisual alagoano.

Além de todos estarem catalogados no Alagoar (quase todos disponíveis on-line), o que esses filmes têm em comum é o impacto que exercem na minha percepção sobre fazer cinema em Alagoas, de que maneira realizadoras e realizadores locais se utilizaram das especificidades de onde vivem, das personagens e contextos que veem e convivem, para realizar um filme que se apropria da linguagem cinematográfica da sua própria forma, que não é só uma história, não é só um tema, não é uma reportagem ou publicidade; é estética, e é cinema.

O Que Lembro, Tenho (dir. Rafhael Barbosa)

Junto com Km 58 foram os dois primeiros filmes alagoanos que assisti, no primeiro ano da faculdade. Engraçado (e meio triste) lembrar hoje que eu decidi trabalhar com cinema desde os 15 anos, mas só com 18 que finalmente vi conscientemente algo da cidade onde eu moro, vi algo que percebi como cinema alagoano. Ele me impressionou na época pela abordagem de fluxo de memórias, e hoje por motivos que se alinham com outros filmes dessa curadoria, como Rua das Árvores, cada um a seu modo. O que ocorre em O Que Lembro, Tenho é a utilização do tempo e da memória como constantes da imagem, que se realoca em um fluxo contínuo entre os espaços vividos no passado e no agora. A memória individual como um abrigo de afeto que não pode ser alcançado por todos, mas podemos nos encontrar coletivamente no fato de cada um ter o seu.

Eu Me Preocupo (dir. Paulo Silver)

Em determinada cena de O Testamento de Orfeu (1960), último longa do diretor francês Jean Cocteau, ele, que atua como protagonista, fala sobre como “o artista sempre pinta seu próprio retrato.” Quando vi essa cena pela primeira vez eu concordei, e a partir disso fui percebendo como alguns artistas se escondem melhor do que outros. No cinema que Paulo Silver desenvolve, enquanto diretor e protagonista, ele se faz cada vez mais visível, cada vez mais frontal em relação não só a própria imagem, mas também nas narrativas que tece, na maneira que se utiliza de sua própria história e daqueles ao seu redor, por exemplo sua mãe. Eu Me Preocupo observa um processo de cura e autoconhecimento da personagem de Jande e do espaço em que ela vive, quando se vê atravessada por sentimentos do passado, e essa torrente emocional afeta a relação com seu filho, seu apartamento, sua imagem; um cinema que lida com as imagens enquanto parte fundamental do desenvolvimento do afeto.

Monstro Que Nada (direção coletiva)

O Ateliê Sesc de Cinema é uma iniciativa bastante importante para o cinema alagoano. Não só pela produção que realiza, mas por introduzir a um grupo diverso de pessoas a atividade do cinema. Em um contexto que não há faculdade de audiovisual, indústria ou incentivos fiscais constantes – que possam ser considerados efetivamente como políticas estabelecidas e consistentes em Alagoas. Dentre os filmes realizados neste projeto, meu favorito é o Monstro Que Nada, que utiliza da linguagem documental, indo de técnicas talking heads com figuras de certa autoridade e relatos cheios de vida, até a utilização de arquivos de noticiários; são ferramentas para validar a ficcionalização de uma situação de descaso do poder público em relação a poluição do Salgadinho. O filme utiliza da ficção e do imaginário popular urbano para gerar uma narrativa inventiva com forte potência criativa e política.

Menina (dir. Amanda Duarte e Maysa Reis)

Filmes universitários tendem a ser carregados de um espírito rebelde, uma vontade de experimentação. Entretanto, o que se sente no filme de Amanda Duarte e Maysa Reis é uma forte segurança, que se dá a partir da coerência da decupagem, a maneira como o fragmento do cotidiano dessa personagem anônima flui. A personagem que por sua jornada não sofre endeusamento ou estigma, cuja constância do silêncio colabora para uma apreensão escorregadia dela, dessa mulher que observa. Ela não está lá para salvar algum aluno, ou descobrir algo sobre si mesma. Ela existe e  faz dos desejos dos outros a matéria prima para a materialização dos seus, atesta o poder de olhar, do olhar.

Papa Sururu (dir. Celso Brandão)

Não é possível pensar o cinema alagoano sem pensar em Celso Brandão, assim como não é possível pensar Alagoas e Maceió sem pensar em água. O documentário observa de forma minuciosa os procedimentos realizados pelos pescadores da lagoa Mundaú para pescar sururu. O filme adota uma postura observacional, sem entrevistá-los ou evidenciar a presença da câmera, o que destaca as ações, os procedimentos utilizados pelas personagens. Isso faz com que as imagens desse processo sejam carregadas pela potência histórica do gesto, do movimento.

Noturna (dir. Nivaldo Vasconcelos)

Boa parte dos filmes alagoanos LGBT tendem a ir por uma linha de violência enquanto elemento validador, buscam se justificar enquanto “filmes importantes” já que lidam com problemas sociais e etc… O filme de Nivaldo Vasconcelos, por outro lado, acompanha um dia na vida da personagem Lorena Barbosa, e faz isso a partir da humanização desse cotidiano; ela descansa deitada em casa, mexe no celular, assiste TV, e vai trabalhar no calçadão. O que me interessa no filme é a maneira com que a confiança da composição das imagens trabalha pra fluir nesse conjunto de ações corriqueiras, que não julga a vida da personagem, não a condena nem a vitimiza. É uma percepção empática sobre o corpo do outro, sobre a subjetividade do outro, que não sacrifica o cinema no processo nem adota um caminho fácil.

Angelita (dir. Jéssica Conceição e Mare Gomes)

Algo muito comum do cinema alagoano é o “filme de personagem”, documentários que acompanham ou abordam personalidades locais específicas, e nesse processo são muito valorizados enquanto documentos históricos, mas Angelita vai além disso. O filme efetiva uma manifestação de transe entre as imagens e o som que atinge seu ápice nos momentos de prática da atividade da benzedeira, em cortes rápidos e closes focando e desfocando nas plantas em sua mão, as roupas que usa, e daqueles que Angelita benze, gerando uma experiência sensorial, mística. É a integração da sua personagem, de sua função, de sua herança, de sua identidade, ao cinema que se realiza, imagens e personagem se tornando uma.

Rua das Árvores (dir. Alice Jardim)

Quando me encontrei com a montadora Nataska Conrado, ela me disse como via a montagem do filme como movimento dos planetas, dos astros. Isso permite uma percepção dúbia, com cosmologia, partindo dos astros, os elementos que se movimentam no espaço, até o conceito filosófico, como um método para encontrar explicações para origem e transformação da natureza, do “espaço”, no caso em específico da Rua das Árvores, tão potente no imaginário de Maceió. Essa obra se torna um marco do cinema local, comumente lembrado e revisitado, por alcançar exatamente o que a linguagem do cinema permite. Cada imagem do filme tanto presente quanto memória, um rasgo no tempo, história vivida e viva.

Os Desejos de Miriam (dir. Nuno Balducci)

Os filmes de Nuno talvez sejam os filmes alagoanos que são mais carregados por uma cinefilia, e eu penso que isso se dá, entre outros motivos, pela segurança com que se apropria de gêneros clássicos nos dois curtas de sua carreira. Em Os Desejos de Miriam, o roteiro idealizado por Ismélia traz uma organização de arquétipos comuns a filmes que focam em uma heroína dona de casa, tão comum ao melodrama. Isso se soma a maneira que a decupagem é pensada, utilizando de planos estáticos até zooms em determinados momentos, assim como suas encenações e a organização dos atores na cena, uma direção que deve seu resultado a fé que tem na ficção.

CorpoStyleDanceMachine (dir. Ulisses Arthur)

As duas ficções recentes de Ulisses Arthur começam com imagens dos rostos de suas protagonistas performando textos líricos-poéticos que elas mesmas escrevem, enquanto esse primeiro filme documentário esconde seu personagem até o último momento. Ao lidar com essa pessoa que existe e que narra a própria história, o trabalho da direção se coloca em uma posição colaborativa junto dessa voz que fala palavras que materializam o corpo e as imagens. O que se inicia com fragmentos de imagem embaçada, distante, vai se desenvolvendo junto a voz em off e as palavras na tela, e materializa-se em um conjunto que demonstra a relação de respeito do diretor pelas suas personagens.

*Leonardo A. Amorim é graduando em Comunicação Social e realizou curtas-metragens de forma independente como diretor, roteirista, montador e produtor: “A Noite Estava Fria” (2017) e “Vamos Ficar Sozinhas” (2019). Para o site Alagoar, já escreveu críticas e realizou coberturas de festivais como o Circuito Penedo de Cinema em 2017 e o 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Desde 2016 mantém presença ativa no audiovisual alagoano como cineasta, curador, mediador e integrante do Mirante Cineclube e do Fórum Setorial do Audiovisual Alagoano.

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