Cine Fialho: Mais pesado é o céu (dir. Petrus Cariry)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

Caso alguém precise definir a palavra catarse, Muito Pesado é o Céu fatalmente é um belo exemplo. O filme dirigido pelo ótimo Petrus Cariry pode ser resumido assim e afirmo isso simplesmente por sentir que cada cena filmada concentra muita emoção em si, como se os dois protagonistas condensassem tudo para explodir de uma única vez ao final. Mérito tanto do roteiro quanto da direção, que em ambos os casos realiza um trabalho de grande artesania, complementado por uma direção de atores de grande precisão e eficiência.

A dupla Matheus Nachtergaele (Antonio) e Ana Luiza Rios (Teresa) é de uma sintonia absurda, um está a amparar o trabalho do outro a todo instante, ambos funcionam como um complemento do outro, como uma parceria profissional única e colaboracionista. Mas o elenco de apoio não fica atrás, Silvia Buarque está maravilhosa como Fátima, a dona de um bar que presta imensa solidariedade ao drama de Antonio e Teresa. Ainda tem Letícia (uma impecável Danny Barbosa), a funcionária do posto que participa dessa rede de apoio, bem mais comum do que imaginamos na nossa realidade cotidiana brasileira. A história desses dois solitários, que no meio do caminho “adotam” um bebê abandonado e estão ao redor de sua cidade submersa pelas águas de uma represa, é tocante, em especial pelo que representam socialmente. São três almas abandonadas pelo vazio de um país sem rumo, imerso em um governo perverso e uma peste (a Covid-19), como diz Antonio em uma de suas falas.

Teresa e Antonio servem de uma parábola sobre o abandono governamental sofrido por todos nós entre 2019 e 2022. A desorientação dos protagonistas reflete a falta de rumo e a tragédia social desse período. Inicialmente, parece que estamos presenciando um típico road movie, mas logo vemos que é mais sobre um território que foi destruído por uma política pública arbitrária, que lançou uma cidade inteira sob o domínio das águas e da ambição. “Um cemitério sem defuntos”, como define magistralmente Teresa em um certo momento do filme, o que condena uma população a uma forma de morte. A cidade de Jaguaribara é um personagem invisível dessa história tão profunda, extraída das entranhas do nosso país.

Mais Pesado é o Céu é um filme profundamente brasileiro, que conecta solidariedade em meio a uma realidade dura, uma vida de provações e sofrimentos. É impressionante a sensibilidade com que Matheus Nachtergaele compõe Antonio, como ele agrega simplicidade, sutileza e expressão corporal com tamanha maestria. As ações de Antonio são críveis, potentes e humanas em diversas dimensões. Ana Luiza Rios (atriz que enfim ganhou um papel compatível com o seu talento) esbanja qualidade interpretativa como Teresa sabendo dosar praticidade e ânsia pelo futuro. Ela é quem mais empurra a história, e a vida de todos à sua volta, para frente. A linha que define Teresa é retilínea, a de Antônio é curvilínea. Ele está sempre perdido e atordoado, mais sendo levado do que impondo as suas vontades e desejos.

Pode-se pensar Mais Pesado é o Céu como um filme que retrata um determinado presente, embora o seu foco esteja numa perspectiva de futuro. A todo instante, ambos os protagonistas estão a projetar as possibilidades postas no amanhã, seja na criação de caranguejos de Antonio na Parnaíba, seja na afirmatividade de Teresa, quando ela captura a criança no barco e se assume de imediato como mãe, mesmo que não tenha o que oferecer materialmente à criança. Os personagens precisam tomar decisões a todo o momento, embora sempre sombreados pelas incertezas que a vida lhes apresenta, assim coragem e covardia estão a permear os descaminhos tanto de Antônio quanto de Teresa.

O filme aborda a volta da fome ao nosso país de uma forma dramática e lírica, pois não é só a denúncia que está posta, mas também as subjetividades dos personagens, suas angústias, sonhos e dúvidas filosóficas, como a linda discussão que Teresa e Antonio têm sobre a existência ou não de vida após a morte. Contudo, é bastante expressivo como Petrus Cariry trabalha a vida material com extrema força narrativa. Antonio para ganhar uma carona, precisa fazer uma inusitada faxina em um caminhão que transporta vacas. Teresa se sujeita a trabalhos humilhantes como prostituta. Antonio sintetiza friamente a situação dizendo “na miséria a gente faz o que tem que fazer”. Em paralelo, ouvimos reincidentemente notícias sobre um homem que está assassinando mulheres, como uma sombra a pairar sobre a história, deixando o filme sempre com um clima pesado, mesmo que Petrus Cariry jamais mostre uma mulher sequer sendo morta por esse assassino. Cada vez que Teresa se joga na estrada em busca de um cliente, esse medo se torna uma presença invisível de grande força espiritual nas personagens.

O mais interessante em Mais Pesado é o Céu é a mise-en-scène que Petrus Cariry propõe ao filmar no limite da austeridade, sem deixar que esta incomode o fluxo da narrativa, que passa lenta como um rio, preservando fluência e ritmo sem jamais cansar o espectador. A câmera move-se pouco, os planos fixos predominam e condenam personagens a uma prisão pelo enquadramento escolhido de modo a valorizar o que cada plano pretende abarcar. Visivelmente, a câmera delimita e condiciona tanto os movimentos dos atores quanto a luz de cada cena, como aliás, bem ao feitio de Petrus em seus outros filmes. Essa mise-en-scène assim proposta, se casa com interpretações quase minimalistas dos protagonistas. Decididamente, Petrus é um cineasta afeito ao controle das cenas e planos. Tudo soa devidamente calculado, desde o diálogo até o som,  muitas vezes recriado pelo desenhista de som Érico Paiva de maneira não diegética para salientar as tensões narrativas. Porém, não se avista momentos de satisfação dos personagens, até o sexo entre Antonio e Teresa parece algo doído, mesmo que seja filmado de forma a ser muito bonito e significativo para a trama.

O que mais surpreende em Mais Pesado é o Céu é o quanto a aridez dos personagens e da câmera não oblitera a poeticidade da obra. Alguns planos são inebriantes pela beleza que sugerem. Petrus cria uma ambiência que beira o fantasmagórico, embora jamais caia nele. A recriação da casa, cuja direção de arte cuidadosamente desenha salas, quartos, banheiro dotados de verdade e sutileza nos detalhes de pauperismo da vida desse quase casal. Algumas cenas me marcaram por salientar um jogo de luz, com um primeiro plano imerso no escuro enquanto vemos uma luz suave e amarelada vindo pelo fundo. São contradições expressas com vigor pela imagem. Petrus (aqui também diretor de fotografia) filma muitas cenas com os protagonistas divididos no quadro, um na esquerda outro na direita, ou os filma divididos por duas portas, afinal, esse é um mundo dividido e pouco propenso ao ajuntamento. O diretor cuida para não fazer closes, a maioria dos planos são próximos, médios ou de conjunto. Os planos gerais são belíssimos e ajudam a situar a aridez do território nordestino que é central na história.

Já indiquei a existência de cenas duras, tendo a fome como elemento central da narrativa. Indiquei também os planos mais poéticos, que levam o filme para reflexões pertinentes. E ainda sinalizei a qualidade das interpretações, além das cenas requintadas da luz, da cenografia e do som. É de fundamental importância que vejamos todos esses pontos sublinhados como complementares, como fomentadores do momento catártico que ocorrerá no final de Mais Pesado é o Céu, cuja frase principal é uma pergunta desesperada de Antonio: “o que a gente fez com a gente”? Essa reflexão se relaciona diretamente com tudo de invisível que a trama sugere, desde a cidade alagada até o assassino que ninguém vê até a última sequência. Assim, o filme vive nesse conflito entre o que vemos e o que não vemos, mas que de certa maneira nos oprime como espectadores. Saímos do cinema com o coração na mão. Quanto as incertezas serão as mesmas do início ou ficamos com alguma réstia de esperança?

O que sei é que o bebê se torna um ponto de fuga fundamental para alguns personagens que perfilam a trama do filme. Como diz Antonio, ele é o anjo, o arcanjo Miguel a iluminar aquelas vidas miseráveis e sem muitas esperanças. De ser desprezado e sem nome inicialmente, Miguel é o coadjuvante de hoje, embora predestinado a ser o protagonista do amanhã. Essa é a força de Mais Pesado é o Céu, a de fincar um pé esperançoso no porvir. O simbolismo do céu é outro aspecto a ser pensado. O céu estará lá a cobrir a todos os que sobreviverem a essa jornada de misérias e solidões. Nele está contida a grande pergunta que o filme deixa. O céu é o espaço abstrato e único a nos indagar implacavelmente, pois ele é tão certo e indefectível quanto a morte. Quando morrermos iremos para lá? Ao que parece, Petrus prefere a dúvida do porvir às certezas da infelicidade do agora.

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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