“O Peixe”, de Jonathas Andrade, abre competição de Brasília com homenagem ao homem alagoano  

Texto: Rafhael Barbosa*. Revisão: Aline Silva.
 Imagens: Cobertura 50º Festival de Brasília do Cinema  Brasileiro
*O repórter viajou a convite do festival

A mostra competitiva do 50º Festival de Brasília do Cinema  Brasileiro teve início na noite de ontem (16) de um jeito bem alagoano. Candidata ao troféu candango de melhor curta-metragem, a produção pernambucana  “O Peixe”, de Jonathas Andrade, levou à tela do Cine Brasília um passeio por paisagens litorâneas das cidades alagoanas de Piaçabuçu e Coruripe.

O filme parte de uma estratégia inusitada. Jonathas, um artista visual nascido em Maceió e radicado em Recife, filma pescadores das duas cidades em seus processos de trabalho. A narrativa tem início com uma linguagem que remete ao cinema documental etnográfico, observando com certo distanciamento o ritual solitário destes homens, em sua maioria de pele negra e corpos esculpidos pelo ofício, embrenhados entre o mangue e o rio como parte natural daquela paisagem.

As belíssimas imagens registradas em 16mm pelo fotógrafo Pedro Urano são potencializadas pelo plano sonoro. Dispensando diálogos, depoimentos e trilha sonora, ele é composto pelos sons do  movimento da água, dos barcos e do contato entre o homem e o peixe.

Esta relação, enfim, é o coração do filme. Quando finalmente o animal é retirado da água, surge uma nova dimensão na obra, expondo sua maior força, que é a mise-en-scène. Assistimos a pescadores durante um profundo ato de afeto e conexão com o peixe. Em planos sequências longos, Jonathas dilata o tempo para permitir a imersão completa do espectador naquela experiência.  O homem abraça o peixe contra o peito, acaricia suas escamas, escuta sua respiração.

Porém aquele também é um ato de morte. O animal é mostrado  durante o processo de asfixia e agoniza fora da água.

Utilizando uma linguagem que poderia ser chamada de etnoficção, o curta-metragem provoca uma série de significados em sintonia com questões muito atuais.

Obviamente o debate ambiental sobressalta. No entanto, a potência do discurso de “O Peixe” evoca também reflexões que vão além da relação entre espécies dentro do contexto da “violência e dominação”. Poucas vezes no cinema o ato da pesca foi mostrado com igual sensibilidade e poesia, tornando “O Peixe” um retrato extremamente humano dessa categoria.

Coincidentemente exibido no dia em que Alagoas completa 200 anos de emancipação política da capitania de pernambuco, o filme também produz  outros sentidos especiais. Faz uma tocante homenagem ao homem alagoano do ponto de vista de um artista (entre tantos outros) que viveu a diáspora em busca  de êxito profissional, mas retorna para retratar seu lugar de origem. Uma história cíclica.   

Jonathas, diretor de “O Peixe”, durante o debate sobre o curta. Foto: Junior Aragão

EBULIÇÃO POLÍTICA

Com direção artística de Eduardo Valente, esta edição comemorativa dos 50 anos do mais importante festival do cinema nacional anaboliza o tom político que sempre foi uma característica da competição. De pronto, a seleção de filmes do primeiro dia já prenuncia o tom do que será visto durante a semana. Filmes de forte apelo social e discursos em sintonia com as questões contemporâneas.

Saindo das comunidades tradicionais alagoanas em “O Peixe” chegamos ao cenário urbano de uma metrópole brasileira com o curta mineiro “Nada” dirigido por Gabriel Martins. Se no filme anterior a chave estava na mise-en-scène, em “Nada” o personagem está no centro. A narrativa segue o conflito de Bia,  uma adolescente negra de 18 anos, de classe média baixa, que é pressionada por todos os lados para escolher uma profissão e se inscrever na prova do Enem.

Sua resposta a tudo isso é categórica: ela não quer fazer nada, nem mesmo cursar música e seguir a tendência natural por seu talento artístico. O momento de seu cotidiano em que ela encontra prazer é quando, sozinha em seu quarto, reflete sobre a vida compondo letras de rap.   

Utilizando o humor e ótimos diálogos, “Nada” articula muito bem a relação de Bia com os demais personagens, seja uma amiga com angústias em comum, os pais ou professores. Nenhum sinal de maniqueísmo por perto. Todos são humanos e, a seu modo, contraditórios. A exceção fica por conta do (delicioso) tom absurdo na construção da diretora pedagógica interpretada por Karine Teles.        

O curta evidencia um amadurecimento no trabalho de Gabriel, um jovem realizador que tem se destacado por filmes como “Contagem” (2010) e “Dona Sônia Pediu uma Arma a seu Vizinho Alcides” (2011). O roteiro costura a jornada de Bia com precisão e elegância. Um filme divertido e sensível, que sobe a expectativa para a estreia de Gabriel no longa-metragem. 

Encerrando a competitiva de curtas no primeiro dia, o paulista “Peripatético”, de Jéssica Queiroz, acompanha um grupo de jovens moradores da periferia de São Paulo lidando com os problemas comuns à idade e ao contexto social. Eles estão em busca de emprego e em dúvida sobre qual profissão abraçar, enquanto sofrem os efeitos do preconceito e da violência. Sobram boas intenções, mas o registro é prejudicado pela ingenuidade do discurso e pela indefinição da linguagem.

“Nada”, dirigido por Gabriel Martins. Foto: Diógo Lisboa

LONGAS

E finalmente chegamos a mostra competitiva de longas, cuja abertura ficou a cargo de “Música Para Quando as Luzes se Apagam”, do gaúcho Ismael Caneppele. O filme é a  estreia de Caneppele na direção de cinema. Seu trabalho como escritor é conhecido do público  por “Os Famosos e os Duendes da Morte”, texto vertido para o cinema pelo cineasta paulista Esmir Filho.

Música” traz algo do tecido de “Duendes” na busca por retratar o universo juvenil em meio ao contraste entre a tradição e modernidade gaúcha. Mas as semelhanças param por aqui. Ismael Caneppele envereda por uma radicalização poética que deixa quase completamente de lado o eixo da narrativa clássica.

A protagonista e personagem real, Emelyn, é uma adolescente transsexual que vive na cidade de Lajeado, no Rio Grande do Sul. Para entrar na vida da jovem,  o filme mistura registros amadores produzidos pelos próprios personagens com sequências deslumbrantes captadas pelo diretor de fotografia. No debate realizado na manhã deste domingo (17), Caneppele contou que o longa foi rodado durante 13 meses, gerando algo em torno de 300 horas de material.      

As fronteiras entre real e ficção nunca ficam muito claras. E não que isso tenha muita importância. O que faz de “Música” uma obra singular é sua disposição performática, que busca sempre o efeito sensorial para se relacionar profundamente com o espectador. A maioria das cenas não está lá para tocar uma história adiante. São pulsões independentes umas das outras, conectadas pela forte presença de Emelyn.

Júlia Lemmertz interpreta a si mesma no filme, se aproximando da jovem para realizar uma pesquisa de personagem. O ponto de vista da atriz, que também filma diversas sequências, acrescenta mais uma camada ao complexo processo narrativo.    

Produção e elenco do longa “Música Para Quando as Luzes se Apagam“. Foto: Junior Aragão

“Música Para Quando as Luzes se Apagam” é um daqueles filmes que exigem entrega total do espectador e segue com ele para casa após a exibição. Pode se falar muito sobre ele, menos que lhe falte coragem.

O gigantismo do festival, que apresenta uma programação enorme e simultânea em 11 locais de Brasília, tem seu charme mas também tem seu preço. Um atraso na já extensa mostra competitiva acabou por prejudicar a exibição do longa ‘Vazante’, de Daniela Thomas. Devido ao horário avançado da sessão, o Alagoar preferiu não apresentar uma análise do filme nesta cobertura. Estaremos atentos ao ele em sua estreia no circuito.

Amanhã nossa cobertura contínua. Acompanhe por aqui.

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