Texto: Bruno Malta. Revisão: Chico Torres.
O que se consegue dizer na noite fria
Em determinado momento do curta-metragem A noite estava fria, de Leonardo Amaral, o protagonista manifesta diante de uma TV três índices do tédio: aperta os botões do controle sem paciência pra mudar de canal, desvia o olhar da TV pra se entregar aos sinais que seu celular emite, pois podia ser de sua paixão; e, por fim, cochila, enquanto, num dos canais da TV passa o filme Lost in Translation (Encontros e desencontros), de Sofia Coppola, aliás sua ultima cena, aquela em que o personagem de Bob Harris (Bill Murray) sai do carro em meio a uma rua movimentada porque vê Charlotte (Scarlett Johansson). Em A noite estava fria, não passa o trecho em que Bob abraça Charlotte, enquanto sussurra ao pé de seu ouvido algo indistinguível para o espectador, tão interior que só aos dois pertence. E é exatamente isso o que preenche o trabalho de Leonardo Amaral.
No curta, os diálogos vivem na tensão entre o ruído e o som que não se alcança com palavras; o verbo é interiorizado pelos sentimentos latentes e exteriorizado como ruídos do espaço; a diferença é que nos dois personagens do filme os diálogos não estão moldados pelo carinho pungentemente melancólico, como em Lost in Translation, mas pela percepção de que o que se diz parece voltar pra si mesmo, caindo na interface abismal da abertura que servira pra estruturar as palavras ditas com intenção de comunicabilidade.
Muito de A noite estava fria descasca-se a partir de redundâncias aparentes. Explico: enquanto o que ama está deitado, o que é amado está de pé, no mesmo plano; enquanto o que ama surge sem reflexo no espelho, o que é amado surge apenas no reflexo; enquanto, já na parte final, o que ama se vê, no apartamento, só, relembra detalhes com o outro que elevara suas emoções. O que faz com que tais artifícios não sejam redundantes é porque, em sequência, eles formam uma sutileza gradual na verdade da narração, isto é, quando o que ama está deitado e o que é amado em pé, há uma quebra, mas ainda estão no mesmo plano; quando o que ama vê o que é amado, mas ele não surge no mesmo plano e ainda se insere no reflexo, a distancia já se tornou maior; e quando o que ama relembra aquele que se foi, nada de material lhe resta e o que está lhe pertencendo é apenas o esfumaçado.
Essas duas metáforas e o artificio do flashback contam assim aquilo que sabemos inevitável: o caminho até o ponto final da relação. E a linguagem corporal dos dois corpos na cama, seus ruídos que anseiam ser palavras e o claro contraste entre o interesse de um e a impassibilidade do outro já não contam a mesma coisa, pois narra o que sabemos inconciliável: a ausência de envolvimento ante a necessidade de migalhas emocionais. Tem-se, portanto, duas camadas que se juntam para que o curta exiba a causa ao mesmo tempo que costura a consequência da relação afetiva. Um tipo de tessitura dramática que é um sinal de adição ao audiovisual alagoano, como um chamado – de dentro pra fora; em alto e bom som.
Crítica belíssima! Você capta os instantes e gestos do filme articulado pela experiência de estar em frente da tela de forma que eu (que ainda não assisti o filme) me sinto transportado para a sala de cinema. Espero que venham mais. Parabéns.