Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Texto: Leonardo Amaral. Edição: Larissa Lisboa.
Logo após o debate dos filmes Plano Controle (dir. Juliana Antunes), Guaxuma (dir. Nara Normande) e A Sombra do Pai (que você pode encontrar a entrevista com Gabriela Amaral aqui e logo mais com Julio) nos encontramos com Cris Azzi, que também esteve no debate. Antes mesmo de almoçar já subimos para a cobertura que estava vazia e sofria com o sol das 12:00. Ficamos em uma mesa de madeira em uma das quinas, Cris aproveitou o ar livre e pôs um cigarro em sua boca. Aprontamos tudo para o que seria o primeiro encontro desse projeto de entrevistas no 51º Festival de Brasília.
Leonardo Amaral: Como foi sua adolescência?
Cris Azzi: Cara, minha adolescência é dividida em duas, na verdade. A primeira parte vai até a morte do meu pai. É… E até esse momento, eu era um menino de uma classe média que eu diria baixa, meu pai trabalhava em banco e aposentou por invalidez, então assim, tinha um mínimo garantido, mas era um mínimo bem mínimo, assim… Minha mãe chegou a entrar na faculdade e saiu pra cuidar da gente, então era ali uma condição… assim, comparado com Brasil, muito boa, mas era na verdade ali na conta do chá. Só que meu pai tinha uma coisa que era: eu tinha que estudar em uma escola boa. Então ele foi e super batalhou isso pra mim e minha irmã. Ia nas escolas, pedia bolsa, então eu estudei em uma escola de uma classe social acima da minha… um pouco parecido com a Luana.
LA: É, eu tô percebendo
CA: Foi por isso que isso existe no filme, ninguém nunca me perguntou isso até hoje. Todo mundo faz as mesmas perguntas, você já fez uma pergunta diferente.
[Cris ri e bate o cigarro no cinzeiro.]
CA: Foi daí que isso acabou indo pro roteiro. E aí de alguma forma eu não conseguia compreender e ter a dimensão de uma grandeza do gesto dele. Tinha mais uma revolta porque meu tênis era fudido pra caralho perto do tênis dos moleques, entendeu? Então tinha uma certa rebeldia. E meu pai ainda assim, apesar dos atritos, era um ídolo e eu tinha um certo distanciamento com a minha mãe; não de afeto, mas de comunicação. De alguma forma na própria escola eu tinha um certo papel de liderança, fundei grêmio estudantil, ia pra rua, manifestação, pixava prédio, essas coisas né? Aí meu pai fica doente e a relação muda, antes dele morrer a relação muda, essa coisa dos valores – eu tenho um choque desses valores todos. Ele ficou um tempo doente, não foi uma morte repentina… teve esse período que foi de muito afeto entre eu e ele, de aproximação. Eu me lembro de ir pro – estudava de manhã – de ir pro hospital, dormir numa cadeira com ele, todas as noites, aí de manhã saía, pegava e tomava banho no hospital, pegava um ônibus, ia pra escola e voltava pra lá; tive um processo de despedida dele muito grande. E a segunda fase (da adolescência) já é uma fase de cair a ficha que eu não ia ter mais pai, que não ia ter porto seguro, de aproximação com a minha mãe, que até então tinha essa zona confortável do “meu pai, meu herói”, e aí com a minha mãe, a gente tinha umas certas barreiras que tivemos que desconstruir, mas a gente tem uma relação ótima até hoje. E também ter que me virar. Começar a me virar pra dar conta porque a conta da casa não fechava mais, né?
LA: Tô ligado.
CA: E aí essa segunda parte já é a tomada desse lugar ainda de muitas dúvidas, questões, mas com essa necessidade de tipo… além de estudar fazer algum dinheiro, porque a bolsa não era completa, minha vó fez vaquinha pra completar o final do curso do ensino médio tanto meu quanto da minha irmã, ela já tava praticamente formada, comecei a trampar também aí foi assim, resumidamente. Foi boa a pergunta, ninguém nunca perguntou de onde veio isso.
LA: É interessante você falar dessa diferença porque já é um choque na primeira vez que a gente vai na casa da Emília. A casa dela é em um morro, tem uma opulência, tem uma piscina…
CA: Uma piscina dentro de casa.
LA: Dentro de casa! Ao mesmo tempo eu não senti na Luna um incomodo em relação a isso, né?
CA: Em estar nesse lugar mesmo. Pra mim o que tá por trás é que a Luana já está estudando lá há um tempo, ela já atravessou esse lugar, né, com os outros alunos dessa escola também. Acho que poderia ter sido uma cena bonita. Mas como foi construída, já que é a Emília que chega na escola, a Luna já tinha… talvez eu tenha feito a partir do meu inconsciente mesmo, porque eu ia nas casas dos colegas e PÁ! Eram umas casas bonitaças e de início tinha impacto pra só depois ser menor.
LA: Achei interessante também a maneira que a dinâmica de câmeras entre os espaços se altera bastante. Enquanto na casa de Luna tem câmeras estáticas, na de Emília é uma que corre por elas, segue, takes longos, por que você escolheu desenvolver essa pegada?
(Cris apaga o cigarro e fala de forma humorosa.)
CA: Eu vou ter que ser sincero, não sei se vocês viram o debate, eu sou sincero demais: eu não lembro exatamente. Essa mudança de comportamento da câmera é muito clara, mas retomar o motivo dessa gramática eu realmente não lembro. Foi algo muito discutido. O filme não tem aleatoriedade de “bonito” ou “feio” nessas escolhas, elas tinham o caminho, talvez até o final da conversa eu vou aqui por dentro tentando lembrar e perceba o motivo que a gente construiu essa gramática.
LA: Claro. A Luna (Eduarda Fernandes), na verdade todo o elenco, mas até conversando com outras pessoas que viram o filme, a gente percebe que a Eduarda tem um… ela é incrível. A atuação, tem uma presença muito forte de tela. Eu só vi ela uma vez ou outra pelo festival, tive chance de trocar algumas palavras, mas nada mais aprofundado (mais tarde nesse mesmo dia conseguimos uma entrevista com a dupla de atrizes de Luna que em breve disponibilizaremos). Como foi esse processo de vocês?
CA: Pô, ela é uma descoberta preciosa. Eu olho pra ela no filme e falo, nossa… não sei o que vai acontecer com a minha vida, as próximas coisas que vou fazer, mas eu sinto que tive a honra de fazer o primeiro filme da Eduarda. De dividir com ela esse momento tão especial. De ser a primeira pessoa que tenha efetivamente apostado, claro que com a sorte de caber na personagem. Ela é uma figura muito… ela consegue ter duas coisas que são incríveis pra ator e atriz. Ela é obstinada pelo que ela faz, apesar da pouca idade, então ela não aceita não ir no máximo da profundidade e da tentativa e ao mesmo tempo ela se coloca no filme em uma abertura pro sensível. No meu primeiro processo, eu fiz a preparação de elenco, eu sentia que ela era muito forte e muito consciente em cena, porque eu escolhi ela só a partir de improvisação, ela era muito consciente. Mas pro filme, pra Luana, a gente ia precisar acessar o sensível. E aí o processo de preparação foi muito nesse lugar. Como ela falou no debate: achar os dispositivos que a gente ia levar pro set, porque o set é esse lugar, que até no debate agora o Julio falou de como o set é um lugar opressor pro ator no geral. Como você leva alguém a acessar um lugar se você não tá em um fluxo contínuo como é no teatro. E aí a gente trabalhou nesse lugar. Ela se colocou muito disponível no processo. Meu papel era de ajudar ela a encontrar esses mecanismos, esses dispositivos, porque essa potência já tava com ela, desde a primeira improvisação. Eu já vi que tinha uma coisa diferente de uma consciência do próprio corpo de como se colocar no mundo, de como é muito distinto em função da idade. Eu trabalhei em muitos filmes como assistente de direção, como diretor e etc e tal. Tenho uma carreira de 20 anos apesar de ser estreante em ficção dentro do audiovisual. E eu também vou dizer uma coisa que não disse pra ninguém: eu nunca vi alguém com a capacidade cênica dela.
LA: Porra.
CA: E eu vou falar assim: posso listar pra você – não vou listar porque né – grandes atores que eu trabalhei e convivi que eu não só vi nos filmes como vi os processos; nunca vi nada parecido. Pra mim é isso, me sinto muito honrado de ter participado dessa troca e certamente dessa troca também ter contribuído. Se não fosse eu, claro, eu tenho consciência, sem falsa modéstia, da importância que foi o processo desses dois meses pra gente construir a Luana. Mas eu digo que o caminho da Eduarda é inevitável. Poderia ser de outra forma ou demorar mais tempo, mas ela tem um brilho próprio que é absurdo.
LA: Entendi. Cê citou agora sobre sua carreira que é bem extensa. Por que você decidiu se aventurar nesse longa de ficção?
CA: Eu fiz comunicação, não tinha cinema em Belo Horizonte na época que fui pra universidade e acabei passando muito tempo dentro do laboratório de audiovisual. Praticamente passava de manhã, de tarde e de noite no laboratório, matava muita aula pra ir pro laboratório, virei monitor do laboratório. Então assim, eu ia nas aulas mas ficava lá dentro (no laboratório). Era uma transição de ilhas lineares pra não linares. Peguei uma transição, que não é igual a moviola, mas é uma transição muito forte. E essa experiência lá dentro foi me aproximando da vontade de começar a fazer coisas. Fiz uma série de pequenos vídeos que tão mais próximos de uma tradição muito forte de Minas que é a vídeo arte, mas que eu nunca exibi assim, são coisas desse momento de estudo e de descoberta. E aí tive uma super sorte porque além disso, como eu falei esse negócio de ter que pagar contas, eu produzi umas festas bem malucas na universidade. E aí deu certo, outros cursos me chamavam pra fazer, fiz festa pra colégio; era o jeito que eu tinha pra ganhar uma grana.
Em uma dessas festas eu conheci uma pessoa que me levou pra trabalhar em um clipe, e logo em seguida ela foi trabalhar em um filme no Rio e me levou. Eu era assistente do assistente do assistente de produção. Foi assim que começou esse caminho. Durante muito tempo eu fui trabalhar com cinema em várias funções – limpei muito cocô de cavalo em cena de cavalo pelo cinema brasileiro. Servi muito café. Ainda numa época que o cinema brasileiro tinha uma ordem hierárquica muito diferente do que eu vejo hoje. Ainda tem resquícios disso, mas felizmente isso mudou bastante. Dentro desse processo eu comecei a desenvolver minhas histórias. Eu fazia trampo em longa e ganhava um bom dinheiro, ia em BH e fazia alguma experiência com o dinheiro que tinha ganho e depois voltava pra fazer outro longa, fui navegando por esses lugares. O primeiro filme efetivamente que eu fiz foi O Sumidouro, que é um filme que eu tenho muito orgulho e não tá disponível em lugar nenhum porque a matriz dele é em DV 720×480 então tem que achar depois um jeito de ampliar. Fiquei 6 anos acompanhando duas comunidades que iam ser inundadas. Passou no “É Tudo Verdade” e outros festivais, correu alguns lugares no mundo. Logo em seguida esse mesmo produtor que me convidou no início me chama pra um projeto entre amigos que era fazer um filme de ficção de episódios, que se chama 5 Frações de Uma Quase História. Foi lançado em 2007 ou 2008. Também teve uma carreira relativamente boa em festivais, não tão grande mas passou no Rio e Tiradentes; ganhou muitos prêmios no “Cine-PE” quando ele tinha um outro perfil do que tem hoje. Passou em Miami, correu alguns festivais brasileiros pelo mundo. Mas era um filme episódico que tem suas potências, mas também tem suas dificuldades pela natureza do processo e nossas imaturidades. Aí fui me aproximando da assistência de direção, fiz muitos filmes como assistente de direção. As vezes um filme que tinha feito tava no festival, como tá aqui (em Brasilia) e eu nunca ia porque tava trampando em outro filme. O que acontece é que, acho que falei isso no debate, a medida que eu fui fazendo os filmes nas minhas experiências, sempre achei que as ficções tavam muito distantes da potência do documentário. Eu sentia que eu tava carregando essa obrigação prática de tantos anos trabalhando no cinema pra outras pessoas e tendo que lidar com essas interlocuções, eu tava levando isso pro meu cinema.
Janderson Felipe: Queria perguntar sobre Minas, o cinema de Minas, que tá muito presente com vários realizadores, como a própria Juliana (Antunes) que tava no debate, a galera da Filmes de Plástico, Marília Rocha, então queria saber como você vê esse momento do cinema e qual o seu local nesse cinema.
CA: O meu lugar é engraçado. Eu tenho maior admiração por essa geração e acho que ela é bem distinta. A gente tem lá atrás duas referências muitos fortes ligadas com um cinema de artes plásticas que é o Cao Guimarães e o Eder Santos, que acho que são importantes pra toda essa geração apesar de não necessariamente – ninguém estar fazendo referências. Eram figuras que faziam coisas que a gente admirava. E aí tem uma coisa que acho fundamental que é essa transição da minha geração, que é a Mini DV né, cara? A camerinha com cabinho ligado no computador, isso mudou uma geração. Os meninos da Teia, que nem sei se tem mais o nome da Teia, mas tinha; Sérgio Borges, que ganhou Brasília com meu filme preferido de Minas Gerais dessa geração, que é o Céu Sobre os Ombros; a própria Marília que vocês citaram, Clarissa Compolina. Uma geração que teve a possibilidade de dar essa experimentada com o cinema que era uma coisa inalcançável. Acho que isso colocou uma geração toda pra realizar. Eu acho a chegada dos meninos do Filmes de Plástico super importante porque eu acho que eles trazem uma coragem de fazer uma dramaturgia, que até então essa geração anterior a deles tava muito impregnada pela questão da vídeo arte e poesia, e eu não tô fazendo juízo de valor sobre isso, tô dizendo só que a chegada dos meninos principalmente oxigena essa ideia do cinema capaz de comunicar com um público maior. É claro que os meninos tem uma repercussão ótima em festivais, mas eu vejo nos filmes dele muita possibilidade de chegar no público mesmo, sabe? E isso não deprecia o filme em nada. E dentro desse lugar meu caminho é muito confuso. Porque eu viajava muito pra trampo de cinema então não criei exatamente uma identidade, e tem uma coisa que meus filmes são muito diferentes, não faço uma coisa estratégica “vou fazer uma trilogia sobre isso aqui”, porque eu mudo direto. Então, caí nesse negócio do Sumidouro porque vi umas fotos de um amigo que tava registrando esse lugar que ia desaparecer e pensei que precisava filmar essa coisa.
[O celular esquentou tanto que parou de gravar enquanto conversávamos e só percebemos no final enquanto nos despedíamos. Felizmente lembramos das perguntas e Cris foi carinhoso o suficiente para nos enviar por áudio de WhatApp as respostas para todas, que estão postas a seguir.]
LA: O tema e cenas de suicídio tendem a não ser tratados de forma eticamente aceitáveis, como você lidou com a cena de Luna? Eu percebi uma certa sensibilidade que não me fez ter problema com a cena?
CA: As premissas das escolhas que realizei em relação a esse tema tão importante e tão tabu partiram de uma ideia de possibilidade que a nuvem negra dos problemas pudesse ser dissipada, que a gente pudesse contar de alguma forma essa possibilidade. De sobreviver a esse desejo, esse impulso. E as cenas, a forma de retratar esse lugar, esse delírio, esse momento de distanciamento da realidade foi construído a partir das experiências de coisas que não foram escritas a partir de uma motivação externa. Elas vieram do próprio processo de preparação do filme. Por exemplo, a questão da mãe e da filha na laje vem de um processo de regressão durante os ensaios pra conectar as duas atrizes e isso acaba borrando no filme pra questão do inconsciente da Luana, assim como as outras sequências, a relação com a floresta e seu sagrado… é nesse lugar que se constrói esse trajeto, mas que reafirmo: fundamentalmente a partir da premissa de um lugar onde a nuvem negra pode se dissolver. Era a ideia principal e se a gente pensar que a gente tem quase 800.000 suicídios por ano no mundo tem um peso nessas escolhas e um desafio ético, sim, mas especialmente a gente poder falar sobre isso, se expressar sobre isso, porque na minha humilde concepção essa ideia de silenciamento em relação a isso não deu certo, os números só crescem.
LA: Como a experiência com documentário alterou a forma que você lidou com o filme? E eticamente, já que é nos documentários que se preocupam mais com esse aspecto.
CA: Do ponto de vista ético eu acho que o exercício de fazer um filme já é um exercício ético pela sua própria natureza, então certamente essas questões são atravessadas de forma a convidar a se debruçar sobre dilemas, como você lida com os temas, mas mais do que com os temas, ao próprio universo que está retratando e mais que isso, com as próprias pessoas que você tá construindo o filme, né? Principalmente nesse lugar de uma ficção que bebe e atravessa questões ligadas ao nosso cotidiano, a um certo realismo ainda que o filme tenha suas características fabulares. O documentário tem uma presença importante na minha vida. Eu fiz dois filmes documentários: Sumidouro e O Dia do Galo e sentia neles uma potência que nas minhas ficções eu não tinha encontrado. Essa potência parte de muitos lugares, mas eu acho que muito da minha relação com muitos anos sendo assistente de direção e tendo que lidar como uma ponte entre o artístico e o prático, que de alguma maneira pode ter me atrapalhado nos processos. E dos filmes de ficção que eu tinha feito até então. De certa forma havia realmente uma busca pra ter menos certezas nesse filme, pra estar mais aberto ao improviso e ao acaso, a troca, sair de um lugar de uma autorialidade mais hierárquica e poder trocar com elenco e departamentos do filme, pessoas que tavam ali dispostas a fazer o filme junto! E do documentário vem esse espirito né? Esse espírito de troca que o documentário permite e que certamente foi importante na maneira que o Luna foi realizado.
Nos cumprimentamos no final da entrevista sofrendo com o sol, mas bastante felizes com o resultado. Nos despedimos de Cris, um cineasta apaixonado e receptivo, e partimos para as próximas entrevistas de Brasília.
Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.
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