Série: Encontros em Brasilia – Pedro Maia de Brito (Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados)

Pedro Maia de Brito na varanda do B Hotel, no 51º Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro.
Entrevista: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Texto: Janderson Felipe. Edição: Larissa Lisboa.

Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.

Pedro se senta na mesa do bar da varanda do B Hotel, segurando um livro que estava lendo, a obra é “Peões visto por” parte da coleção Cinema em Livro, da série “Coutinho visto por”, que traz discussões entre as Ciências Sociais e o documentário, através das obras do histórico cineasta brasileiro.

Leonardo Amaral: Esse livro é do… olha só… Coutinho?

Pedro Maia Brito: São ensaios sobre “Peões” do Coutinho.

Janderson Felipe: É de quem?

PMB: Cada filme tem 2 pessoas.

JF: Ah! É daquela coleção que fizeram sobre os filmes dele né?

PMB: É, são alguns filmes dele.

JF: Eu sou doido pra encontrar essa coleção em Maceió, mas só pela internet mesmo.

PMB: Foi, eu comprei, tava no Rio nesse final de semana, aí eu comprei lá na livraria. Esse e o de “Jogo de Cena”.

LA: Coutinho é uma referência muito grande pra você?

PMB: Sem duvida né? A maior de todas.

Pedro pergunta se já tá valendo, e pede pra olhar o cardápio do bar pra pedir uma água antes de começar a entrevista.

Janderson Felipe: O filme (Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados) de vocês é produção Pernambuco e Minas Gerais, como foi que se deu a conexão entre os dois estados?

Pedro Maia de Brito: Na verdade é o segundo filme nosso, eu e Aiano (Bemfica) a gente fez junto Na missão com Kadu em 2015 e lançamos em 2016, e tinha sido feito mais ou menos nessa dinâmica filmado lá (MG), mas finalizado em Pernambuco, e o mesmo aconteceu nesse, como vocês sabem ele foi filmado nesse arco de tempo (2015-2017) junto ao Movimento de Luta nos Bairro, Vilas e Favelas (MLB). E ano passado, no começo do ano, primeiro semestre ainda, fui para Belo Horizonte, por razões diversas, inclusive a de fazer a pesquisa para o filme. Eu e Aiano estamos agora filmando um longa, estou passando esse semestre todo em Belo Horizonte pra etapa de pesquisa e começar a produção, e então já na etapa inicial de pesquisa pra esse longa a gente se reuniu pra assistir todo o material audiovisual, vídeo, áudio, fotografias de 2012 até o presente relacionado ao MLB, nesse processo a gente chamou outras pessoas, pessoas do movimento, que colaboram com o movimento, sobretudo na comissão de comunicação, portanto pessoas, que fazem parte desse processo de registro e contribuem pra essas múltiplas funções que a imagem pode atingir. Então nessa minha ida, a gente se juntou, eu passei um mês e meio, assistiu todo o material, catalogou, fez uma série de questões e já havia uma ideia de se fazer um curta-metragem que desse conta da sensação e não da história. Foi aí que ele surgiu, e voltei pra Recife com esse material, e passei o resto do ano montando ele, como não tinha tempo e nem dinheiro, uma brechinha de tempo ia articulando isso, então ele foi montado por mim e por Bersa Mendes, lá (PE) ele participou de uma etapa da montagem, e depois foi finalizado, todo o seu áudio feito por Nicolau Domingues, também de Pernambuco, e toda produção aconteceu lá, é uma parceria que se estende, a gente tá filmando em Belo Horizonte, uma parte com recurso federal, outra parte com recurso pernambucano, mas pra voltar lá, a gente mistura a mão de obra dos dois estados.

Leonardo Amaral: Massa, e é interessante que são 4 diretores (Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito), foi até discutido no debate como que vocês lidam com a construção do discurso no filme, mas ter uma pluralidade de diretores entra em conflito até com uma ideia de mostras e festivais que é a do autor né? O cinema se validando a partir de um autor, a obra de arte a partir de um autor, como que você encara essa ideia do cinema autoral, essa coisa mais individual?

PMB: Acho que essa noção de cinema de autor, ela inclusive é proposta por Godard e depois disso proposto, a ideia no mundo e a ideia comprada, ele faz um comentário que acho que define bem essa noção, ele vai falar que “diante da noção de política de autor as pessoas deram atenção demasiada aos autores e pouco a política”, então não é uma negação de cinema de autor ou uma afirmação sobre a política, mas acho que não há uma dissociação, que a gente tá filmando junto do movimento social, debatendo possibilidades junto como o movimento social, metade das 4 pessoas, duas são colaboradoras, eu e Cris, e duas fazem efetivamente parte do movimento, são Camila e Aiano, então as decisões do filme que vão determinar em alguma medida suas nuances estéticas elas passam por questões políticas, elas passam por necessidades políticas do movimento social, então nesse caso acho que a autoria não chega a se diluir, porque nós propomos, mas ela é extremamente determinada por essas noções que são conjuntas, que são coletivas, que são do movimento social. No nosso caso a gente discute e debate bastante, e também a gente se divide muito na possibilidade de escolher, de decidir, tu cuida disso, tu cuida disso, tu cuida disso, e no fim a gente volta com as propostas, resultados e ver se realmente encaminha ou não, então houve um processo de debate intenso desde esse primeiro momento de pesquisa de um mês e meio em Belo Horizonte, assistindo todo o material, e tomando decisões, sobre decidir fazer o filme a partir de um recorte que seja da noite, que seja apenas da entrada no terreno, que seja um filme que gera sensações, que seja um filme de tensão, que seja um filme climático, que seja um filme afirmativo, que o final dele seja algo que busque esse horizonte e que não se apegue as dificuldades que sempre existem no presente e todas essas decisões passaram por muita conversa, muito debate, então termina que todo o processo de conversa encaminha o filme esteticamente, fazendo com que ele tenha uma autoria efetivamente conjunta.

[O sol bate forte, e Pedro pede uma água pra se refrescar do calor seco de Brasilia.]

JF: Vendo o filme de vocês eu lembrei muito dos filmes do Eisenstein, porque nos primeiros filmes dele, tinham aquela coisa de ser um filme sobre a massa, o coletivo, em que o personagem é a massa, o conjunto, e vocês no filme se preocupam de mostrar sempre o coletivo, e ainda apresentar as funções de cada grupo dentro do movimento, então eu acho que o filme de vocês tem essa proposta de retomar um cinema político através do coletivo.

PMB: A Greve (de Eisenstein) tem bastante disso, o nosso filme anterior se chama “Na missão com Kadu”, pois é com o Kadu Freitas e sobre ele, e eu falei de um filme que seja positivo, afirmativo, porque eu acho que o Na missão com Kadu tem uma dureza muito forte, ele tem um peso muito grande, não é que ele acabe com as esperanças, mas ele lhe deixa com muita dor do mundo, e é um filme sobre uma pessoa nesse contexto de luta e a gente queria fazer um filme diferente, tratar da mesma questões, mas de outra forma, e aí foi esse caminho que a gente achou, então se a gente parte de um personagem no filme, no outro a gente tenta que o personagem sejam as ações, essa ação coletiva, ação em conjunto, e tentou pensar e propor alguma forma de se filmar essa ação coletiva, afinal de contas é uma política organizada, não existe a ação de um que vale mais do que a de outro, porque é justamente parte da engrenagem para que a coisa possa rodar, então no material bruto, por exemplo, existia a possibilidade de escolher personagens, e criar uma narrativa a partir deles, delas, sobretudo, mas nas nossas discussões a gente entrou em consenso que o interesse real deveria ser essa coletividade, enquanto a mostrar esses setores organizados, eu acho que isso é natural, o processo é muito setorizado, tem um grau de organização muito alto, comissão de segurança, de cozinha, de estrutura, de comunicação, então, você tem tudo isso muito claro, o que chega primeiro, o que vai, o que já tá fazendo algo, pra que a coisa possa funcionar, porque o período de tempo de vida daquilo é muito curto, e a possibilidade de chegar a polícia e agir violentamente com o despejo é muito alto, então você precisa do maior grau de organização possível, então é natural que o filme sendo parte também desse processo, como é uma equipe que se distribui, já consiga filmar localizando todas essas partes do processo de ocupar, então a montagem ela busca dar conta disso. De conseguir criar esse momento dando conta do espaço e do que acontece, tenta lapidar de alguma forma o tempo pra trazer através da linguagem essa sensação de ocupar junto de toda a mobilização da organização que envolve o ato.

JF: Acho que isso é muito representativo na cena em que estão montando o acampamento, em que todo mundo está cavando, pregando madeiras e começa uma polifonia…

LA: É incrível mesmo.

JF: Acredito que seja uma das cenas mais catárticas do filme. É um plano aberto em que o som preenche a tela.

LA: É uma coisa que inclusive entra em choque com aquela galera, tipo, crítico que não escreve crítica e chega falando que isso “isso não é cinema”, porque é uma pura experiência estética só essa cena, imagina toda a obra.

PMB: Ah, eu acho engraçado isso que tu disse, porque tem gente que prefiro falando mal do que falando bem né? Mas é compreensível em alguma medida, nem todo mundo vai gostar de tudo, segundo que a gente vive num tempo que as coisas elas são muito fáceis, muito palpáveis, muito no plano do material, nada no sensorial, então, tô na minha cama, eu vejo Netflix, peço Ifood, pra sair de casa peço o Uber, não há esforço, nem de buscar saber ou de querer conhecer algo e o filme ele é uma propaganda em alguma medida, não é uma propaganda feita de modo tradicional, mas ele busca lhe engajar, e se você não se engajar de primeira, não vai se engajar nunca, e dando uma informação contando “olha, isso é uma ocupação, acontece de tal maneira, organizado por tal pessoa e está em tal lugar”, isso não vai fazer com que a pessoa se engaje, vai fazer com que ela saiba e se esqueça 5 minutos depois.

LA: Isso.

PMB: O filme não, ele só busca dar uma sensação, e de lhe tirar, na hora que você acha que entrou, ele lhe tira, porque é pra afirmar justamente isso, que é um filme, isso não é ocupar, não é o ato político em si, isso é só uma lasquinha do que pode ser essa experiência, eu coloco pra te tirar, e ao te tirar quero que você saiba que nunca terá a experiência completa aqui. Se você quer ter, se isso lhe engaja, se isso lhe move, se lhe comove, então venha atrás, procure saber e participe, não necessariamente disso, mas de qualquer processo organizado e político.

LA: As vezes eu sinto que quando se cria uma aura, tipo “filme político”, e cria essa aura envolta como se só a existência desse filme fosse suficiente pra causar uma mudança social muito grande, quando é o que ele pode gerar a partir dele né?

PMB:  Sim, o Coutinho inclusive dizia que “o cinema não muda nada” e eu acho que em alguma medida ele tá certo, porque o cinema pode não mudar nada, mas pode promover encontros, pode despertar interesses, fazer o encontro de alguém interessado com algo interessante, e dentro desse pensamento qualitativo ele possa minimamente interessar as pessoas, e fazer com que elas se encontrem com algo novo, e quem sabe disso algo além possa surgir e funcionar, inclusive, politicamente, até proposições estéticas, linguagem, a política é linguagem e ao trazer algo que não seja usual ela possa ser interessante. A afirmação de uma linguagem não convencional ela por si só já é algo altamente político.

Pedro pausa a fala para tomar água, diante do sol que se projeta sobre todos na mesa.

PMB: Você falou do som, naquela cena do plano aberto, na construção, a gente fez uma construção sonora, no Surround pra que sempre houvesse coisa acontecendo no espaço e que elas tivessem todas no mesmo volume, pra dar essa sensação de pressão sonora, uma massa sonora e quando chegasse nesse plano, a ideia é que chegue nessa catarse, mas sem ser o final do filme, pra criar essa sensação e pudesse ultrapassar o que pode ser chamado de real. Ir pra uma construção além do real pensando numa sinfonia, uma polifonia de vozes acontecendo ao mesmo tempo, num contraponto, até uma construção musical, e eu pedi a Nicolau, e a gente foi editando junto, e é uma pena que do ponto de vista técnico, somente o 5.1 dê conta, no estéreo isso tá, mas não tem essa força, e enfim, isso são outras questões. Escolhas.

JF: No caso da cena das mulheres colocando as bandeiras do movimento, tem muito uma coisa de filme de suspense ali, da marcação do ritmo, entre passar a viatura da polícia de instante em instante e as mulheres terem que sair e se esconder, cria uma tensão muito forte, como foi o processo de filmar essa cena?

PMB: Então a maior parte das imagens foram filmadas por Aiano, e outra parte por Rick Mello, são os dois fotógrafos do filme, inclusive uma parte dessas imagens elas foram feitas quando já tinha começado a filmar, e aí eu pedi, “vamo ver se rola, tal coisa, tal coisa e tal coisa” e rolou, deu a liga, no caso dessa imagem, ela já existia, e quando eu comecei a montar eu já pensei “isso aqui vai acabar o filme”, então eu já tinha o norte de até onde o filme podia ir, que era ela, porque acaba na colocação da bandeira, então ela tá afirmando que é nosso o território, nós estamos aqui, e depois porque ela tem essa carga de tensão muito forte, e como o filme busca uma sensorialidade e a tensão mexe com o estômago e não com a razão, a gente bota ela pra trazer tudo isso. E a galera já falou de filme de terror, de filme de ação, de filme de guerra, western, de tudo isso, do gênero, porque o gênero busca reproduzir o que a gente encara na vida, essa imagem ela existe por uma razão, quanto imagem porque o movimento é quem filma, não é filmado por pessoas que tão ali, buscam saber, participam a noite e vão embora, então como já há um processo de anos, juntos e filmando, não pensando só em cinema, mas numa série de funções que essa imagem possa ter, desde compor peça jurídica, fazer um registro institucional pro movimento, fazer um registro para as redes sociais a fim de engajar seguidores, o uso tático, que é o que ela mais se aproxima, aquilo ali tá no limite do terreno, quase na rua, se a polícia chegar ali as pessoas tão sem um amparo, então a câmera já ligada inibiria uma presença policial, não a presença, mas uma ação violenta. Pois o policial quando tem uma câmera na sua frente, ele já para e pensa duas vezes, sem a câmera a gente sabe o que acontece. Então ela tá ali naquela situação de tensão porquê de fato ela tá numa situação de tensão, e a polícia passa, inclusive se a polícia para, e vê aquelas jovens mulheres no limite do terreno, na rua, o que que eles não podem fazer? Então a presença da câmera para além de estar fazendo um filme, um registro histórico ou uma comunicação, ela serve como, não uma arma de ataque, mas de defesa desses corpos que estão se expondo em função de uma afirmação de uma luta.

JF: Eu fico pensando, como o pessoal do movimento recebeu o filme?

PMB: O filme é deles, e ele foi muito bem recebido, tanto lideranças, coordenação, quanto moradoras e moradores, novas famílias, pessoas que estão entrando no processo de luta de conquista da moradia, elas se veem muito representadas, e vão lembrando, não necessariamente dessas ocupações, mas de um processo, até porque ele não representa essas três (ocupações), ele cria um processo novo no imaginário.

LA: Aquilo que foi dito no debate, e gostei bastante, não lembro exatamente da pergunta, mas era de como pegar esses três momentos e transforma em um, num processo contínuo, num filme que é uma ocupação em si.

PMB: É que na pesquisa a gente buscava, não precisa nem colocar, se quiser, mas olha que coisa doida, vendo aquele filme Serra Nevada, um filme longuíssimo que eu gosto, comecei a pensar em muita coisa, já tava a pouco tempo de ir pra Belo Horizonte, e aí eu pensei nisso no estado de ocupação, sensorial, quando eu sai do filme liguei pra Aiano e a gente passou uma hora por telefone, a gente moldou esse filme por telefone nesse dia, e aí era pensando justamente nisso, em como a gente pode dar conta do que é, do que pode ser, do que a experiência é capaz de armazenar, através do cinema, através da linguagem, enfim, em criar um estado de ocupação, que a partir de uma experiência sensorial sem puder dar conta da história, sem querer falar de história, de um evento em si e relatar como foi, mas criar uma possibilidade imagética, sonora, sensorial pra que a gente sem estar lá consiga experenciar isso,  ainda que de maneira incompleta, somente pra dar esse gosto e poder trazer, quem sabe, mais pessoas pra isso.

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