Texto escrito pelo curador Ulisses Arthur para a abertura da sessão “Relicário Mágico da Terra”, que reúne obras em super-8 do cineasta alagoano Celso Brandão. A sessão teve exibição no dia 16 de dezembro de 2018 dentro da IX Mostra Sururu de Cinema Alagoano.
Quando vejo um filme alagoano na tela sempre me pergunto: O que esse filme pode me ensinar enquanto cinema e me ensinar sobre o lugar em que vivo? Lugar que de inúmeras maneiras me garante uma identidade e um saber que emana do meu corpo, do nosso corpo, da nossa própria natureza, apesar das raízes da nossa História persistirem encobertas ou completamente apagadas.
Conheci o cinema de Celso Brandão através de suas obras mais recentes, onde ele engaja seu tempo e sua energia realizando cinebiografias de artistas populares, escultores, músicos, mestres do folclore. Vejo esses filmes como formas desejantes de encontro entre Celso e esses artistas, que vai além de um mero registro de memória. Há um amor e uma crença naqueles que estão do outro lado da câmera que se transformam na beleza das imagens.
São filmes que os olhares mais convencionais podem reduzi-los, classificando-os mais como obras de registro etnográfico do que do Cinema, mas para olhares empoeirados compreender o gesto que funda a cena é estar distante do seu potencial de invenção. Por exemplo, na mostra Sururu de 2017, no filme Enéias, o pica-pau, temos uma entrevista de Celso com o xilogravurista Enéias. Como sabemos, a entrevista é uma forma fílmica muito presente no documentário brasileiro mas o que me saltou aos olhos foi o uso do cromaqui, tecnologia amplamente utilizada nos filmes de ação e com efeitos especiais, agora estava ali, servindo de background para um diálogo entre dois senhores de cabelo branco e suas memórias, trazendo imagens das obras de Enéias, da lagoa, das ruas e casas onde ele viveu.
A tecnologia massivamente utilizada em Hollywood foi utilizada por Celso da maneira mais singela, sua investigação através da linguagem vai abrindo mais possibilidades para contar suas histórias.
Nessa sessão que intitulei “O Relicário Mágico da Terra” poderemos encontrar os primeiros lampejos dessa obra e o vigor de suas imagens. Curtas-metragens em super-8 que o tempo não conseguiu apagar, imagens que sobreviveram e em 2018 podem nos mostrar que nunca fomos tão hipócritas ao ignorar os saberes ancestrais que vem do povo.
Num estado talhado pela violência, a imaginação popular da nossa cultura continua sendo o que pulsa e persiste. Os filmes presentes nessa sessão são viagens onde Celso nos leva para cidades do interior ou para o interior da vida cotidiana aqui na capital. A sessão brota da terra, do barro modelado pelos cariri-xokó até se findar na feira do passarinho onde a terra é o palco para trocas e negociações dos produtos que a própria terra deu.
Passamos também, pela cultura do plantio, aliás, por mais que monoculturas dominem territórios a agricultura familiar também é uma herança irrevogável e uma grande lição para que possamos pensar a nossa sobrevivência nos próximos anos, em tempos que o governo está fechado com o agronegócio.
Teremos também o que é tão central na obra de Celso, o artista popular representado nos filmes Boca da Mata e Guerreiro das Alagoas, onde a fantasia da imaginação encontra suas formas materiais.
Quando vejo esses filmes imagino Celso com sua câmera Super-8 colada no rosto, coreografando movimentos, dançando com a leveza da máquina, conversando com as pessoas e conhecendo as histórias delas. Viver e filmar, verbos conjugados no mesmo instante. Há uma beleza neste grupo de filmes que é entender o artista como ponte que interliga mundos e faz conexões. Essas imagens que passaram mais de 10 anos desaparecidas agora podem ser vistas por nós na sala de cinema, agradeço a Celso por tê-las feito e por confiar nessa sessão. Ela é apenas uma centelha das múltiplas faíscas que virão a seguir.
Celso é ponte e ele sabe disso, tornando-se um ligamento entre duas épocas, os anos 70 e 80 e o fatídico 2018. Entre as inúmeras pessoas que viveram seus trabalhos e suas fantasias e nós, protegidos e privilegiados no escuro da sala de cinema.
Através dessa ideia de ponte e através dessa curadoria busco fazer outras. Tenho pensado bastante no questionamento que a pesquisadora e curadora brasileira Amaranta César tem feito para pensar as imagens do cinema indígena e desloco-o para pensar as imagens do cinema de Celso Brandão: Pode a imagem salvar?
Num estado em que as políticas públicas tanto para o cinema quanto para as manifestações populares são tão escassas e não nos garante a sobrevivência. Pode a imagem salvar?
Num estado onde a vida se organiza através do apagamento da sua cultura em prol de ideais brancos e burgueses. Pode a imagem salvar?
Podemos estabelecer ainda outra ponte dessa vez chegando muito perto do nosso contexto e em diálogo com os filmes do Celso. Desta a pensadora se chama Mestra Hilda imortalizada na voz de Zeza do Coco que na cantiga do coco de roda diz assim:
“Meu vapor apitou pediu mala, que é que tem esse povo que não fala?
O que é que tem esse povo que não fala?”
Já que emudecemos com o tempo, o que essas imagens do passado tem a nos falar? Em quase uma hora de sessão estão muitas Alagoas expressas. A força que vem da terra nos renovará, a luz que virá das imagens na tela desenhará caminhos possíveis para compreender e lutar pela nossa real riqueza. Muito obrigado a Celso Brandão por ter trilhado com coragem esses caminhos, agora a viagem será de todos nós, estamos em bando.
Referências:
Alagoas Arte e Cultura com Zeza do Coco https://youtu.be/wKNAj6R3Cg0
Cerâmica Utilitária Cariri (super-8, 1978, 4 min 56 s.)
Mandioca da Terra à Mesa (super-8, 1977, 10 min 31 s.)
Na Boca da Mata (super-8, 1979, 5 min 35 s.)
Guerreiro das Alagoas (super-8,1982, 18 min 34 s.)
A Feira do Passarinho (super-8, 1975, 18min 05 s.)
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