Texto: Rafhael Barbosa. Fotos: Divulgação
Um dos filmes brasileiros mais singulares do ano, “Corpo Elétrico”, primeiro longametragem de Marcelo Caetano, chega ao circuito de cinemas nesta quinta-feira (17) após percorrer festivais nacionais e internacionais, de Rotterdam ao recém encerrado Cine Ceará. Mas podemos dizer que sua gestação vem de muito antes da realização propriamente dita. Já há algo de “Corpo Elétrico” em “Bailão” (2009), primeiro curta-metragem do diretor. Assim como há muito de “Corpo Elétrico” em “Na Sua Companhia” (2012) e em “Verona” (2013).
Aos 34 anos, o mineiro radicado em São Paulo, formado em Ciências Sociais pela USP, desenvolveu seu projeto artístico experimentando uma pesquisa de linguagem e também um exercício de olhar. Em seus filmes, somos guiados por uma jornada de expressão plena do desejo, um passeio pela intimidade de homens gays em trânsito na maior capital brasileira.
O filme de estreia é um documentário sobre a boate ABC Bailão, no centro de São Paulo, casa que se tornou um lugar de encontro para homossexuais de meia idade em busca de companhia para dançar e exercitar o livre afeto reprimido na juventude.
Bailão / Ball (English Subtitles) from Marcelo Caetano on Vimeo.
“Na Sua Companhia” acompanha o encontro casual entre dois homens que se conhecem num local de pegação e passam a desenvolver uma relação cada vez mais próxima. O ponto de vista de uma handcam (na mão dos protagonistas) nos aproxima do corpo dos personagens. Sem utilizar artifícios estilísticos fáceis, a câmera nos coloca tão perto da pele, dos pelos, dos sinais, do suor, das marcas de expressão, a ponto de criar uma relação genuinamente sensorial. A câmera também serve ao voyeurismo, que olha para o outro e também para a cidade, enxergando para além da noite escura. Percorremos uma São Paulo periférica e nada idealizada, assim como são os personagens do diretor.
En ta compagnie / Na sua companhia (sous titres Français) from Marcelo Caetano on Vimeo.
Já em “Verona”, a geografia é uma casa de campo, onde três amigos se refugiam para celebrar um casamento. Dois deles são ex-integrantes de um grupo musical e se ressentem do ostracismo após uma temporada de sucesso no exterior. Mais uma vez, o desejo é motor das relações entre os protagonistas, que, em meio aos preparativos da festa, confrontam-se com pontos obscuros do passado.
Verona from Marcelo Caetano on Vimeo.
A orientação sexual contribui para imprimir traços profundos à personalidade dos protagonistas, porém os conflitos da narrativa transcendem o gênero: a luta contra o alcoolismo e a adicção e, especialmente, a dificuldade de lidar com o fracasso — isso em meio a uma esperança de recomeço.
E finalmente chegamos a “Corpo Elétrico”, cujo belo título celebra o objeto de pesquisa do diretor. Com a generosa metragem de um longa, Marcelo expande suas buscas, criando um universo ainda mais complexo e recheado de personagens ricos. No centro da história, está Elias (a ótima revelação Kelner Macêdo), um jovem estilista paraibano de 23 anos que trabalha numa confecção de roupas no centro de São Paulo.
O ponto de vista de Elias marca o tom do filme. Um olhar sempre intenso para o outro. Um radar aberto aos muitos sentimentos que fluem a seu redor, seja nas relações afetivas ou de trabalho, ou ainda nas arestas entre ambas. Nem um pouco ortodoxas, essas interações surgem como mais um elemento provocador, desconstruindo expectativas românticas e apontando para a principal sede do protagonista: a liberdade.
É perceptível um esforço radical do diretor para humanizar seus personagens. Esse trabalho pode ser notado na ótima condução do elenco (que nunca parece atuar no sentido convencional), e também na carpintaria do roteiro, que se distancia da dramaturgia clássica, buscando aqui encontrar o tempo da vida.
Num momento em que personalidades trans atingem cada vez mais espaços de visibilidade, “Corpo Elétrico” dá uma contribuição artística e política ao tema. Um filme de tessitura extremamente contemporânea em seus mais diversos aspectos.
O diretor esteve em Maceió para uma pré-estreia do longa no último dia 10, durante a Sessão Encontro, e conversou com o Alagoar sobre o processo de construção de “Corpo Elétrico”. Confira a entrevista a seguir e veja também os curtas do diretor.
PERGUNTA – Com seus curtas, você contribuiu, junto com outros realizadores da mesma geração, para uma mudança na forma como o cinema brasileiro vinha retratando a questão de gênero. Vocês trouxeram uma abordagem menos interessada no estigma da violência e do preconceito, e mais voltada para os conflitos íntimos dos personagens. O homem gay, nos seus filmes de ficção, não parece estar lutando contra o mundo (ou talvez até esteja, no extracampo). O recorte que você mostra é o das relações de afeto em suas diversas faces. Que reflexões te levaram a esse caminho?
MARCELO CAETANO – Minha imaginação morre a partir do momento que o fatalismo assume o comando. Existe uma expectativa de que os meus personagens sejam massacrados por seu entorno. A homofobia nos provoca tanto medo que morbidamente desejamos que aqueles corpos sofram violência. A tragédia ronda meus filmes, mas eu resisto a essa pulsão de morte e tento traçar um outro tipo de dramaturgia. Para o cinema que eu faço, é essencial ser generoso com os personagens. Eu evito reiterar os lugares sociais que os jornais, a tevê, as estatísticas — tudo aquilo que chamam de “a realidade” — estabelecem para os personagens gays.
Nesse sentido, “Bailão” me parece um ponto de partida bastante simbólico, em que você olha para o passado e mostra o drama de uma geração anterior a sua, de gays que viveram uma realidade muito mais dura na juventude e agora vivenciam na velhice todas as mudanças que estamos vendo. Só então, depois dessa “homenagem” ao passado, você passar a seguir uma busca pelo hiper contemporâneo.
A geração do “Bailão” é de sobreviventes. São corpos que carregam em si os dramas das piores experiências vividas por homossexuais: o extermínio pela aids, a violência familiar, os desejos silenciados. Mas eles estão vivos, estão dançando, caminhando pelas paradas gays, relembrando seus mortos. Eu escolhi filmar o Baile, pois queria registrar a vida, o encontro, a liberdade. Eu acho esses personagens extremamente contemporâneos, são corpos estranhos, indecifráveis. Os heterossexuais da mesma idade não os entendem. Muito menos as bichas jovens. Por isso mesmo defendo que eles são corpos queer, incômodos, fascinantes, atualíssimos.
“Corpo Elétrico” teve sua ideia geradora inspirada no poema “Eu canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman. O conto “Aqueles Dois”, de Caio Fernando Abreu, também foi uma inspiração, certo? Que outros autores foram evocados nas pesquisas?
O conto de Caio termina dizendo que ninguém naquele “deserto de almas” jamais seria feliz. Era como ele via a repartição em que Raul e Saul trabalhava. Em “Corpo Elétrico”, as relações dentro da fábrica começam frias e cinzas, mas aos poucos os operários vão se unindo por vínculos de desejo e solidariedade. Elias e Wellington se impõe dentro daquele grupo enquanto corpos diferentes, mas iguais. Eles estão sempre empurrando os limites aos quais seus corpos são inicialmente restringidos por uma mera questão de igualdade. O conto de Caio é lindo, mas seus personagens, ao contrário dos meus, temem o olhar do mundo, temem seus próprios sentimentos.
Ao situar sua história na fábrica/confecção, você introduz em seu universo artístico uma nova camada que é o debate sobre as relações de trabalho. Como surgiu sua observação para esse cenário?
Falar da cidade de São Paulo implica falar de trabalho. É a razão de ser dessas milhões de pessoas apinhadas nesse monumento ao concreto. Eu queria falar de uma cidade que demanda um esforço sobre-humano para equilibrar prazer e trabalho. Eu realizei uma longa pesquisa em fábricas, conversando com operários, patrões, artistas (modelistas/estilistas). Da parte dos empregados, existia um orgulho muito grande de ter vencido a origem social miserável, o desemprego, as dores da migração. Mas poucos questionavam a centralidade do trabalho na construção de sua própria subjetividade. O trabalho na linha de produção é repetitivo, solitário. Por isso mesmo eu decidi filmar a saída dos operários da fábrica, o momento em que os corpos tentavam se reencontrar, se religar. A catarse tem um valor de transcendência, corpos exaustos que querem se sentir vivos de novo.
Apesar de lidar com a moda, a fábrica do filme é um lugar angustiantemente cinza, assim como a cidade também, em grande parte do tempo. Há uma ausência de cor nos uniformes, nos ambientes, nos objetos de cinema. É a pele contra o cinza. Só quando é introduzido o núcleo das drag queens o filme ganha mais cores. Que conceito vocês buscaram transmitir por meio da arte, da paleta de cores e da luz?
Eu acredito que a cor existe em diversos momentos fora da fábrica. A casa de Elias tem um tom azul arroxeado, a cama do Arthur está cheia de almofadas, lençóis, cobertores coloridos. As drags são apenas o ápice desse contraste com a fábrica. A gente decidiu que não existiria nada branco dentro da casa da Marcia Pantera, nenhuma roupa, nenhum objeto. E a cor é bastante promíscua nesses momentos do filme, ela não está contida na linha, ela borra o entorno, como na cena das motos das drags. Isto tudo partiu de um incômodo que eu tenho com uma certa cromofobia do cinema produzido em São Paulo, das cores comportadas, dos tons pastéis, das paletas de cor, da influência da publicidade. A burguesia paulista teme a cor, assim como teme o feminino, a poesia, o excesso.
Umas das minhas cenas preferidas é o plano sequência em que os personagens saem do trabalho e andam pela rua decidindo onde irão se divertir. Ela consegue dizer muito sobre os personagens enquanto indivíduos e enquanto grupo, além de falar sobre a relação entre eles. É uma plano de três minutos e meio, complexo tanto na construção de roteiro quanto na execução técnica e cênica. Qual foi o maior desafio?
Tudo é desafiante nessa cena. Nunca tinha trabalhado com steady-cam. Existia também um desafio dramatúrgico: eu precisava apresentar os personagens, e para isso eu tive que trabalhar individualmente com cada ator antes de trabalhar o coro. Eu desenhei a gênese de cada personagem, dei munição para que os atores soubessem quais eram as questões de cada indivíduo em cena e quais eram as afinidades dentro do grupo. Daí foram dois dias de ensaio (um em sala e outro na rua) e um dia de gravação, um dia apenas para essa cena.
Outra cena muito forte é a sequência do caminho até a boate. A cena é potencializada pelo tema de Villa-Lobos na trilha sonora. A construção já estava prevista no roteiro ou foi uma escolha de montagem?
Foi uma decisão de montagem, tentamos várias coisas, o barulho das motos, a drag music, house dos anos 80, nada funcionava. Até que o montador Fred Benevides me provocou a tentar com música clássica. Ele sugeriu Bach, e na hora eu falei “nada europeu vai funcionar aqui”. Ai me veio esse tema do Villa-Lobos que eu tinha escutado pela primeira vez num espetáculo do Teatro Oficina, cantando pelos atores em coro. É da ópera Floresta do Amazonas, um trabalho fascinante do modernismo brasileiro.
O elenco é um dos aspectos mais marcantes de “Corpo Elétrico”. Que método foi adotado para a preparação e direção do elenco? Como foi equilibrar improvisação e roteiro?
Em termos de roteiro, eu trabalho com uma estrutura, uma espécie de escaleta e ela altera pouco durante o processo. O que muda e se abre para o acaso é o desenvolvimento das cenas em si. Os diálogos e mise-en-scène são levantados dentro da sala de ensaio com a colaboração ativa do elenco, eu vou filmando tudo e tomando nota. São processos longos, às vezes exaustivos. Os atores são convidados a tentar coisas, a errar, a premeditar pouco. E e a ideia é não cristalizar nada. Deixar que a dinâmica do set finalmente aponte os caminhos. Gosto de repetir os takes e gosto de discutir com os atores entre um take e outro, ver o que funciona e o que é desinteressante.
Marcelo acompanha o resultado de uma cena no monitor
De que modo o casting foi feito? O que norteou a busca?
O casting é uma confluência de diversos processos de que participei nestes anos trabalhando com cinema. Existem pessoas que estiveram comigo em filmes como “Tatuagem” (Georgina Castro e Nash Laila) e nos meus curtas (Ronaldo Serruya e Marcia Pantera), e também pessoas que conheci em testes que realizei para o próprio filme. A busca é sempre por pessoas abertas ao tipo de trabalho que desenvolvo: a improvisação, o “borramento” das fronteiras entre atuador e personagem, o despudor e a capacidade de responder às minhas provocações.
A cantora Linn da Quebrada vem de uma outra parceria, o filme musical “Blasfêmea”. Como vocês se conheceram?
“Corpo Elétrico” foi filmado em 2016, e “Blasfêmea” no início deste ano. Na época do filme, ela assinava como Linn Santos e estava começando a compor músicas. As reflexões que ela trazia em suas músicas dialogavam com preocupações do roteiro. A cena em que ela canta “Talento” no banheiro de uma boate foi criada conjuntamente na sala de ensaio. O meu processo é muito permeável às vontades dos atrozes e eu tento criar um ambiente de confiança e troca para que isso aconteça.
Você fez a assistência de direção em longas celebrados como “Tatuagem”, “Boi Neon” e “Mãe Só Há Uma”. Como você se encontrou nessa função e o que essas experiências te ensinaram?
Eu sou um trabalhador do cinema. Adoraria viver das minhas histórias, do meu trabalho autoral, mas como isso é impossível no início de carreira, fui trabalhar como assistente de direção. Eu penso muito como a Claire Denis (que antes de ser diretora também foi assistente): num set de filmagem a única coisa que se aprende é a necessidade de se fazer os filmes. É uma experiência física, uma luta violenta contra o tempo, contra os limites orçamentários. Uma negociação constante, essa é a vida do assistente de direção, sem glamour algum.
Já existe um próximo filme na agulha? O que você pode antecipar sobre ele?
No momento, estou escrevendo “Baby”, um longa que conta com apoio do Hubert Bals, um fundo holandês que apoiou o desenvolvimento de filmes como “Boi Neon”, “Tatuagem” e “Som ao Redor”. Terminamos a fase de pesquisa, e a escrita começa após o lançamento do “Corpo Elétrico”. É um filme sobre a busca pela liberdade de um adolescente que não se dobra a nada e a ninguém. E o nome dele é Baby.
SERVIÇO:
Filme: “Corpo Elétrico”, de Marcelo Caetano
No Arte Pajuçara, com exibições quinta, sexta, domingo, terça e quarta, às 20h30, e sábado (somente no dia 19/08), às 18h45
Ingresso: Inteira – R$ 16,00/ Meia R$ 8,00
Informações: (82) 98882-8241
(82) 99135-8146 WhatsApp
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