Uma entrevista com Laís Santos Araújo

Perguntas: Ulisses Arthur e Larissa Lisboa. Respostas: Laís Santos Araújo. Revisão: Larissa Lisboa. Foto: Moema França.

Cidade Líquida primeiro filme de Laís Santos Araújo, financiado através do edital do Canal Futura para obras de estudantes universitários, teve sua estreia na VI Mostra Sururu de Cinema Alagoano (2016), em qual foi contemplado com o prêmio Algás de melhor curta-metragem. Entre as dez edições da Mostra Sururu, apenas em duas a premiação de melhor filme contemplou um filme dirigido por uma mulher. Alice Jardim foi a primeira em 2014 com Entre Céus.

Também em 2016, o projeto do segundo filme de Laís, Como Ficamos da Mesma Altura foi contemplado no IV Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas (SECULT-AL/Fundo Setorial do Audiovisual-Ancine), estima-se que entre os 17 curtas contemplados três tem mulheres na direção.

O projeto do primeiro longa de Laís Santos Araújo, Marina, foi selecionado para o Laboratório de Cinema da Escola Porto Iracema das Artes em 2018, sendo a primeira alagoana a participar desse projeto realizado em Fortaleza-CE que abre anualmente duas vagas para roteiristas de todo o Brasil. Marina também foi contemplado no edital para desenvolvimento de roteiros do Ministério da Cultura e também com aporte de desenvolvimento do fundo Hubert Bals da Holanda dedicado a narrativas inovadoras de lugares como a África, Ásia e a América Latina, que busca incentivar a pluralidade de olhares através do cinema.

Projeto também contemplado no Edital do Audiovisual de 2019 (FMAC-Prefeitura de Maceió/Fundo Setorial do Audiovisual-Ancine), Marina é primeiro projeto de longa-metragem alagoano contemplado em edital que será dirigido por uma mulher.

Laís está a todo vapor e aos poucos suas obras vão permeando o imaginário de imagens que nos apresentam possibilidades alternativas de pensar o território alagoano através das memórias e pulsões de seus personagens.


Ulisses Arthur e Larissa Lisboa: Qual o momento da sua vida que você viu/viveu e te fez despertar pro cinema?

Laís Santos Araújo: Foram vários pequenos momentos de reconhecimento. Um deles, meio besta: quando adolescente ouvi falar de um filme que havia sido gravado em Maceió, aquele Muito Gelo e Dois Dedos D’água. Só que era difícil que só de encontrá-lo. Sei que, depois de uma cota procurando este filme, conseguimos ele em alguma locadora. Assisti. Não lembro o que achei dele na época, mas lembro dos lugares da cidade que apareceram nele, porque eram lugares que eu conhecia e isso foi muito estranho pra mim. Ver esses lugares numa TV, num filme, quando isso só acontecia no noticiário. Lembro que fui até a Pajuçara olhar a casa onde ele tinha sido gravado. Inclusive, tô com essa história na cabeça porque há uns dias, com um amigo que não é daqui, falamos disso (ou seja, essa coisa de se reconhecer em algo pesa até hoje).

UA e LL: Você tem uma formação em jornalismo e teve uma atuação interessante na área, o que a sua vivência em cinema traz da sua trajetória no jornalismo? Como foi trilhar esse caminho?

LSA: Eu adoro e sinto falta de jornalismo, gosto da redação, de criar matérias. Tenho ainda dúvidas sobre minhas escolhas de sair de jornal. Mas acho que o cinema também carrega importâncias parecidas – a do registro, a de engatar mudanças, de instigar. O Marina, meu roteiro de longa de ficção, veio de fatos concretos daqui de Maceió. Acho que muita coisa da profissão está nos projetos que idealizo.

E o cinema pra mim também surgiu como algo palpável durante a faculdade, na UFPE. Lá, dividia o prédio com o curso de cinema, música e afins e sempre tentava pegar eletivas fora do jornalismo. Já Recife estava muito efervescente nesse campo, então eu ia pra festivais, fazia minicursos, sonhava projetos com os amigos. Ir ao cinema e ver filmes produzidos pelas pessoas que estavam sentadas lá, com a paisagem de lugares que eu costumava ir, começou a tirar a distância que o cinema tinha pra mim.

LL: Como surgiu o desejo de realizar “Cidade Líquida” e como foi realizar?

LSA: O Cidade Líquida foi meu trabalho de conclusão de curso de jornalismo da UFPE. Foi produzido e filmado em 2014-2015. Foi a primeira vez que trabalhei com alguém em cinema fora do contexto amigos-se-ajudando-e-criando-junto – que no caso foi o Henrique Oliveira, que topou correr com o filme comigo. Ele surgiu porque eu sempre desejei criar coisas dentro de Maceió, e o filme foi a elaboração de pensamentos meus sobre essa cidade. Eu queria falar da desigualdade latente e ao mesmo tempo ocultada daqui, e, pensando em paisagens da minha infância, escolhi esses dois pontos que tinham pesos tão diferentes.

Mas aí foi isso, fiz todo processo de pré-produção (e através de indicações conheci Paulo Silver, que me ajudou nesse corre sem nem me conhecer), gravei imagens, fiz dezenas de entrevistas, e eventualmente, consegui apoio do Canal Futura, que tem um programa bem legal para quem tá fazendo o TCC em vídeo. Acho que foi a primeira vez que de fato fiquei consumida por semanas por um projeto de cinema – e adorei.

UA: Sabendo da sua forte relação com o texto, como é seu processo de escrita de um roteiro cinematográfico?

LSA: Acho que sempre parto de algum elemento muito próximo a mim, que conheço bem. É daí que busco começar qualquer coisa: uma imagem que vi, uma frase, alguém que conheço, algo que não sai da cabeça. Não tenho uma metodologia definida, vou incorporando coisas que fui aprendendo. Gosto de escrever conversas entre os personagens, fazer quadros de referências de imagens, e tudo mais. Quanto mais pessoal, mais difícil de fazer, eu acho, mas melhor fica. Após o Porto Iracema comecei a dar mais valor ao conhecimento técnico do roteiro e da narrativa, que eu acreditava desgostar antes (mesmo mimetizando ele, querendo ou não) – e agora acho arrogante rejeitar um campo de conhecimento em nome de, sei lá, uma suposta liberdade de criação. Gosto de entender o esqueleto de uma história clássica e saber o que estou fazendo ao resolver ignorá-lo ou modificá-lo. Por enquanto tem sido assim.

UA: Pensando a relação entre seu primeiro curta “Cidade Líquida” e o novo “Como Ficamos da Mesma Altura” como foi a transição entre paisagens e universos tão distintos?

LSA: Ambos os universos e paisagens fizeram parte da minha vida. Acho que existem semelhanças, como a relação de poder de ambos (entre pai e filha; entre paisagens que representam classes opostas). Pra mim, a maior transição foi a de dirigir uma ficção, com uma equipe maior. Nunca tinha feito algo assim e me ensinou muito, principalmente a pensar em qual processo eu quero nos próximos projetos e em tudo que eu não quero repetir tão cedo.

UA: É engraçado que de algum modo os dois filmes me parecem aproximações com os lugares em que são filmados, em “Como Ficamos da Mesma Altura” como foi aproximar o processo criativo do cinema da temporalidade de uma cidade de interior como Anadia? E como foi pensar os personagens/atores dentro dos espaços que a narrativa percorre?

LSA: Foi bem difícil! Inclusive, acho que isso é uma coisa que o filme falhou muito. Não consegui transpor a temporalidade da cidade nos planos externos e, uns dias antes da Sururu, resolvi retornar à Anadia pra gravar uns planos extras e aliviar isso. E não resolveu. Foi a maior dificuldade da montagem. Não tínhamos nenhuma imagem sem os atores (além da cana-de-açúcar), e todos as cenas do filme foram plano único. Como criar isso na montagem?! Difícil. Também não rolou de conduzir, internamente, um filme que se alimentasse desse processo, que adentrasse e se aproveitasse desse ritmo.

Já isso dos personagens e espaços internos talvez seja a minha coisa favorita do filme. Quis esconder Laura (a Anne Luz) atrás de objetos da casa, cortar ela, então fiquei projetando como cada quadro seria, onde eles estariam, como transpor a distância entre eles e etc. E aí foi massa, ao menos pra mim.

LL: Como foi o processo de elaboração de “Como Ficamos da Mesma Altura”? O que poderia compartilhar sobre a elaboração do projeto, passando pela premiação no Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas (SECULT-AL/Fundo Setorial do Audiovisual-Ancine) e sobre as exibições e seleções em Mostras e Festivais?

LSA: O primeiro roteiro escrevi, em trânsito, indo de uma cidade para outra. Foi o primeiro curta de ficção que escrevi, dentro de uma aula. Quando o edital abriu, pensei em ajustar o roteiro para inscrevê-lo, e aí fiz todos os procedimentos: busquei empresa produtora de amigos, elaborei planilhas, design, justificativas, projeto, equipe. Eu sempre desenvolvi os projetos que criei. Também fiz a montagem e distribuição, e por isso ele demorou mais do que eu gostaria – fiz e refiz até gostar mais do filme e só aí distribuí. O curta não entrou em vários festivais que inscrevi, mas segui fazendo e aí ele começou a circular, estreando mesmo no Cinefest Gato Preto, no interior de São Paulo. O pessoal acabou fazendo, inclusive, uma sessão especial sobre Alagoas, com filmes do Ulisses Arthur e do Paulo Silver. Daí, o curta rodou mais um pouco e no fim do ano passado foi convidado para o Festival de Rotterdam, após os programadores do festival terem acesso ao filme. Foi doideira.

LL: Como foram as exibições de “Como Ficamos da Mesma Altura” no International Film Festival Rotterdam 2020? 

LSA: Foram lindas. Foram exibidas dentro de uma sessão chamada Holding Grounds, sendo o Mesma Altura o último filme. Todas as três sessões foram em um cinema bem bonito chamado Cinerama, e participei de debates com programadores do festival nas três. A sessão começava com outro filme brasileiro, seguindo por um grego e um argentino. E aí vinha o nosso, gravado aqui. Na primeira sessão fiquei muito impressionada com a qualidade dos filmes anteriores. O debate sempre acontecia imediatamente depois de cada curta exibido. Após o nosso curta, houve sempre perguntas boas e é massa ver pessoas de partes diferentes do mundo dando opinião sobre seu trabalho, dentro e fora daquele ambiente do cinema. Acho que me fez entender melhor o poder de um filme, e a entender que vale a pena soltar uma obra, mesmo que você tenha sentimentos mistos sobre ela.

LL: Seu projeto Marina é o primeiro dirigido por uma mulher entre os projetos de longas-metragens contemplados em Alagoas, fala um pouco sobre a ideia do filme e como foi para você receber esse reconhecimento?

LSA: Estou desde 2016 criando esse projeto. Surgiu de desigualdades que observei durante meus anos de ensino médio, e que passei a estudar um pouco mais durante a faculdade. A personagem, Marina, é uma garota de 14 anos de uma escola privada de Maceió.

Foi incrível. É algo doido pensar que ele será gravado, de fato. Só me preocupa muito os rumos do FSA nesse estado impossível das coisas.

UA: Diante da cena de cinema que vivemos atualmente, ao seu ver quais são as singularidades e os desafios do nosso cinema alagoano?

LSA: Acho que singularidades: a quantidade de coisas que temos a falar e fazer daqui. Vivemos num lugar de histórias e paisagens inacreditáveis implorando para serem gravadas, e gente massa querendo fazer.

Desafios: vou citar um bem burocrático, que é calendarizar os financiamentos do cinema, ou senão não haverá um mercado de cinema alagoano nunca. Não rola ter um edital e não saber quando será o próximo. Sem isso, somos trabalhadores de cinema remunerados vez ou outra, a depender uma publicação no Diário Oficial. Com um calendário, as pessoas conseguem, de fato, seguir um fluxo de trabalho que as permita estabilizar na cidade, se especializar pela experiência, e estar sempre jogando obras dessa cena no mundo.

De modo absolutamente pessoal, é o que eu gostaria para a minha vida, e sei lá se isso um dia vai acontecer.

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