Cine Fialho: Veríssimo (dir. Angelo Defanti)

Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa.

Verissimo é um documentário especial, daqueles que ficam à espreita, tentando descobrir um personagem pelas beiras. Sua empreitada torna-se surpreendente, pois debaixo dos escombros do tempo, o filme revela detalhes de um Verissimo que quase não fala, embora observe muito sobre o mundo à sua volta. O filme visita Verissimo às vésperas de completar 80 anos de idade, se instala em sua casa e adota cinematograficamente uma atitude compatível a do personagem, a de observar a partir de uma câmera fixa, discreta em sua indiscrição de se alojar na intimidade de Verissimo. É como se a câmera realizasse uma crônica íntima de um cronista que tenta passar incólume pelo seu cotidiano.

Logo no início, o diretor Angelo Defanti mostra planos da casa do protagonista. O silêncio e a paz predominam, apenas interrompidos pelo som de um peculiar badalar de um grande e imponente relógio vertical. O tempo toma conta do espaço e parece ameaçar com o aviso permanente de que os 80 anos estão chegando. O badalar insistente não permite que esqueçamos disso: da passagem do tempo. O filme registra o tempo como um perseguidor implacável. À certa altura, Verissimo diz em uma de suas inúmeras entrevistas: “eu esqueci do tempo, espero que ele também tenha esquecido de mim”. Mas as contínuas visitas de um fisioterapeuta não escondem as dificuldades que Verissimo demonstra para levantar da cadeira ou sofá. O tempo não o esqueceu, está ali, atento e no seu encalço.

Um dos maiores méritos da direção de Angelo Defanti é a de se abrir à contemplação. A câmera respeita o personagem, entretanto está posta a perscrutar suas ações, mesmo que não haja tanto a revelar acerca desse escritor brilhante que se mostra um homem de hábitos simples. Alguns ângulos são distantes, mas o que surpreende é que mesmo os mais próximos não são nada impactantes. A personalidade reservada de Verissimo é capturada assertivamente, os movimentos lentos da idade parecem combinar com a maneira como lida com o mundo no cotidiano. A família cuida dele, mas também é cuidada por ele. O filme é também sobre isso, uma investigação íntima entre personagem e família. Verissimo reserva, a seu modo, um tempo para todos, embora preserve a fala e os sorrisos lacônicos. O surpreendente é que a introspecção de Verissimo não o torna antipático, ele tira fotos e dá autógrafos transbordando uma calma espantadora. É sério, mas doce com as pessoas. Sério e engraçado, como alguém bem o define em algum momento do filme. Mas como homem, não tem como negar, a seu jeito, o grande avô que é. Em cada detalhe Verissimo revela seus sentimentos, como numa leitura com o neto ou no ato de aceitar que os netos se joguem afoitamente no seu colo. Mas convenhamos, nada há de especial, a maioria dos avôs fariam o mesmo.

Mas a câmera paciente de Defanti flagra os mais belos momentos da relação entre Verissimo e a neta Lucinda, um amor e uma admiração à criatividade que o escritor não consegue esconder. E ainda tem a paixão de Verissimo pelo Internacional, independente da fase do time ser boa ou ruim. A câmera registra ainda o amor da esposa, a seduzi-lo constantemente, enquanto ele faz um certo jogo duro. Mas na hora das fotos antigas, só queria ver as fotos da esposa jovem, como que quisesse renovar alguma chama saudosa do amor de juventude. O tempo que ele tanto quis driblar não o deixa enganar em seu implacável e persistente compasso, sempre a jogar cada vida que está no mundo para frente, e consequentemente, para o envelhecimento.

Outro viés explorado pelo documentário é o da celebridade Verissimo. A paciência dele nas entrevistas realmente chama a atenção, a tranquilidade no qual atende a todos, sem fazer nada de espalhafatoso. É admirável a naturalidade e a quase indiferença como olha para os jornais que fazem grandes matérias e encartes em homenagem aos seus 80 anos. O agito dos eventos e sua vida em casa entregam o mesmo Verissimo impassível, controlado, paciente e sereno. As repetições das ações cotidianas não o irritam, assim como ter que escrever e desenhar suas tirinhas. O filme mostra isso com exatidão, para que não tenhamos dúvidas sobre quem é Verissimo. Em frente à página em branco, desenha aleatoriamente. O que está a fazer? “Esperando a ideia vir”, diz ele com uma calma de quem sabe que a inspiração virá naturalmente.

Angelo Defanti alcança com o seu dispositivo observacional, o silêncio precioso dessa personalidade ímpar, inteligente e repleta de tiradas geniais. Porém o diretor mostra que com um dispositivo simples, o da espreita, se consegue chegar longe em um filme que se pretende ser documental. Como diz sempre a esposa, “acompanhamos Verissimo nos debates e entrevistas para saber o que ele pensa sobre as coisas, porque em casa nada fala do mundo”. Jogar paciência no computador ao final seria uma síntese sobre a sua personalidade, ou seria um exercício, um ato autodisciplinador para afinar a sua conduta austera? Ou estaria ele tentando enganar o tempo, lhe proferindo uma sentença certeira?

Você pode acessar outros textos de Marco Fialho em Cine Fialho e acompanhar o trabalho dele pelo @cinefialho.

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