Perguntas e revisão: Larissa Lisboa. Respostas: Noá Bonoba. Imagem: cena do filme Nebulosa (destaque).
No segundo semestre 2020, o Sesc Cultura Convida! disponibilizou dois trabalhos realizados por Noá Bonoba, Travomantra e Nebulosa (dirigido junto a Bárbara Cabeça). Já no primeiro semestre de 2021, O Livro dos Falsos Princípios (dir. Bárbara Cabeça, Lux Farr e Noá Bonoba) foi selecionado no Arte em Rede – Convocatória para seleção de projetos artísticos digitais do Governo do Ceará via Instituto Dragão do Mar. A presença de Noá Bonoba na frente e por trás das câmeras pode ser dimensionada ao contemplar essas obras (entre outras) que estão disponíveis on-line, também através desta entrevista na qual abrimos espaço para que ela mesma dimensione suas vivências e filmografia. Todes estão convidades para este breve mergulho.
Larissa Lisboa: Como a sua vivência junto às artes, principalmente sua vivência no Teatro, foi empoderamento junto às vivências em audiovisual?
Noá Bonoba: O interesse que eu tenho pelo teatro sempre partiu de um tensionamento constante com a norma. O conceito de experiência, enquanto algo que pode ser vivido para além do que hoje eu entendo como “delírios coloniais”, me interessava justamente por me lançar no abismo do desconhecido, tomando ali as rédeas da minha corporeidade e deliberando sobre minha gestualidade. No teatro eu entendi que poderia modular meu corpo e ser gestora da minha subjetividade, entendendo-a como múltipla. Entendendo que sou habitada por uma legião.
Quando eu começo a trabalhar na linguagem do audiovisual, percebo uma hegemonia dos regimes de verdade acerca do que seria uma retratação fiel da realidade. A busca pela verdade sempre me incomodou. Naquele momento eu ainda não compreendia tanto os termos técnicos do cinema, era tudo muito novo, mas consegui notar o quanto essa busca pela verdade engessava as narrativas e a interpretação dos atores.
O desejo de dirigir meu primeiro curta-metragem (O mundo sem nós, 2016) partiu dessa vontade de experimentar outras formas de criação fílmica, onde investigamos a criação do roteiro a partir do trabalho com as atrizes Andreia Pires e Loreta Dialla.
O cinema que eu faço está intimamente ligado ao teatro que eu faço. E vice-versa. São duas vias que se retroalimentam.
LL: Como foi o processo de preparação de elenco dos curtas Multidões e Rua dos Vagalumes, ambos com direção de Camila Vieira?
NB: Foram processos de muito aprendizado, pois foi nesses filmes onde tive as primeiras experiências de preparação de elenco e também de contato com o fazer fílmico. Camila estava interessada em investigar registros de interpretação não-naturalistas para o cinema, o que me encantou muito e fez com que eu desenvolvesse um trabalho de preparação singular para cada filme. Levo isso comigo até hoje em minhas preparações de elenco, entendendo cada processo fílmico como processos singulares que exigem de mim uma nova metodologia a cada encontro. Dessa forma, invento exercícios novos a cada processo, de acordo com o que a obra solicita de mim.
LL: Partindo da premissa que cada preparação de elenco é um processo composto em conjunto com as pessoas envolvidas, quais as semelhanças e diferenças que poderia apontar entre os processos que já esteve como preparadora em obras audiovisuais?
NB: Acho que comecei a responder essa pergunta na resposta passada, mas vou aprofundar aqui nessa algo que acho muito importante: não existe uma verdade única acerca do trabalho de interpretação no cinema. É isso que tento sempre repetir nos encontros de preparação. Cada processo artístico é único. Cada novo filme exige de mim um processo de imersão no universo específico daquela obra. Apenas dessa maneira é que começo a desenvolver uma metodologia que faça sentido na singularidade de cada universo. Cada obra exige de mim uma nova metodologia. Com o tempo também fui entendendo que as intersecções entre os projetos também são válidas, mas somente se feitas com a atenção na singularidade. Nunca criando verdades únicas, mas sempre remodelando os modos de fazer.
LL: E como foi a vivência de preparação como atriz nos filmes nos quais atuou?
Nos filmes que eu atuei, só fui preparada em um deles. Três dos outros, eu fiz preparação de elenco e também atuei. A preparação de elenco é sempre um momento importante, pois é quando as ideias se concretizam e também onde há espaço para investigação. É onde acontecem proposições, trocas e onde novas ideias surgem. É um momento sempre muito rico para o processo fílmico.
LL: Como foi o processo de atuação e preparação de elenco em Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que não Existe Mais (dir. Rafael Luan e Mike Dutra)?
Foi maravilhoso. Estávamos todes como alunes exercitando nossa vontade de fazer um filme que não fosse apenas um exercício de escola. Então, da minha parte, me dediquei da mesma maneira que me dedico em todos os outros projetos que participei. Tive a chance de trabalhar com atores incríveis que sempre estiveram muito dispostos a experimentar e vivenciar o processo de preparação. Fazer preparação de um filme e atuar no mesmo tem sido um processo recorrente na minha carreira. É interessante, pois por ser também preparadora, eu tenho um entendimento do todo e, nos filmes onde faço preparação e atuo, mesmo fazendo apenas uma participação ou uma ponta, eu estou ali conectada com o todo do processo. E isso é sempre muito importante pro trabalho de atriz. Por menos tempo de tela que a sua personagem tenha.
LL: Como foi o processo do filme O mundo sem nós (dir. Noá Bonoba)?
NB: Nesse filme foi onde eu pude viver um processo de construção fílmica com um ponto de partida diferenciado dos modelos convencionais. Nós não partimos de um roteiro. Criamos tudo a partir de uma premissa e o filme foi construído inteiramente na sala de ensaio, a partir de novos elementos que iam surgindo a cada encontro. Então foi um filme que surgiu inteiramente da direção de atores. Uma outra diferença também foi o fato de termos um tempo prolongado de sala de ensaio. Foram 4 meses de processo com as atrizes. Isso é muito raro no cinema. Como era minha primeira direção no cinema, eu ainda não tinha tanta familiaridade com diversos termos técnicos e procedimentos específicos da linguagem do cinema, mas tive total apoio do Victor Costa Lopes e do Breno de Lacerda que sempre foram maravilhosos e pacientes e fizeram com que esse filme existisse. Tive o apoio da Tardo Filmes e de uma série de colaboradores que acreditaram no projeto, apesar de não ter grana nenhuma envolvida. Além de tudo isso, sempre foi um projeto completamente imerso no risco, pois estávamos ali realmente interessados em investigar a linguagem cinematográfica a partir de um registro anti-naturalista onde inventamos juntos o primeiro filme de uma trilogia alienígena.
LL: Como foi estar no Sesc Cultura Convida com as obras audiovisuais Travomantra e Nebulosa (dirigido junto a Bárbara Cabeça)?
NB: Eu fiquei muito surpresa. Na real, essas duas obras são extremamente importantes para mim, mas fiquei muito surpresa por ter sido contemplada, pois (assim como todos os meus trabalhos) são obras que não dialogam com as expectativas que a ciscolonialidade lança sobre os nossos fazeres artísticos. E o mais surpreendente ainda é ter sido selecionada em uma instituição como o Sesc, que é sempre tão disputada, com diversas disparidades entre regiões. Minha surpresa também vem acompanhada de uma necessidade de reconhecimento nacional dentro de um circuito artístico tão desigual e hegemônico, então sim, recebi essas aprovações com muita felicidade e com um calor no coração por ver obras minhas circulando pelo mundo e sendo vistas por mais pessoas, possibilitando que o público de diversas regiões do Brasil pudessem ter contato com o meu trabalho.
LL: Qual o impacto da pandemia no seu fazer artístico?
NB: Foi um momento onde a desorientação tomou de conta do meu processo artístico. Com o emocional abalado e a falta de perspectivas diante dos diversos cancelamentos de cronogramas já estabelecidos, precisei me reelaborar e criar estratégias de permanência e sobrevivência no mundo. Também foi um momento onde fortaleci as minhas redes de afeto e cuidado e encontrei força em pessoas de todo o país, o que me fez crer novamente que era possível continuar existindo.
LL: Como foi o processo do filme O Livro dos Falsos Princípios (dir. Bárbara Cabeça, Lux Farr e Noá Bonoba)?
NB: Foi um processo maravilhoso, intenso e de muita pesquisa. Esse filme resulta da organização de desejos compartilhados. Morávamos juntos na mesma casa, então foi um processo que se misturou com a nossa rotina, onde as partilhas aconteciam em todos os momentos. O desejo de realizar coletivamente nos guiou do começo ao fim.
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Noá Bonoba é travesti, atriz, roteirista, cineasta, preparadora de elenco, dramaturga, doutoranda pelo PPGCOM – UFC, professora formada pelo curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal do Ceará, escritora/pesquisadora Mestra em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, curadora da Tomada LBT, integrante da V Turma da Escola de Audiovisual da Vila das Artes.
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