Cobertura: Sessão Motirõ | III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena

Texto: Chico Torres. Revisão: Larissa Lisboa.

SESSÃO MOTIRÕ | MOSTRA QUILOMBO DE CINEMA NEGRO E INDÍGENA

Se quisermos buscar um fio condutor para a sessão Motirõ, que integra a III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena, realizada pelo coletivo Mirante Cineclube, eu diria então que é uma sessão marcadamente sobre a perda. Perda das vidas pelo Coronavírus em Ethxô Nandudya (dir. Fernando Matos, Narriman Kauane, Raryson Freitas, Tayho Fulni-ô, Thales Matos); perda econômica e do cinema em 4 Bilhões de Infinitos (dir. Marco Antônio Pereira); perda da terra em Fôlego Vivo (dir. Associação dos Índios Cariris de Poço Dantas-Umari); perda da tradição em Raiz Farinha Beiju (dir. Projeto de extensão Histórias de Quilombo Projeto de Pesquisa Práticas e conhecimentos quilombolas na Paraíba e no Rio Grande do Sul); perda da infância em Cinema Contemporâneo (dir. Felipe André Silva). Por outro lado, como toda boa curadoria que não se prende a uma lógica determinada, a sessão também parece trazer, como um respiro ou um golpe de esperança, filmes que habitam um universo mais positivo: obras sobre afirmação, sobre presença. Presença do menino Kauã estampado freneticamente por toda a cidade em ErêKauã (dir. Paulo Accioly); presença da consciência racial e de classe em Lealdade (dir. Ana Stela Cunha e Milla Negrah Avelar); presença do corpo, do desejo e do sonho em Inabitáveis (dir. Anderson Bardot). 

Este perfil duplo, ambíguo, não só reflete uma diversidade cinematográfica brasileira, mas revela um Brasil repleto de complexas contradições. Somos confrontados com os problemas de sempre: pobreza, expropriação, exploração, machismo, racismo. Porém, essas narrativas são contadas, com bastante inventividade, pelos próprios indivíduos que as vivenciaram e as vivenciam, nos expondo as perspectivas dos “vencidos da história”, aqueles que assinam os papéis da sua própria desgraça, que são vítimas do ideal nefasto do progresso, mas apontados pela história como os que sempre impediram o avanço civilizacional. 

Destaco três filmes que compõem a sessão Motirõ: 4 Bilhões de Infinitos, Cinema Contemporâneo e Inabitáveis. Três obras metalinguísticas que parecem carregar o que há de mais significativo nos temas suscitados através da sessão. 

4 bilhões de infinitos me surge como metáfora de um Brasil que está destruindo o seu cinema, nos deixando completamente no escuro. É preciso, portanto, “roubar o cinema”, encontrar os meios, por mais escassos que sejam, para continuar vendo e fazendo cinema. Buscar não o fogo do descaso que queimou os filmes da Cinemateca, mas um outro fogo, aquele que cria, que engendra o movimento, o fiat lux. O filme revela, acertadamente, que essa conquista só se dá através do coletivo, da ajuda mútua e da solidariedade. 

Em Cinema Contemporâneo temos alguém que, ao contar ou tentar contar a história de uma fotografia, usa a sua própria tragédia pessoal para realizar uma obra impactante e de humor desconcertante. O narrador, apesar de nos fazer um relato cruel sobre violência sexual, expõe uma série de contradições que acabam revelando não apenas as incertezas do relato, mas, sobretudo, o modo como o silenciamento social fez com que aquela narrativa fosse constantemente questionada, até na hora em que ela é finalmente contada. 

A sessão Motirõ é encerrada com Inabitáveis, filme exuberante que, aos poucos, através da metalinguagem, escorre para a pura expressividade, conseguindo ser um filme que consegue extrapolar certo didatismo e se constituir de modo bastante inventivo. O filme navega em questões sobre escravismo, sexualidade e desejo, seja em sentido carnal ou como realização pessoal. Há uma imbricação, sob uma perspectiva quase onírica, entre arte, vontade e expressão, tendo como pano de fundo questões raciais relacionadas à história da cidade de Vitória do Espírito Santo. 

A sessão Motirõ, em seus dois pólos que se conflitam e se complementam, revela as mazelas e as riquezas do Brasil. Obras com conteúdos historiográficos e de denúncia, mas que nem por isso se constituem apenas como documentos fechados e de caráter expositivo, pois estão comprometidos com a criação, com a arte. Filmes também que afirmam as potências do Brasil, através da presença dos corpos, que dançam, ou que simplesmente se negam a dançar a música do colonizador. Filmes, como indica o título da sessão, que expressam a força do coletivo, da criação horizontalizada, que não se fecha a um único criador, mas que entende que é através de muitos que se faz cinema. 

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