Texto: Lucas Litrento. Imagem: Larissa Lisboa. Revisão: Janderson Felipe.
Na entrevista exibida antes do longa, o ator e cineasta Zózimo Bulbul fala sobre a vontade de se ver na tela sob todos os ângulos possíveis: de ver a consciência e o peso da sua própria negritude, fazer essência. É esse cinema que ele se propõe a trabalhar, seja como ator ou realizador. Vemos o rasgo na tela durante esse movimento de abertura, quando o artista se desnuda e se funde ao personagem — o eixo central da narrativa da mostra. Essa potencialidade iniciada por Grande Othelo no primeiro dia (26) está presente em Jorge, protagonista de Compasso de Espera. O filme foi exibido na noite de ontem (27), no Sesc Centro, dando sequência à Mostra Performance Negra no Cinema Brasileiro.
Único longa dirigido pelo renomado diretor de teatro Antunes Filho, o filme foi rodado em 1969, mas lançado quatro anos depois por ter sido barrado pelos censores do regime militar. E não é de se surpreender, visto o caráter polêmico da obra e toda a discussão gerada por ela: a desconstrução do mito da democracia racial, o racismo escancarado e relações inter-raciais.
É uma temática de ruptura cheia de quebras refletidas na montagem sincopada, jazzística. São todos os fragmentos centrais da vida de Jorge (Zózimo Bulbul), escritor de poemas revolucionários e publicitário, homem negro de classe média, uma contradição em si mesmo. Esse é o ponto central da obra, Jorge pisando em ovos durante todo o filme, lidando com racistas desde o início “com as mãos calejadas de puxar saco”, como diz.
O filme narra o cotidiano do protagonista no meio da classe média alta de São Paulo, suas relações com intelectuais e o envolvimento com duas mulheres brancas. Jorge está dividido entre Ema (Élida Palmer), que ocupa um cargo importante na empresa em que ele trabalha, além de tratá-lo de forma abusiva, e Cristina (Renée de Vielmond), jovem modelo que vive entre a ingenuidade e a rebeldia superficial.
O romance de Jorge e Cristina eleva o contraste do filme, presente desde a abertura quando o corpo negro do protagonista surge do branco saturado da praia. Não só a montagem e a fotografia são extensões do personagem. Todo o filme, enquanto aspectos formais, é Jorge. O conflito e a tensão um pouco escondidos no discurso quase sempre ensaístico do poeta escancaram a verdade de um homem que vive no limbo, onde o seu cotidiano é o não-lugar.
Mas essa verdade impressa na tela é fruto de uma sensibilidade de Antunes Filho ou da magia de Zózimo? Do primeiro uma empatia, a construção de uma branquitude entre crises e contradições, a consciência de que o problema do racismo é estrutural e funciona como via de mão dupla. O segundo nos dá a alma, a intelectualidade mesclada na fúria, o silêncio que briga com a revolta. É como se Jorge não parasse de falar, está nos seus olhos, na sua face, o ato de silenciar a si próprio é um grito e Zózimo sabem muito bem disso quando rasga a tela.
Embora problemático em alguns momentos (como a dublagem do filme, que trocou as vozes dos atores negros por brancos), o mutualismo Antunes/Zózimo cria um filme multifacetado, que desenvolve negritude e branquitude de forma consciente e crua. Da parte dos personagens brancos há sempre o racismo velado, as pequenas atitudes preconceituosas e o modo, igualmente violento, de tratar Jorge como um brinquedo (ou melhor, como um grande achado arqueológico). No poeta (Jorge) vemos o conflito em ser um homem negro descolado dos seus irmãos de cor e dos que o rodeiam.
A relação de Jorge com outros negros é mostrada pontualmente. Em conflito com os amigos militantes e com a própria família, ele não se enxerga em nenhum desses grupos e chega ao ponto de mentir quando encontra uma família negra na rua. No entanto, essa cena, que fecha o filme, diz muito sobre negritude. Um grupo de estranhos aborda Jorge, que descansa numa fonte d’água. Ele fugiu de uma festa e veste smoking, uma das meninas pergunta se ele é músico. Ele se deixa levar e responde que toca violino. Todos sorriem e, ao se despedir, a menina diz que qualquer dia pode vê-lo tocar. No último frame, Zózimo acenando para os estranhos. Isso também é black power, é uma coisa que une todos e também trabalha no silêncio, como muitas atitudes de Jorge, mas é outro silêncio. Nós sabemos como é, tem certo compasso.
Compasso de espera. Título do poema revolucionário que Jorge recita no início e que dá nome ao seu livro e ao próprio filme, mas, acima de tudo, que resume bem a fisicalidade do protagonista. Sempre em trânsito, caminhando na noite, cruzando a empresa, correndo, fugindo, mas sempre numa espera. A hesitação vem justamente desse não-lugar que ele reside, que o cerca como uma bolha sufocante. Desde os seus discursos totalmente seguros e que os brancos não entendem até os momentos em que é violentado de várias formas, Jorge hesita, não se encontra. E o filme passa esse sentimento de forma muito coesa, pois não é apenas um filme-manifesto (ou com ares de). Trata-se de uma obra muito colada ao seu protagonista, a pessoalidade é muito forte. Através de Zózimo sentimos todas as contradições de Jorge, principalmente as que são expressadas em silêncio, apenas rasgando a tela e aumentando o nosso conflito.
A Mostra Performance Negra no Cinema Brasileiro continua hoje (28/09), às 19h no Sesc Centro com o filme: 28/09: Xica da Silva (1976) Dir: Cacá Diégues.
Mais informações no evento no Facebook ou na matéria Mostra Performance Negra em Maceió.
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