Parceria Cine Fialho. Texto: Marco Fialho. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.
A Paixão Segundo G.H. deve ser encarado como aquele filme que desafia o espectador, da primeira à última cena, por não permitir uma brecha que facilite a sua fruição. O primeiro elemento que chama logo a atenção é o formato 4×4 da tela (um quadrado), que acentua e favorece uma série de closes que a câmera faz de G.H. (uma Maria Fernanda Cândido plena, inteiramente tomada pela personagem).
O que mais marca o filme é o monólogo de G.H. Ele é majestoso, imperativo… sufocante. Luiz Fernando Carvalho faz dele a sua arma mais poderosa para desconstruir o clássico romance de Clarice Lispector. Os excessos interpretativos tencionam constantemente os limites entre teatro, cinema e literatura. Se o close transforma essa obra em uma peça de câmera altamente cinematográfica, a verborragia o aproxima do teatro (até mais do que da literatura) pela dramaticidade que as cenas são filmadas. Mas existem momentos em que a palavra ganha contornos nítidos, já que a sonoridade delas desenha uma visão de G.H. acerca do mundo. Um outro elemento fundamental para que A Paixão Segundo G.H. possa funcionar é a maneira como a cor fornece uma atmosfera ilusória que beira um pesadelo, em especial com o uso do azul bebê na maioria das cenas do apartamento, que comunica uma sensação falsa de paz. Há ainda uma combinação perfeita entre som e imagem, ambos se complementam, juntos criam um diálogo intrigante em direção à uma atmosfera de angústia.
Já nas primeiras cenas há uma deformação imagética (que impressionam pela beleza cinematográfica alcançada) e que reflete muito bem o estado de espírito de G.H. e que estabelece o que veremos a seguir até o fim: uma mulher abastada em crise consigo mesma e com o mundo. Há uma intensa sensação de enclausuramento durante todo o filme e o formato de tela, já assinalado acima, agrava esse quadro psíquico. O solilóquio interminável de G.H. chega às raias do insuportável e do abjeto. Luiz Fernando Carvalho constrói um filme que mescla beleza e asco, em um exercício estético difícil de ser digerido. Closes de baratas, excrementos que saem do seu corpo nojento dão o tom em boa parte da projeção. A beleza de Maria Fernanda Cândido contrasta com todo esse universo de uma barata kafkiana que permeia simbolicamente a história como complemento vigoroso de uma expressão arquetípica marcada por um conflito existencial.
A trama flutua entre o tom confessional e imagens que pouco expressam por si, já que o rosto de G.H. é a paisagem predominante de todo o filme. Apesar de Carvalho pensar o rosto de Cândido como paisagem, existem outras camadas preciosas, intrigantes e abundantes para o espectador, que permitem que o filme expanda seu universo. Uma delas é a de classe, pois há uma nítida relação de poder entre G.H. e Janair (a expressiva Samira Nancassa). Pode ser feita uma analogia interessante entre Janair e a barata, se não negligenciamos a relação de poder já citada e o entendimento das baratas serem vistas como sinônimo das classes subalternas (basta lembrar dos cucarachas, maneira como os latinos são chamados nos Estados Unidos).
Com A Paixão Segundo G.H., Luiz Fernando Carvalho realiza uma obra onde conteúdo e forma, primeiro e segundo planos, cor e linha, composição cênica e fotografia, foco e desfoco, personagem e cenário, enfim, um trabalho em que todos esses contrastes realçam um possível abismo existente entre personagem e cenário (ou aqui pode-se ler igualmente mundo) ao sublinhar constantemente a desarmonia entre eles, de como estão em um permanente choque, sem abrir brecha a um lampejo sequer de felicidade. E o espectador, o que cabe a ele? Esse só tem uma única opção: assumir a perspectiva de G.H., sob o risco de não se conectar com a obra e perder o interesse nela (aliás, foi o que aconteceu com muitas pessoas que estavam na sessão que assisti ao filme, que se retiraram antes do filme chegar à metade). Talvez as inúmeras cenas com baratas possam incomodar, talvez o eterno solilóquio de G.H., pois quem sabe, não vislumbraram as nuances das cenas com espelhos, que traziam uma imagem refletida que raramente se mostrava como límpida e quase sempre se revelava fragmentada e distorcida. Sim, na tragédia também habita um certo prazer.
Depois de ter filmado Lavoura Arcaica, baseado no originalíssimo livro de Raduan Nassar, Luiz Fernando Carvalho se atira no abismo de Clarice Lispector, obra igualmente idiossincrática e introspectiva. Com competência, Carvalho se apega a Cândido e a transforma, tal como Carl Theodor Dreyer fez com a atriz Maria Falconetti em A Paixão de Joana D’Arc, em um tijolo que vai dar consistência estrutural a seu trabalho dramatúrgico. Sim, porque A Paixão Segundo G.H. é um filme que se sustenta pelo que Cândido entrega em cena. Impressionante a interpretação que ela atinge em seu choro final, acentuada pela beleza da 5ª sinfonia de Gustav Mahler, em uma franca referência e homenagem de Carvalho a Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti, em que o personagem de Dirk Bogarde vive uma profunda crise emocional com o mesmo tema musical, também no final do filme.
No melhor estilo de Douglas Sirk (diretor que melhor representou o melodrama no cinema, na mesma época em que passa o filme de Carvalho, anos 1960), A Paixão Segundo G.H. trabalha muito com o contraste entre o mundo de um apartamento impecavelmente burguês e bem mobiliado com o estilhaçamento emocional de G.H., que busca desesperadamente se conectar com o mundo a sua volta, mas sempre sem sucesso. E Carvalho se utiliza muito bem da música e do som, ambos perturbadores, para nos lançar junto com a personagem, no abismo no qual se encontrava.
Durante todo o filme, Carvalho impõe a presença de G.H. como a narradora que nos conduz nessa bizarra viagem da personagem. Mas há uma única cena em que Janair, a ex-empregada doméstica de G.H. (que demite-se da sua função) assume a narrativa e retira o seu turbante (sem voz, mas com gesto e ação contundentes), como se libertasse daquela vestimenta tão característica das mulheres escravizadas no Brasil da época Colonial e Imperial. Essa imagem, filmada em close, é de uma força surpreendente e muito diz sobre as relações de classe historicamente constituídas em nosso país patriarcal. Outro registro importante é que nunca vemos com nitidez o rosto do homem com quem G.H. foi casada. Ele sempre é um vulto, uma espécie de fantasma a rondar pelos pensamentos de G.H..
Dentre tantas frases maravilhosas que Lispector legou quando escreveu esse lindo e inusitado romance, várias delas ficaram martelando em minha cabeça e talvez valha assistir a A Paixão Segundo G.H. só para ficar ouvindo a gramática intempestiva e reflexiva ecoando implacavelmente em nós, como se tentássemos ler aqueles preciosos e sedutores mapas de caça ao tesouro, mesmo que no meio do caminho encontremos uma barata para nos atordoar.
Em Maceió o filme está na programação do Centro Cultural Arte Pajuçara, em exibição junto ao curta alagoano Habito (dir. Fernando Santos), com sessões nos dias 20 e 23/04 às 16:00.
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