Cobertura: Sessão Bruta (dir. As Talavistas e ela.ltda)

Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.

Sessão Bruta nos apresenta um amontoado de performance, artes plásticas, dança, fotografia, música, cinema, tudo que seu coletivo produz. As Talavistas, que são ao mesmo tempo meio e mensagem, sujeitas e objeto do filme. Quando um filme como esse é lançado muito se fala sobre a experimentação como algo a esmo, uma série de momentos, mas há uma conexão em todo o filme. As próprias artistas, corpos em transição, que falam suas histórias a nós, cuja constância é o movimento, o disforme que reafirma o abjeto. “Eu sou o monstro que vos falo”, confronta o bom gosto de forma tão aberta que só poderia objetivar a falha. “Coletividade que seja mais que a palavra”, uma multiplicidade que se faz presente no filme em todas as suas etapas. Ao mesmo tempo, o mais belo são as coisas ditas, as entonações, as formas de cada personagem falar sua história, de debochar, de criar, de rir. A potência está na celebração da trajetória do coletivo artístico, cuja existência e resistência já é simultaneamente um milagre e um bug no sistema.

Começamos com as personagens questionando uma inteligência artificial do google sobre LSD, cannabis, terrorismo; as respostas cheias de referências técnicas e históricas são zombadas. Há um deboche que se faz presente e desestabiliza a inteligência artificial, entra em choque com sua autoridade, com seu algoritmo. É um filme que será odiado pelo público que adora e anseia pela nova série LGBTQIA+ da Netflix, higienizada e regrada no fotômetro adequado da imagem digital. Ao mesmo tempo, será rechaçada pela cinefilia, pelo fã de Fassbinder, de Walsh, de John Ford. Há um objetivo pela quebra, da autoria e de uma estética consolidada clara, de forma que gostar ou não gostar se torna irrelevante em sua apreensão. Os resultados e intenções de Sessão Bruta não se dão pela execução de algo com um referencial em mente, por isso só poderia ser um filme processo, algo que está aberto. Então como se desenvolve um pensamento, um texto crítico, em cima de uma obra assim? É preciso, também, ir para outro lugar.

Até quando adota um tom pedagógico há uma interseccionalidade e abertura tamanha que impede um slogan, um chavão claro, uma resposta para academia e para qualquer espectador que anseie algo para saciar sua culpa. A discussão sobre a maneira que certos gays conseguem exercer masculinidade como forma de se inserir no mercado de trabalho enquanto a travesti, que é tão abjeta que é jogada para sarjeta, conversa com o próprio filme. Como se dará o lançamento de um filme como esse fora de Tiradentes? Sessão Bruta é um filme que não tem os cacoetes do cinema brasileiro que faz sucesso comercial, não tem a chancela de festivais internacionais, nunca se interessou em ter, adota uma forma queer e será tratado comercialmente como queer, ou seja: não será comercial.

Há também o problema de que é como se esse Outro, essas Outras, só tivessem de matéria prima a própria vida.“Eu ouvia muito que minha vida era minha própria obra”, e isso é comum a tantas identidades que tiveram suas subjetividades apagadas. A maneira que, por exemplo, determinados críticos falam sobre James Baldwin, sobre Virginia Woolf, sobre como escrevem da própria experiência, diferente de “sujeitos universais” que podem abstrair, brincar com pontos de vista. Para entender isso é também preciso levar em conta como os debates culturais dos últimos anos foram afetados, cooptados. O capitalismo se apoderou desses discursos de forma que as minorias passam a responder a uma grande imagem de controle essencialista que reafirma uma função pedagógica, serviçal, trabalhadora. Gerou condições que para identidades subalternizadas crescerem no mercado, sobreviver enquanto artista, é preciso atingir o que é esperado de um “filme de minoria”, é preciso oferecer um discurso polido e completo, uma mensagem clara. É como se os filmes realizados na periferia ontológica fossem para festivais e mostras do Brasil e do mundo para mostrar “vejam bem, público, vejam essa dor que é minha existência, vejam como vocês podem aprender, vejam como vocês não são tão ruins assim, já que estão assistindo.” 

É preciso quebrar com essas dinâmicas de público-cliente e artista-empregado, quebrar com a ideia que a arte tem uma função, seja ela conscientizadora ou libertadora. “Pro seu corpo ser arte demanda muita coisa, muita cabeça, disponibilidade, nesse lugar em que o corpo é arte ele é muito demandado.” É preciso propiciar estrutura e incentivo para que pessoas queers, negras, mulheres, tenham condições de produzir coisas sem função clara, tenham mais oportunidades de criar para além de falar da sua própria existência. Que possam fugir dos autorretratos, e então criar uma ficção melodramática absurda, um filme que a discussão em volta não se limite a chavões, a temáticas. Que o cinema brasileiro e seu público deixe de se achar tão desobediente enquanto produz e assiste filmes que reforçam tudo que já acreditam. Que se perceba o limite da empatia, da pena e da condescendência. Que se valorize a alteridade, a abstração e a nuance: o incompleto, o bruto.

O clímax de Sessão Bruta se dá por uma diversidade de camadas visuais e sonoras, um excesso esteve presente em todo filme e aqui tem um ápice. Somos carregados de estímulos e informações mil. “Como ser enchente sem afogar outras pessoas?”, encontrando outras enchentes. As personagens encontram apoios umas nas outras e nós encontramos apoios nelas no decorrer do filme, mas para não permanecermos assim, e sim, para irmos além das discussões essencialistas que povoam as timelines e alimentam os algoritmos. E se não podemos destruí-los ou parar de falar as mesmas coisas, devemos pelo menos poder debochar.

Acompanhe a 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes on-line pelo site.

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