Cobertura: Sessão Kilombo | III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa. Imagens: divulgação.

Cobertura: Sessão Kilombo | III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena

A III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena, realizada pelo Mirante Cineclube, foi organizada em duas sessões (sessão Motirõ e sessão Kilombo). E tal como aqui já foi abordada a sessão Motirõ, a seguir falarei brevemente a respeito da sessão Kilombo, composta por seis curtas-metragens.

Em Seriam Os Deuses Afronautas (2020), de Rogério Farandóla e Ju Barros, um astronauta negro, ou melhor, um afronauta, vaga à deriva num Espaço psicodélico, ao lado de astros, de símbolos do zodíaco, de um feto, de uma flor, e de uma carta de tarot representando a morte. Esse afronauta carrega a sua mensagem, vinda de 200 anos-luz, que diz: “Seu Deus não é branco”. Partindo de uma lógica de abstração, o curta, cujo título mais se inspira no misticismo da canção de Jorge Ben Jor do que no famoso livro de Erich von Däniken, trata-se de uma animação experimental, construída a partir de colagens de imagens e de ilustrações. Na sua dimensão gráfica, os elementos da composição se animam e se organizam ao plano geometricamente. A narração, que traz as palavras finais do afronauta com uma voz plena e revigorante, acompanhada por uma trilha sonora mística e atmosférica, fala da existência, da morte, do renascimento e do ciclo da vida.

Nakua Pewerewerekae Jawabelia (2019), é um filme realizado por Margartita Rodriguez Weweli-Lukana, Juma Gitirana Tapuya Marruá, Felipe Chamarrabi, Gurcius Gwedner, Vaneza Vargas, Dayana Vargas, Hector Reyes e os moradores do Resguardo Indígena Sikuani Guacamayas. Aqui, acompanhamos duas mulheres indígenas que se unem para resistir ao fim do mundo, do qual já preconizava a bíblia; mas para isso, fazem um ritual de “sanação” das dores das feridas coloniais ainda abertas. Nessa performance, colorem as mãos com tintas; se banham nas águas do Rio Meta, território colombiano; e com as tintas ainda em mãos, deixam marcas em pedras, em troncos feridos de seringueiras, e em pneus de automóveis da cidade. Descobrimos que o fim do mundo, do qual falam, vem com colonização: se manifesta na roupa que se usa, na comida envenenada que se come, no ar tóxico que se respira, e na água contaminada que se consome dos rios. Realizado inteiramente com câmera de celular, a sua decupagem livre e espontânea, captando com sensibilidade as ambientações que ilustram a denúncia, reitera o seu caráter experimental. Com narrações pontuais, cuja língua transita entre o espanhol, a língua local e o português, o filme é um convite poético à resistência, à proteção ambiental como proteção do mundo, contra a exploração, e contra as multinacionais que monopolizam o produto do agronegócio, assassinando e tomando as terras dos povos originários.

Em Forrando A Vastidão (2021), de Higor Gomes, testemunhamos o cotidiano da senhora Lia, uma personagem negra, e que se caracteriza com certa austeridade. Em casa, ela faz atividades físicas, faz ioga, se alimenta bem, treina sozinha uma luta braçal e depois outra com uma espada, preparando-se, em clima de ironia ou de absurdo, para um futuro incerto. O filme foi realizado durante o confinamento da COVID-19, embora este não seja mencionado. No diálogo com a filha ao quarto (diálogos esses sendo poucos e quando ocorrem parecem não querer avançar a trama), ou no aniversário com os familiares à mesa, a decupagem resolve as cenas de modo definido e controlado: com planos-sequência, planos abertos e formalmente rígidos, ou com cortes cujo ritmo abusa da extensão do tempo. A fotografia carrega um naturalismo que determina o seu apelo contemplativo. Ao final, a senhora Lia, na crença de poder prever bonanças para o novo ano, pega uma bacia com água, estende suas mãos sobre ela e conta os seus dez dedos. Um reflexo ilumina o seu rosto e Lia, satisfeita, sorri. O filme termina por ser um ensaio sobre a crença e o agir com determinação de uma mulher, dentro de certa anomia cotidiana, de uma certa “vastidão” que a rodeia.

Em Nove Águas (2019), de Gabriel Martins e do Quilombo dos Marques, percorremos do ano de 1930 até 2012, por episódios que saltam no tempo. Com a ambiência e a figuração sustentando o peso de sua carga verossímil, o filme conta a história de Marcos e seu grupo de descendentes de negros escravizados, que saem do Vale do Jequitinhonha rumo ao Vale do Mucuri, Minas Gerais. Desbravando a mata, fugindo da seca, da fome e da violência no campo, os quilombolas buscam um novo território para construir a sua comunidade. Apesar da dureza da condição representada, a câmera na mão, que acompanha essa trajetória, realiza planos suaves e vistosos; com uma fotografia que parte de um P&B sombreado, convertendo-se para um matiz de cores “cromadas”. Na história, os personagens encontram terras, as cultivam e passam a lutar por seus direitos, contra as forças que ameaçam tomá-las (fazendeiros, empresas). Na dimensão cênica, o filme abnega o extremo da verossimilhança (na busca por alimentos, nas danças, no trabalho com a lavoura) em detrimento de um caráter mais celebratório, mais lírico e otimista. A trilha sonora festiva só reitera esse caráter. Adiante, numa abordagem quase que documental, descobrimos que os fazendeiros e o prefeito da cidade apoiam a construção de uma barragem justamente no Vale do Mucuri, onde fica o Quilombo Marques, e os moradores desse quilombo são forçados a se mudar para uma chapada. O curta é essa trajetória, essa luta de um povo trabalhador quilombola por água, por terra e, sobretudo, por justiça social e garantia de seus direitos. 

Em Kaapora – O Chamado Das Matas (2020), de Olinda Muniz Wanderley, vemos a própria diretora do filme, que se assume indígena, passear por uma floresta de mata atlântica, explorando o espaço e nos apresentando a sua relação com a natureza (o cuidado que tem com as plantas e os animais), enquanto também narra, em primeira pessoa, um pouco da história e da luta do seu povo. A decupagem aqui se inventa, a partir das possibilidades do discurso, na beleza natural da ambientação. No plano fictício, Olinda se deita à raiz de uma árvore e dorme. Tem uma visão: se desperta aos pés do espírito de pajé que lhe faz uma bebida. Olinda bebe, dorme novamente e tem outra visão: se desperta sob o céu estrelado. Do céu, vagamos por elementos visuais abstratos, por raízes e folhas de plantas; depois vemos Olinda se transmutar na Kaapora: adquirir cabelos de cipó e pele vermelha como sangue. A Kaapora então transita nua pela mata e presencia as marcas da degradação ambiental: troncos podados, queimadas, lixos, peixes mortos sobre um rio poluído, e esqueletos de animais (aqui faz livre uso de materiais de arquivo). Olinda, em seguida, se transmuta na figura da “Jurema filha de Tupi”, e dança ritualísticamente dentro da noite. Ela deixa evidente a ligação espiritual que tem com a Terra e com a sua cultura. Após a dança, na dimensão formal ocorre uma hibridez de gêneros, para além de sua montagem já não tão linear (experimental): na primeira abordagem, é construída a narrativa fictícia e performática (a cosmovisão indígena, em contraponto à ideia de folclore); na segunda, documenta-se a partir de materiais de estética diversificada (fotografias, sons, vídeos de estilo amador). Do ponto de vista de seu efeito, é possível apontar esse experimentalismo na segmentação da montagem, e essa hibridez genérica (essas quebras de abordagem) como os geradores da dissonância rítmica e do desequilíbrio da narrativa. Por fim, na adoção dessa abordagem documental, descobrimos que o cenário de Olinda e da Kaapora se trata de uma área de proteção ambiental. Vemos a diretora do filme e colaboradores do Projeto Kaapora desenvolvendo atividades culturais e trabalhando com a recuperação ambiental: cuidando da mata e do solo, e plantando árvores. Sensível, belo e possante, o filme encarna o verdadeiro espírito do ativismo ambiental.

Em Orunmilá (2021), de Danúbia Serena e Rerisson Almeida, seguimos os passos de Juca, um rapaz negro, que faz sozinho uma trilha pelo sertão, defrontando-se com constantes sugestões de ameaça. Beirando o gênero do terror, em típico clima de sobrevivência, vemos o protagonista montar uma fogueira à noite, se atentar para movimentos estranhos na mata, e consumir uma substância alucinógena que traz dentro de um saquinho. Para simular o efeito alucinógeno, é diminuído o número de quadros por segundo da câmera. De modo alterado, certo de que alguém esteja lhe observando, Juca então grita e termina por cair ao chão desmaiado. Quando amanhece, apressa-se para ir embora, já que a sensação perturbadora de que algo o presencia (através de sons) é constante. Exausto, caminha pela mata, até poder se sentar em um canto e descansar. Quando um barulho repentino sai de dentro de uma caverna e o assusta, Juca, ao invés de correr, entra na caverna, vê um símbolo pintado na parede e põe sua mão sobre ele. É teletransportado para outra dimensão, caindo ao redor de sucatas e lixos. Para simular essa dimensão, a fotografia impõe um degradê de coloração azulada. À nossa frente surge a orixá Orunmilá, uma divindade profética, caracterizada com longos cabelos brancos e brincos feitos de circuitos eletrônicos. Orunmilá discursa sobre a dureza da vida dos trabalhadores rurais, cuja maioria são negros, pobres e analfabetos, explorados pelos novos senhores da região. Fala sobre a imagem e a memória do município de Conceição do Coité (BA), uma cidade construída sob o silêncio da população a respeito de seu passado escravocrata, e da historiografia que pouco registra sobre a escravidão no sertão baiano. Juca então retorna à sua realidade, agora mais assombrado do que antes. Dessa realidade na caverna, se desperta em sua cama eufórico e transtornado. Sua mulher lhe chama para ir ao trabalho. Juca sai de casa cabisbaixo, como um trabalhador rural que só então descobrimos que ele é. Do plano formal, as escolhas estilísticas do curta, isto é, a fotografia que se adapta a narrativa e as tentativas de causar estímulos (visual, sonoro, atmosférico), se dão em função de um efeito mais imersivo. Entretanto, a constante sugestão de ameaça não convence, muito menos impacta. O filme é sobre o estado de exploração do trabalho rural, e sobre a necessidade de rever e refletir a memória e a história de um município da Bahia.

Respeitando, sobretudo, o princípio da coletividade e da diversidade narrativa (do entrelaçar das raízes negras e indígenas), linguística e de público para qual os filmes são destinados; os elementos em comum que guiaram as escolhas da curadoria são de suma relevância social. Do ponto de vista formal, são filmes livres de certas convenções estrangeiras, são mais atmosféricos, e recorrem a uma hibridez de gêneros, a um olhar mais próprio. Do ponto de vista temático, são filmes que lidam com questões ativistas, ligadas às lutas por justiça social e por garantia de direitos civis; ou simplesmente contra o fim do mundo (em razão da pandemia, das degradações do meio ambiente); mas também são obras que exploram o místico, e as crenças metafísicas das populações indígenas e quilombolas. Sabemos que, tão importante quanto a produção de filmes como esses, dirigidos e protagonizados por negros e indígenas, de caráter inclusivo, baseados no respeito à diversidade étnico-racial e à pluralidade cultural, é a própria existência de espaços de difusão e discussão como a Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena. Se o cinema pode ser um instrumento de denúncia, de luta e de resistência contra a opressão, contra o preconceito e a violência racial, contra o colonialismo, é porque também podemos fomentar tudo isso em mostras como essa, reunindo o melhor da produção, propagando e discutindo cada filme. 

Reforçando, a III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena ocorre em formato online e gratuito. Todos os filmes das duas sessões estão disponíveis no site do Mirante Cineclube (mostraquilombo.mirantecineclube.com.br) até o dia 04/12 de 2021.

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