Cobertura: Sessão Motirõ | III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

Teve início, nesse domingo (28), a III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena, realizada pelo Mirante Cineclube. Neste ano o seu formato é online, organizado em duas sessões (sessão Motirõ e sessão Kilombo), e o acesso é gratuito. 

Adiante, falarei brevemente sobre os filmes que compõem a sessão Motirõ — termo de origem tupi-guarani e que significa um agrupamento de indivíduos com um propósito coletivo —, analisando cada qual a partir de sua narrativa e de sua linguagem.

Em Erêkauã (2021), de Paulo Accioly, vemos cartazes serem impressos. Nesses cartazes após colados às paredes, a imagem de uma criança se descolore. Essas imagens de papel, fotografias de uma criança indígena, começam a dançar, e nessa coreografia navegamos por muros, por postes, mãos, botijões, caixas de papelão, portas, etc. No plano simbólico, a dança suspende a opressão do tempo e da história. E ao fim a criança de papel volta a se colorir. O filme não é mais que uma segmentação de fotografias experimentais de espaços urbanos periféricos, acompanhada por uma trilha sonora eletrônica, metálica e percussiva, em que é tomada a criança indígena como símbolo da presença ou da ausência. Na sua profusão de estímulos visuais, na mistura de cores, manifestações e texturas de um morro carioca, possui um ritmo e uma dinâmica hipnotizante, e segue o mesmo caráter encantatório da abordagem de O Abraço Logo Vem (2020), ao proporcionar a harmonia do olhar. 

Ethxô Nandudya (2021), dirigido coletivamente por Fernando Matos, Narriman Kauane, Raryson Freitas, Tayho Fulni-ô, e Thales Matos; parte duma lógica de investigação para revelar o impacto da pandemia do coronavírus sobre a aldeia do povo Fulni-ô, o único do Nordeste que conseguiu preservar a própria língua. A abordagem do documentário responde ao caráter urgente do registro: segue uma decupagem mais livre, quase que jornalística; não deixando de lado alguns planos convencionais de entrevista. A sua trilha sonora dá um tom catastrófico à ambientação da aldeia que de nada difere de uma cidade qualquer. Mas é através da narração e dos depoimentos dos moradores, por meio da intrigante predominância da língua local (o filme é legendado), que concebemos as mudanças na forma de convivência da aldeia. Ouvimos do povo as suas crenças, suas visões de mundo, e as suas esperanças para o futuro.

Em 4 Bilhões de Infinitos (2020), de Marco Antônio Pereira, duas crianças conversam, contam histórias e fazem suas atividades de casa à luz de velas, sozinhas em casa, já que a energia foi cortada e a sua mãe se encontra no trabalho. Os diálogos das crianças, com um sotaque carregado, são cheios de ludicidade e de relatos de sonhos. No dia seguinte, passeiam pelo campo e fazem à sombra de uma árvore uma sessão imaginária de cinema. Através de planos fechados que buscam um sentimento como guia para a sua construção (uma fala expressa, ou um olhar direto), e de composições intimistas cujo ritmo lento é determinado por seu apelo plástico, o filme se atreve a ser um olhar fantástico e singelo sobre a infância: na aparição de um “portal”, nos insetos postos à chama de uma vela. O que impressiona e fica, é o naturalismo intimista da caracterização dessas crianças, sob o tom enigmático da atmosfera, sustentada pelo apuro da fotografia e da ambientação.

Em Fôlego Vivo (2021), realizado pela Associação dos Índios Cariris de Poço Dantas-Umari, testemunhamos alguns dos habitantes de uma comunidade indígena do povo Kariri, situada na Chapada do Araripe (zona rural do Crato/CE), falar sobre as transformações sofridas recentemente em suas terras de plantio: as desapropriações das áreas indígenas pelo Estado, a posterior venda dessas terras, as escavações para a construção de um açude, a instauração dos canais de concreto para a transposição do rio São Francisco. Na sua decupagem improvisada, os depoentes passeiam pelos ambientes externos e, embora não forneçam todas as informações necessárias para se compreender a dimensão do problema; o filme aborda o seu conflito de modo direto e engajado: empenha-se em captar, sem fins muito didáticos, as denúncias e a perspectiva do povo Kariri, de pé e de frente para a câmera. Os impactados por vezes também performam, ao se posicionarem, em plano conceitual, nos cenários onde se encontram o problema e suspirarem com profundidade, olhando para a câmera. Essa atuação se trata de uma alusão ao nome “fôlegos vivos” do qual o povo Kariri era chamado no passado, devido à força que possuía na luta contra as invasões colonizadoras.

Em Lealdade (2020), de Ana Stela Cunha e Milla Negrah Avelar, uma mulher negra sai das águas de um rio, no Quilombo de Damásio, estado do Maranhão, e parte para casa. No seu armário acha um antigo vestido português. Ela o veste. Em seguida, outras duas mulheres da família aparecem no quarto. Essas três mulheres negras discutem o valor da brincadeira da “dança portuguesa”, uma tradição que é parte dos extensos festejos juninos da sua comunidade. O diálogo as faz refletir a respeito do significado de permanecer reproduzindo a cultura de um povo que aos seus antepassados escravizou. Nesse diálogo, o áudio por vezes se dessincroniza deliberadamente da imagem, através de cortes, em prol de uma força expressiva. Até que, à noite, um homem negro idoso recebe o vestido de uma das mulheres e o incendeia sobre uma fogueira. O filme é uma ficção, mas dialoga com uma estética documental: os planos evidenciam a presença do nosso olhar, neles somos tal qual testemunhas íntimas da cena. 

Raiz Farinha Beiju (2020), é um filme realizado pelo Projeto de extensão Histórias de Quilombo Projeto de Pesquisa Práticas e conhecimentos quilombolas na Paraíba e no Rio Grande do Sul. Nele, acompanhamos alguns moradores da comunidade quilombola de Mitauçu, no litoral sul da Paraíba, que nos revelam na prática como que é utilizado o espaço de uma casa de farinha, a única da região ainda em funcionamento. Acompanhamos os narradores por uma câmera sem grandes preocupações estilísticas (senão a do video web): sempre na mão, sua decupagem é livre e improvisada. Uma rudimentariedade do dispositivo que só pode ser fruto de um trabalho de guerrilha. Assim, descobrimos o processo da farinhada, isto é, como que a farinha é produzida coletivamente, a partir da mandioca (um alimento que era muito utilizado pelos índios); para depois ser feito o beiju ou a tapioca. No fim das contas, os moradores falam das mudanças de costume, do fato de não se produzir mais farinha como antes, se queixam da perda dessa tradição alimentar.

Em Cinema Contemporâneo (2019), o diretor Felipe André Silva confessa, na voz da primeira pessoa e através duma fotografia antiga, a sua história de vida, de ter sido estuprado na infância e abusado de diversas formas por pessoas do seu círculo familiar. A decupagem é feita a partir de um único material de arquivo: uma fotografia antiga escaneada (a revelar um grupo de pessoas reunidas). Dessa fotografia vemos apenas partes recortadas pela aproximação do plano (texturas, mãos, pernas, um detalhe de roupa, e de braço de quem não sabemos quem é). Trata-se da mesma abordagem de Je Vous Salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard; com a exceção de que neste curta, ao fim, Godard revela a fotografia em sua integridade. Cinema Contemporâneo é um filme de escolhas estilísticas impositivas, que afirmam o seu caráter pessoal, confessional e determinado, e cujo peso de seu conteúdo nos apreende e nos compadece.

Inabitáveis (2020), de Anderson Bardot, conta a breve história de dois dançarinos negros e seu coreógrafo em uma companhia de teatro. Durante os ensaios para um espetáculo que abordará como temática a homoafetividade negra, esses dois dançarinos sentem dificuldade para se expressarem tal como deveriam: precisam encontrar a centelha ignitora da sua interpretação. Em paralelo aos ensaios, o coreógrafo da companhia constrói uma amizade com Pedro, um jovem menino negro que não se identifica como menino. Mas essa trama recua, cedendo espaço mais para as cenas de danças: para o erotismo dos corpos negros enlaçados sobre o palco do teatro, da floresta ou da cidade; para as metáforas visuais que também são construídas a partir de um realismo mágico. O filme possui uma decupagem convencional, um formalismo até; mas cuja abordagem está mais interessada no impacto dos seus estímulos visuais, e do seu apelo plástico-sensorial.

Percebemos que a curadoria, realizada por Lucas Litrento, Rose Monteiro e Ziel Karapotó, compôs a sessão a partir de filmes diversos, tanto do ponto de vista temático quanto linguístico: experimentais, convencionais, fictícios e documentais. São filmes que falam do sentimento de esperança, do desejo por uma mudança, ou da tristeza por certas transformações sofridas (sociais, do modo de convivência, das tradições). E embora saibamos que a desigualdade racial e o preconceito são os que colaboram para a introjeção desse sentimento de incapacidade no imaginário social das populações negras e indígenas; são esses mesmos filmes que também falam com o brio da conflagração, e da luta contra a intolerância e o racismo. Esta sessão, que se inicia com o elemento temático da dança e com a presença indígena, e por último vai se fechar igualmente com a dança e com a presença do corpo negro, cumpre o seu propósito de “entrelaçar raízes, de construir pontes e de abraçar o coletivo”. 

Vale reforçar que a III Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena ocorre em formato online e gratuito. Todos os filmes das duas sessões estão disponíveis no site do Mirante Cineclube (mostraquilombo.mirantecineclube.com.br) durante os dias 28/11 a 04/12 de 2021. 

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