Crítica: A Última Carta (dir. Eduarda Marques e Sérgio Onofre)

Texto: Thame Ferreira. Revisão: Chico Torres.

As Cartas do Silêncio

Algumas vezes a história nos presenteia com o timing perfeito. A oportunidade de assistir um filme com a temática do aborto, feito em Alagoas, na mesma semana em que as redes sociais se inflamaram com o debate da “bolsa estupro” não é só ouro, é diamante. Esse mineral possui o maior índice de Dureza do mundo. Compreendendo Dureza como uma propriedade mecânica da matéria sólida que determina sua resistência ao risco. Ou seja, diamante brilha, reluz lindamente, mas é capaz de riscar, marcar sem ter suas propriedades físicas destruídas. Vou encarar esse instante assim, com a preciosidade e Dureza de um grande diamante bruto, certo?

Tá, como assim “bolsa estupro?”. A futura ministra de direitos humanos do governo de Jair Bolsonaro, Damares Alves, anunciou essa semana um estranhíssimo projeto com esse nome que pagaria a miséria de 85 reais para que uma mulher vítima de estupro não abortasse.  Há quem diga que no Brasil não se descriminaliza o aborto, mas se legaliza o estupro. Dura essa expressão, né?! Mas dura mesmo é a realidade das mulheres que vivem uma gravidez indesejada. Tá, Thame, dois parágrafos escritos e o que isso tem a ver com o filme “A última carta”?

Até que ponto há intencionalidade consciente do discurso que se apresenta na narrativa e imagens? Essa questão costuma permear as produções que são feitas de modo coletivo, principalmente em uma oficina de iniciantes no cinema. O fato é que toda a narrativa do filme é conduzida pelo personagem principal. E apesar do tema no Brasil ser estigma de mulheres, que são tratadas como criminosas, o filme toma a decisão de ser construído do ponto de vista do masculino, do rapaz. O maior acerto do filme é mostrar exatamente como tudo referente a gravidez não passa por ele prioritariamente. Entretanto, toda a relação com a personagem feminina, Estéfane, foi conduzida por ele, o que aumenta a potência do enredo de abandono.

Desde o primeiro momento a tônica do discurso machista e patriarcal, dominador egoísta e irresponsável emocionalmente fica explícito. Mas é quando ele está se barbeando, enquanto homens falam de suas famílias, que isso se concretiza de modo mais ruidoso: “aproveitando esse gancho de vocês de filho, saí de minha cidade natal, deixei minha namorada grávida para correr atrás desse emprego… Minha situação está séria, não estou sabendo pensar direito em relação a isso, tenho muita coisa, filho, trabalho novo…”. Me doeu assistir o rompimento do silêncio de Hugo assim. Sem nenhuma expressão de remorso, como se ele apenas tivesse feito o óbvio, algo simples, fácil.

Essa cena na barbearia é central na apresentação dos conflitos internos de Hugo.  Há uma construção de personagem linear, e por isso mesmo retrata perfeitamente a caricatura masculina diante do amor, do sexo e do aborto, tudo mais como consequência de padrões e expectativas sociais do que qualquer traço de caráter. O caráter, a moral interna do personagem não se desenvolve. Há uma ética social no filme análoga a que existe nesse nosso duro mundo real, que permite Hugos irem e virem, abandonarem e voltarem com naturalidade, depois de uma epifania com algo insignificante como uma conversa informal entre desconhecidos enquanto se apara os pelos faciais.

Infelizmente, como há essa construção pouco profunda dos personagens, que até funcionou para o masculino, relega o feminino a um espectro de passividade perigoso. Ela está sempre à espera dele, quem toma as atitudes de ligar, de procurar, de cortejar, inclusive à mercê desse abandono. Entretanto, há uma inflexão diante do aborto, e quem fica sozinha e isolada diante de qualquer possibilidade de atitude é ela.

Resta o silêncio da culpa moralizante cristã, resta o papel e as silenciosas letras para desabafar. Como se a responsabilidade fosse apenas dela, com todas as cargas sociais, emocionais e financeiras diante da possibilidade de uma criança que foi feita pelos dois, numa relação que foi apresentada ali como estável e de longo ou médio prazo (a partir de um plano muito bonito utilizado como recurso para passagem do tempo). E esse discurso é perigoso, é tangente à culpabilização moral e social da vítima.

Ou seja, o filme acerta quando mostra que no Brasil o homem é eximido de responsabilidade, segue sua vida, enquanto a mulher é isolada nessa ilha de medo e, se opta pela difícil decisão de abortar, coloca sua vida em risco (seja pela possibilidade de morrer pela não assistência médica legalizada, seja pelo trauma que pode gerar transtornos psíquicos a longo prazo). Essa possibilidade de reflexão a partir de um curta feito por jovens alagoanos é urgente e imprescindível diante da nossa conjuntura pós-eleição 2018.

Vou arriscar e dizer que para vivermos num Brasil como esse (o real e o retratado no curta), com políticas públicas que pressionam vítimas a manterem gravidez fruto de violência; com nosso corpo sendo violado pelo Estado; com a cultura da isenção masculina de responsabilidade e sua falta de maturidade ou educação emocional; nós mulheres precisamos desenvolver a propriedade mineralógica do diamante e sermos duras, rompendo ao silêncio social imposto, enquanto permanecemos resistentes aos muitos riscos que a navalha social e afiada impõe à nossas diversas e coloridas peles.

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