Crítica: Leve A´mar (Kátia Rúbia) e A Última Carta (Eduarda Marques e Sérgio Onofre)

Texto: Leonardo Amaral Revisão: Larissa Lisboa e Paulo Silver

Primeiros Passos Ainda São Passos

Filmes de oficina tendem a ser também primeiros filmes, primeiras formas de olhar. É a partir dessas obras que o cinema como prática, cinema como forma de expressão, pode ser percebido como uma linguagem possível e legítima para aqueles e aquelas que a praticarem. É um ato semelhante ao de primeiras palavras, uma busca por uma voz que poderemos formar como nossa, ainda que de início se estruture na repetição daquilo que está ao nosso redor. Até obter essa autoria, carregamos as narrativas que consumimos durante anos de vivências, aquelas que absorvemos na maioria das vezes de forma acrítica no nosso contexto de mercado de filmes hollywoodianos, país colonizado pelo cristianismo e sociedade de consumo. Entre as consequências desse estágio inicial como cineastas temos a repetição dos mesmos caminhos já tomados e o apagamento de uma expressão própria.

Não é surpresa, então, que dois dos filmes realizados em oficinas da primeira noite da IX Mostra Sururu de Cinema Alagoano, Leve A´mar A Última Carta, apresentem diversas semelhanças, ainda que seus núcleos de realização se deem em municípios distantes, Arapiraca e Penedo, respectivamente, e sejam realizados por equipes de faixas etárias diferentes. A inocência que surge da idade e da inexperiência de seus realizadores se faz perceptivelmente presente na gênese dos projetos, mas isso não quer dizer que os filmes não devem ser levados a sério. Se há respeito para com esses filmes, se há respeito por qualquer filme, demonstra-se no quanto estamos dispostos a falar sobre eles, escrever sobre eles, legitimar sua existência como uma obra de relevância, ou seja, que vale a pena ser discutida.

Leve A´mar foca em um encontro romântico na vida de um casal heterossexual; eles retornam à praia para um encontro romântico, local esse de muito significado dentro do imaginário nordestino e especialmente alagoano, entretanto, as personagens guardam lembranças bem mais específicas. Lá, dialogam sobre o passado, outras vezes que foram a praia, e expectativas de futuro. Porém as memórias afetivas que elas parecem ter, saudades sentidas, não potencializam a obra, pois não são utilizadas de forma que tenham impacto ativo nas personagens para além de um tópico de conversa. Ainda assim, há na interação entre os atores de Kátia Rúbia um frescor espirituoso, que parece surgir da experiência como atriz que Kátia apresenta, especialmente quando o casal se encontra com um antigo amigo.

Enquanto isso, A Última Carta trata de um jovem relacionamento heterossexual no seu começo, meio e fim. Diferente de Leve A´mar, que aborda um momento na vida do casal, o filme de Sérgio Onofre e Eduarda Marques lida com um relacionamento de forma completa, o que traz mais problemas do que acertos. O formato de curta-metragem demanda uma narrativa compreendida de forma distinta de um longa. Prova das consequências que não assimilar essa noção a criação do filme apresenta é a maneira que o curta se acelera entre os momentos chaves desse casal, desvalorizando suas interações que não tem o tempo necessário para desabrochar em um drama honesto. A bagagem cultural concentrada em longas estrangeiros fora da nossa realidade de produção ocasiona nisso, polui o horizonte de até onde e de que maneira podemos alcançar formas de realizar.

Pela inexperiência de seus realizadores e pelo processo de descoberta intensa de qualquer oficina, percebemos a falta de um sentido de organização estética. Isso se demonstra tanto a nível de encenações quanto na decupagem de imagens que intensifiquem os temas e emoções apresentados. E muitos podem tentar diminuir esse problema e, ao mesmo tempo, diminuir a expressão desses cineastas como algo válido, mas ser condescendente não cabe na postura de quem realmente se importa com cinema. O fenômeno em questão é claramente consequência não só de narrativas do mercado estadunidense como norma, mas também da imediatista linguagem publicitária que nos cerca e impregna as obras. Isso vai da maneira que os drones filmam a praia tal como uma propaganda política em Leve A´mar, até os ângulos de baixo para cima que as personagens femininas e a moto são filmadas em A Última Carta. São cenas captadas não de maneira especificamente pensada, mas feitas porque supostamente seria assim que se filmaria algo do tipo; a imagem que não atende as necessidades da obra a esvazia em um atrito destrutivo, uma dialética de conservação estética entre o já visto e o já falado.

Conservadorismo esse que também surge da nossa formação punitiva cristã e se apresenta nos arcos dramáticos de suas personagens, mesmo que a intenção seja outra. Ambos os filmes tratam de histórias de amor, histórias de casais, com finais trágicos. E a tragédia romântica, que surge desde seu princípio baseada na fatalidade por excelência, carrega moralismos e normativas de gênero de forma despercebida, mas claras. Pela desobediência das personagens femininas, por não seguirem aquilo que se espera delas, seja se interessando pelo casamento, ou tendo um bebê que não desejam, a consequência de ambos os filmes é a morte como moral. E esse fim da vida das personagens é o ensinamento para que os homens passem a valorizar as oportunidades e enfrentem a consequência de sua negligência; as mulheres são ferramentas para evolução do homem que precisa amadurecer. É especialmente incoerente no caso de A Última Carta porque parece haver uma tentativa de lidar com a morte de mulheres em decorrência do aborto, mas acaba atacando a agência das vítimas antes dos defeitos nesse sistema, nessa sociedade e como configura as posições dos gêneros dentro dela.

Em uma punição divina, o Deus do antigo testamento ressurge dos espaços vazios que ocupa em nossa mente por toda uma vida. Ele passa a permear as inconsequências dessas juventudes, seus cenários dessaturados, do interior do estado até o horizonte do mar; ao fazer isso, retém os corpos que escolheu instrumentalizar e reprime a permanência das personagens que se direcionam para um futuro feminino, aquele mesmo que está em direção a novas formas de olhar. Precisamos cortar os laços com a linguagem inconsciente e substitui-la pela consciência; cortar a emulação de “imagens certas” pela criação de novas imagens. A câmera não é só fonte de registro de uma narrativa que se desencadeia frente aos nossos olhos, não há história que é só uma história; é a ferramenta que tece a realidade fílmica, uma realidade já vivida diversas vezes em outras mentes, por outros autores. Como dar nosso toque, como se apropriar e trazer nossa identidade para a obra, é o principal trabalho de qualquer diretor ou diretora. Portanto, tudo que eu falei é se não fé na possibilidade da melhora dos cineastas que desejarem seguir em busca de suas vozes, assim como um atestado da necessidade de diversificar os olhares e narrativas possíveis. Primeiros passos ainda são passos, na direção do que estão indo é responsabilidade de cada um compreender.

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