Crítica: Besta Fera (dir. Wagno Godez)

Texto: Lucas Litrento. Revisão: Larissa Lisboa.

PUNHAL

Trabalhar dentro da estrutura clássica permite explorar os elementos temáticos de praxe e a identidade preestabelecida desde as obras primeiras. É voltar lá atrás, em Homero, e seguir todos os vacilos de Odisseu; é traçar a jornada do herói, repetida à exaustão na literatura e no cinema. Por mais que seja A Fórmula, explorar o modelo clássico é se jogar num mar de cacos de vidro. Pode parecer o caminho mais fácil, mas errar a estrutura batida, o esqueleto eterno, é pior do que não ter sucesso em reconstruir a roda com pedaços de seda.

Se esse esqueleto é composto pelos três atos da narrativa e pela construção do protagonista por meio de etapas que se repetem na maioria das histórias, o desenvolvimento da expectativa é a alma de qualquer obra.

É óbvio que em Besta Fera (dir. Wagno Godez) não vemos todos os estágios do Monomito. Afinal, trata-se de um curta de 25 minutos. É preciso que, acima de tudo, o roteiro seja sucinto e evite rodeios. Pois, como discutido em A Porta (dir. Robson Cavalcante e Claudemir Silva), exibido no dia anterior, o tempo pode ser tudo: do instante-já à iminência da morte que se aproxima. É por isso que quase meia hora de exibição pode resultar tanto numa obra fechadinha, quanto num curta recheado de lacunas e cenas corridas. Pensar nessa duração aproximada, que pra muitos já beira o limite para curtas, é um exercício de pensar as escolhas dos realizadores no último ano e da curadoria dessa edição da Mostra Sururu. Grande parte dos filmes investiram nesse corte final e a obra de Wagno Godez, em quase todos os momentos, transita bem pelo tempo espaçado.

A premissa é simples. Sertão alagoano na virada pro século XX. Mariano (Filipe Rios) atrás de bichos fugidos, acha um homem misterioso (Eron Cordeiro) jogado na terra seca, ferido. O menino o acolhe, leva o homem para a sua casa. Sua mãe, Flora (Marcia Mariah), não gosta da ideia, reluta em aceitar o estranho, mas o acolhe até que melhore. O homem muda a rotina da família, que ainda tem que lidar com o Coronel (Julien Costa), dono das terras, de tudo.

Partindo dessa narrativa, Godez amarra um primeiro ato coeso. O diretor não se preocupa em correr e apresenta cada uma das personagens naturalmente. É interessante o jeito que algumas falas assertivas e demais nuances revelam muito sobre a interioridade e a relação familiar. E talvez o fator responsável por esse efeito instantâneo seja a direção do elenco. A química entre a tríade de atores é o ponto alto do filme. Julien, que atuou muito bem em Leve A’mar (dir. Kátia Rúbia), fica à parte. O que não é necessariamente um problema, seu personagem é um vulto, a personificação oculta da ameaça. No entanto, certo apagamento pode ser reflexo dos defeitos do último ato.

Voltando à tríade, vemos um elenco muito bem trabalhado que nos entrega uma das melhores atuações entre os curtas da IX Mostra Sururu. Embora, naturalmente, o burburinho tenha ganhado mais força com a presença de Eron Cordeiro, ator que já transita em diversos espaços do teatro, cinema e tv, a concentração da potência dramática está nas atuações de Felipe e Marcia. A dupla alagoana transmite com silêncios e cenhos franzidos a dureza da vida sertaneja. Como se transportados das páginas escritas por Mestre Graça, mãe e filho são parte do todo. A pele dura da cor da terra, a pele suada. O silêncio de Fabiano, a raiva de Fabiano, a esperança de Vitória. Enquanto Mariano caminha como se fosse parte da terra, sua mãe é a mãe de todos os sertanejos, como se forjada pelos pontos e vírgulas de Graciliano. Mariah constrói a força-motriz do filme. A mãe que passa por inúmeras dificuldades, abusos cruéis, e resiste pela sobrevivência da família. Seus olhos são mais fortes que qualquer cerca ou muralha, fulminam, mais quentes que o chão do meio-dia.

Eron mostra a segurança que tem e vive um personagem pontual. O papel do homem misterioso, muitas vezes mal representado em westerns e filmes de ação americanos, é mais difícil do que aparenta. E o ator cumpre o papel, até fortalecendo a dualidade do seu personagem no primeiro ato, “será mesmo um pistoleiro, um rico que foi roubado ou um doutor? o que é que esse branco engomadinho tá fazendo aí perdido, hein?”. A única ressalva salta do seu corpo. Branco demais para um cangaceiro, limpo, polido demais. Faltou um pouco de maquiagem, uma terrinha, só o suor não basta. Bom, antes deixar o ator na sua cor natural do que exagerar e confundir pele queimada do sol com blackface, como fazem alguns aqui na cidade, enfim.

O segundo ato dá sequência ao ritmo do primeiro, é quase a cadência de um longa. Sem medo de silêncios e cenas intimistas, Godez apresenta a ameaça e o desejo de futuro de Mariano. A fotografia de Henrique Oliveira chega ao ápice quando a noite cai, no meio do filme. A luz natural pincelando os planos feito água, a técnica é certeira e casa com o tom do roteiro, exceto em alguns momentos, quando a sujeira é mais necessária que o tom pastel e a clareza da trilha das luzes se torna poética demais.

Tudo isso constrói uma expectativa. A espera pela vingança de Flora, mulher forte e lutadora desde o início; o dilema de Mariano entre fugir com o misterioso ou ficar com a mãe; a proposta do homem à mãe, de que todos fujam juntos. O terceiro ato é levado aos últimos momentos do filme e, infelizmente, é resolvido muito rapidamente. Não que uma resolução rápida seja necessariamente problemática, mas nesse caso é como um banho de água fria.  A expectativa alicerça um final maior e mais construído. O roteiro desenha um caminho que parece levar para um desfecho mais resolvido, em que todas as personagens sejam contempladas. Flora é a mais prejudicada com o final, some no ponto de não-retorno.

O desfecho um tanto quanto atropelado não atrapalha a experiência do filme. O punhal dos últimos segundos perde um pouco da potência. Mas quem prestar atenção verá punhais desde o início, nos olhos afiadas da mãe e do filho. O punhal na fala, no gesto, no calor do sertão nordestino.

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