Crítica: Bumba Meu Jaraguá (direção coletiva)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

Bumba Meu Jaraguá (2015), para além de assumir a tradição perceptiva, é um documentário que trabalha a partir do esvaziamento urbano como esfera temática, com a não-figuração na sua dimensão cênica, e com elementos estilísticos explicitamente simbólicos no propósito de ser, simplesmente, um fluxo de imagens singelas-realistas de constante e requinte sugestão, a evocar uma poética sensorial.

Muitos desconhecem, mas, por ter sido o bairro que fundou Maceió, Jaraguá já foi sinônimo de alegria e diversão. Porém atualmente o bairro vem sofrendo de decadência e as demais consequências do abandono do poder público, cuja tendência futura é a de que haja uma perda de todas a suas referências culturais. Em vista disso foi que o filme se valeu de certo despovoamento humano e de um sentimento real de esvaziamento de significados, percebidos nos edifícios históricos fechados e na pouca movimentação nas ruas, para estruturar a sua própria unidade estilística.

Desse modo, a cinematografia, numa busca simetricamente expressiva e de apelo à contemplação, mas também sóbria, insípida e impessoal, esmera-se a compor enquadramentos precisos e harmônicos de ruas vazias e edifícios em ruínas, como que a construir uma verdadeira cidade fantasma. É notório nesses planos, com exceções de algumas movimentações que ocorrem à certa distância, a completa ausência corporal e figurativa humana. Até os próprios indivíduos que deram os seus depoimentos não revelam os seus rostos.

A arte cenográfica, e também muito da fotográfica, é elaborada a partir de artifícios explicitamente sígnicos e metafóricos. As fitas carnavalescas perdidas às calçadas, as frases em grafite, e os batuques e sombras de danças e de alegrias manifestas, projetam uma herança folclórica sobre a origem de uma cidade e de um povo, além de uma postura militante em relação a preservação do patrimônio cultural. Ou mesmo o plano da estátua da liberdade voltada a um interditado terreno de casas demolidas (antiga vila dos pescadores do Jaraguá), e na praia a cisão entre águas de cores distintas, são escolhas estilísticas que demonstram um interesse em denunciar um problema social (de bairro) que é agravante. O boneco do Bumba Meu Boi também, ao fim, erguendo-se e sambando em sua terra, sob um enquadramento tão fechado e tão cheio de sutileza quanto uma representação onírica, é o signo da morte e da ressurreição, é o grande símbolo do renascimento do Jaraguá.

Semelhantemente a música, o propósito do dispositivo do filme é ser um fluxo de imagens singelas-realistas sintetizadas, a evocar uma poética sensorial, e de constante e requinte sugestão, em forma de um documentário. Por isso é que, através de sua decupagem, dar-se a ausência de rostos, a não-figuração, e a construção de uma experiência que envolve os seus próprios sentidos.

A abrir espaço para uma intrusão do espectador no âmago do filme, a câmera vaga à mão ao som de uma trilha sonora misteriosa, e de sutil serenidade. Levando em conta que, o som ambiente, capitado de maneira direta, também é usado como trilha sonora. Os depoimentos em off são expressivos e, tal como as imagens expressivas das ruínas, são os poucos indícios humanos. A montagem é coesa, a sua abordagem é intimamente emblemática, metafórica e, por querer sugerir justamente uma evidencia dos seus próprios sentidos, a composição dos planos se volta para aspectos imensamente sugestivos. Trata-se, pois, de um olhar e de uma sensibilidade interessados em intuir um ritmo especifico de sua natureza climática e, em função disso, voltados para a concisão e a sugestão.

Bumba Meu Jaraguá, portanto, para além de concretizar em sua mise-en-scène muito de sua tradição perceptiva – na escolha temática por tratar de questões sociais, por denunciar a degeneração do meio ambiente, e salvaguardar a memória –, também consegue integrar, de maneira harmônica, a sua própria declaração estilística.

Enquanto Monstro de Que Nada (2015) parte para um hibridismo experimental tão bem inventivo e, embora tenha princípios bem específicos, em suas sequências acaba se tornando irregular; por sua vez, Isso Vale Um Filme (2016) se desequilibra numa busca por explorar simultaneamente uma série de abordagens estéticas, como um dispositivo que está sempre tentando se achar (e dessas abordagens só se acha em uma); Bumba Meu Jaraguá, ao trabalhar a partir do esvaziamento urbano como esfera temática, com a não-figuração na sua dimensão cênica, e com elementos estilísticos explicitamente simbólicos, concretiza com a mais perfeita harmonia a sua abordagem de ser um fluxo de imagens singelas-realistas de constante e requinte sugestão.

O filme se realiza tanto nas frases grafitadas nos muros que a câmera anseia em enquadrar – “Lágrimas de sangue”, “O poder do povo está na sua cultura”; nos artifícios simbólicos (folclóricos, carnavalescos) que aludem e se fazem refletir; na beleza contemplativa, imponente e plástica das ruínas do Jaraguá em contra-plongée, quanto na sua busca moral por denunciar o abandono e o vazio urbano do bairro histórico da cidade de Maceió.

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