Crítica: Cavalo (dir. Rafhael Barbosa e Werner Salles)

Texto: Leonardo Amaral. Revisão: Janderson Felipe e Larissa Lisboa. Imagens: Divulgação e Vanessa Mota. 

Cavalo (Rafhael Barbosa e Werner Salles, 2020) se vê em uma encruzilhada. Primeiramente pela busca que realiza no tempo de quase 90 minutos, iniciada com o resgate de uma gênese historicamente suprimida, a origem do mundo a partir do Candomblé, e se enveredando pelas jornadas de identidade e autodescobrimento de seus 7 personagens. Segundamente, por ser o primeiro longa-metragem alagoano fruto de um edital, por isso é impossível assistir, e com certeza impossível produzir, sem essa noção pesar sobre os ombros. Mas afinal o que seria esse peso, e o que ele faz com o corpo?

No filme acompanhamos um grupo de dançarinos, cantores, performers, atores: artistas. Os seguimos em suas jornadas de descobrimento, sendo impulsionados por perguntas que podem ser vistas na preparação de elenco que o filme nos mostra em sua primeira metade: “o que move meu corpo? Pra quem eu danço? Por que eu danço? O que paralisa o meu corpo? O que gera desvios no meu corpo?” As perguntas surgem como pontapé para alguns dos interesses do filme e, ao mesmo tempo, como uma prática desalienante através da percepção da própria mobilidade. A partir disso, não é o corpo que significa, que é, é o que está: tecendo a realidade, rasgando-a com sua existência, sua materialidade. A unidade dramática de Cavalo não se dá pelo que os corpos representam, pelas respostas a essas perguntas; a sua potência e razão se encontram no movimento, dos atores e do mundo a sua volta, de Maceió na sua fluidez.

Ao adotar essa cosmologia do movimento, Cavalo se permite transitar por diversas abordagens distintas para produzir suas imagens, apresentando uma variedade de técnicas para lidar com os descobrimentos de suas personagens. Utiliza-se de entrevistas (tanto com os atores quanto com suas entidades), filmagens feitas pelos próprios dançarinos em casa, rituais, danças, acompanha cotidianos, tudo em um mesmo filme sem declaração de hierarquia entre cada um desses momentos, gerando uma promoção de pluralidade, e adoção do sincretismo como norma dessa progressão, como é possível ver no acompanhamento do processo criativo de um rap da periferia de Alagoas em um mesmo filme que tem o louvor, tem Baco Exu do Blues, tem Sigur Rós.

Para dar conta dessa diversidade, Cavalo adota uma postura de gênero híbrido, indefinido entre categorias supostamente claras do cinema, o documental e a ficção, atendendo a necessidade de fuga de moldes, de padrões comerciais. É o filme formalmente reiterando onde lhe interessa estar, o que deseja confrontar. Como a cartela do texto inicial que nos apresenta um outro mito de criação, um rompimento claro com a razão colonial, com o cristianismo, com o capitalismo, e, no fim das contas, as imagens que foram produzidas por eles. Mas então, superando essas estruturas dominantes, esses traumas históricos, qual será a referência, e como poderemos nos ver?

A mesma água que nos forma é onde refletimos, e o movimento borra, o movimento altera. As danças de Joelma Ferreira no começo e na sequência final em um fundo preto, tendo de companhia somente a imagem turva contra o espelho d’água exemplificam bem isso; a simetria é incapaz de conter o que se move, é insuficiente. Logo após essa cena há o movimento continuado de Joelma, mas agora nos pés do pescador batendo lama no barco. Não há só uma relação, há uma comparação direta, eles se igualam, movimentos que se fazem com a mesma naturalidade, peso, expressividade, história. A montagem constantemente faz o filme escapar de nossas mãos, ela não permite ser delimitada, resolvida. Como dito por Joelma: “Eu não tenho muito dúvida sobre a dança. É um lugar que não me deixa pensar muito.

Rafhael Barbosa e Werner Salles encontram na performance desses corpos, na manifestação desses cavalos, um local frutífero para a criação de práticas que combatem hegemonias, combatem noções estabelecidas das identidades que lidam. Dar câmeras para que os personagens produzam as próprias imagens de si em casa, por exemplo, é dos gestos definidores para colaborar com o rompimento de um controle, um olhar dominante sobre esses corpos, e incentiva a busca por uma autoimagem. Um gesto que sinaliza a compreensão de que o outro começa onde eu termino, e já que celulares e câmeras são novos membros dos nossos próprios corpos, as imagens que eles produzem também. Isso faz do próprio filme não só um emaranhado de entrevistas e rituais, autodescobrimentos e corpos, mas os conecta em uma simbiose. Cavalo é corpo, um que está aberto a ser atravessado por diversas personagens e vivências, movimenta e se espalha, apresenta o cinema alagoano de longa-metragem para todo o Brasil, não buscando somente abrir caminhos, mas multiplicando-os.

Cavalo faz parte da programação do 3º Festival Ecrã e está disponível online entre os dias 20 e 30 de agosto.

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