Crítica: Escreva (dir. Tuanny Medeiros)

A DELICADEZA VISCERAL DE ESCREVA

Revisão: Larissa Lisboa e Rhary Oliveira. Imagens: Divulgação.

Apesar dos seus breves dois minutos, Escreva tem o poder de prolongar-se na mente de quem o assiste, tal a força da sua construção, a sua delicadeza visceral.

Escreva, de Tuanny Medeiros, é um curta-carta-convite, construído a partir de uma relação texto-imagem em que sonho, poesia, memória e agenciamento tecem uma dança de significados orquestrados pela voz. O filme foi selecionado para compor a programação da I Mostra Quilombo de Cinema Negro, promovida pelo Mirante Cineclube, que ocorreu entre os dias 20 e 22 de novembro, no Arte Pajuçara.

Logo na abertura do filme, enquanto vemos a sombra de um silhueta feminina projetada na areia da praia, ouvimos a voz, também feminina, em off: “Eu tive um sonho na noite passada. Sonhei que a gente se encontrava, conversava. Você me fazia tantas perguntas. Queria saber de seus erros, seus acertos. Queria saber sobre a mulher que você se tornaria.” O registro vocal brando, calmo, estabelece o tom de um diálogo amistoso e intimista. E então ouvimos: “Acordei com saudades de você — a menina que eu fui, aos 9, aos 14.” A partir desse momento, o curta entra em uma dimensão em que a licença poética abre um buraco nas leis da matéria, subvertendo tempo e espaço, para construir, visual e textualmente, um diálogo inusitado: a interlocutora dessa voz feminina é ela mesma — a Tuanny adulta dirigindo-se à Tuanny criança.

Tendo conhecimento da natureza desse diálogo, torna-se bastante significativo o fato de que, ao dirigir-se à sua interlocutora, o que vemos em cena é justamente a imagem de uma sombra. E o que é a sombra senão uma duplicação do eu, que é ao mesmo tempo eu e outro/a?

O tema do eu duplicado (Doppelgänger) é caro aos estudos das narrativas — míticas, literárias, cinematográficas. Embora acredite que Escreva possui estreitos diálogos com certos aspectos do duplo, prefiro explorar outras veredas, sem restringir o filme a uma única chave de leitura. Da sombra — enquanto uma forma de manifestação do Doppelgänger —, retiro apenas a seguinte reflexão: para que ela exista, é preciso que haja luz. Luz, iluminação, esclarecimento, entendimento: ao lançar um olhar (luz) para o seu passado, Tuanny projeta a sua própria imagem (sombra) sobre a superfície turva de sua memória. Porque recordar é também recortar, a rememoração implica automaticamente em reconstrução. E a memória é esse imenso HD viscoso, no qual é impossível tocar sem contaminá-lo, sem contaminar-se. É por isso que “a memória”, como disse o poeta, “é uma ilha de edição”.

Muito além de uma ensimesmada cisma do conversar consigo mesmo, o curta de Tuanny Medeiros, lançando mão de poucos artifícios técnicos, mas empregando-os de maneira precisa e criativa, penetra fundo nesse lugar ambíguo da rememoração, em que nostalgia e desejo se misturam. “Acordei com saudade de você e resolvi te escrever”, continua a voz em off, enquanto desfilam pela tela os registros em VHS de um aniversário. E o que se segue a isso, textualmente, é uma série de conselhos: “Menina, ouça seu pai. Ele vai soprar arte em seu coração”; “Esteja com sua vó e seu vô o máximo possível. Pergunte a eles sobre as histórias que viveram. Aprenda com eles. A saudade será tua companhia quando eles partirem”.

As palavras da narradora dão margem para especulação: o que ela pede à Tuanny criança é aquilo que fez ou o que gostaria de ter feito?  Neste caso, a carta (bem como o filme) seria um gesto de reparação? Uma tentativa de apaziguar-se com seus próprios fantasmas? A dúvida que mora nessas entrelinhas tem um sabor entre a melancolia e fantasia — entre o que foi e se perdeu, o que não foi, mas poderia ter sido, o que nunca foi e nunca será —, e é aí que Escreva revela a sua delicadeza visceral.

Desde seu título, o filme nos leva para o campo da linguagem. O verbo, no imperativo, funciona como uma ordem ou uma convocação. E um dos itens da série de conselhos à Tuanny criança é justamente este: “Escreva. Escreva todos os dias. Conte suas histórias. Suas palavras importam. Não abra mão delas nunca.” Esse convite à escrita pode ser lido de duas formas — uma imanente, voltada para as questões fílmicas, e outra mais ampla, focada em questões históricas e políticas.

No que se refere à construção narrativa, no momento em que essa convocação à escrita é feita, é como se o filme se dobrasse sobre si mesmo: na carta endereçada à Tuanny aos dez de idade, a Tuanny de hoje pede àquela que escreva. E é justamente isso que a Tuanny de hoje faz com seu filme: escreve, atendendo a um pedido que lhe veio do futuro — e assim, metaforicamente, o filme cria um looping interno, uma distorção espaço-temporal: lírica fita de möebius.

Não se pode escapar ao fato de que, pelo menos em sua superfície, essa carta-convite ecoa a retórica dos discursos motivacionais — os ame-se, você é linda! & derivados. No entanto, as camadas mais profundas desse pensamento nos levam aos debates acerca da escrita enquanto espaço simbólico de poder, que opera por meio do apagamento das subjetividades marcadas como diferentes em relação ao homem branco ocidental — mulheres, negros/as e indígenas. Nesse sentido, a escrita pode ser entendida como um gesto de resistência.

Em seu ensaio-manifesto “O riso da Medusa”, Hélène Cixous inicia seu texto convocando as mulheres à escrita: “É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre mulher e traga mulheres à escrita”. O texto de Cixous, publicado originalmente na década de 1970, apesar de datado em certos aspectos, e de ter sofrido as pertinentes críticas do feminismo interseccional, sobretudo por conta de seu caráter essencialista, ainda é bastante iluminador de algumas questões contemporâneas. Ao pedir que as mulheres escrevam e se escrevam, Cixous visa à recuperação do lugar do feminino na história da humanidade (majoritariamente escrita por homens). Mas a filósofa e escritora francesa também faz questão de chamar atenção para o fato de que a história da escrita se confunde com a do falocentrismo: “certamente na linguagem se esconde um oponente invencível, porque é a língua dos homens e sua gramática”.

O convite à escrita, portanto, representa também um desafio. Como escrever usando uma língua que não é sua, regida por uma gramática que tem o masculino como padrão? Como em um dos jogos de escrita constrangida do OuLiPo, é na tentativa de transpor esses obstáculos que a criatividade encontra forças para realizar-se artisticamente.

Tuanny Medeiros encontra no audiovisual as ferramentas necessárias para a sua carta intersemiótica, que opera os seus sentidos na confluência das linguagens. Ao falar de si e para si, ela fala ao mesmo tempo a todas, a todos, a todes. Aqui o singular se apresenta com tamanha força que atinge o universal, e esse convite à escrita — à maneira de mensagens em garrafas lançadas ao mar — acaba sendo estendido aos espectadores e espectadoras.

O curta termina com “[e]u estarei aqui esperando por você”, anunciando um encontro que jamais ocorrerá, mas que, no entanto, acabou de ocorrer diante de nossos olhos.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*