Crítica: Furna dos Negros (dir. Wladymir Lima)

Texto: Felipe Duarte. Revisão: Chico Torres.

As memórias encavernadas do Quilombo

Sou um jovem branco de classe média. Vivi toda a vida na metrópole, e a vida nos interiores me é pouco familiar. É muito importante destacar isso, já que, crendo tanto nas divisões sociais e nos movimentos que as combatem, minha mente não me permite partir de nenhum outro lugar quando analiso minha experiência assistindo Furna dos Negros.

O curta documental de Wladymir Lima explora a atualidade dos quilombolas da tabacaria, apresentada a mim nas vozes e histórias dos próprios. São expostos o descaso e o esquecimento que dão forma ao cotidiano dessas pessoas, assim como as histórias e heranças que os formaram e que carregam consigo com persistência, talvez por serem umas das poucas coisas que podem dizer que possuem.

Em certo momento, uma das personagens diz não sonhar, seja o sonho bom ou ruim, pois não há muita utilidade nisso. O terreno quilombola, completamente rural, tem então suas muralhas postas na fronteira, erguidas no ponto onde o interesse do mundo some e os recursos não entram. Apesar desse cenário, ainda se nota a felicidade de estar dentro dessa muralha, em suas casas ou lonas, e de ter algum terreno, que era também negado aos quilombolas.

O filme assim se desenrolou, com as histórias de sofrimento de pais e avós, a religiosidade inerente e fundamental da mulher rezando à luz de velas, o sofrimento impregnado na voz arrastada de uma senhora e a própria furna (caverna que abrigou e salvou várias vidas negras) sendo registrados, e em certos momentos, confissionados. Através do reisado e dos contos, mostrou a proximidade desses indivíduos com a cultura autenticamente alagoana, particularmente na cena em que uma jovem estica seu braço e saca um tambor, outrora invisível, do lado do sofá de sua casa.

A câmera detém grande responsabilidade pela força do filme, explorando a beleza do terreno de maneira decidida, à luz do céu aberto, ao mesmo tempo em que enquadra os quilombolas e suas moradias evitando ângulos frios, valorizando a profundidade e a vida ali retratada. Existe, entretanto, um problema com a fluidez do documentário. Várias cenas ao longo do filme terminam com momentos de impacto que não precisavam estar ali, e conforme o final se aproxima, a insistência dramática dos realizadores causa um irritante efeito peter-jacksoniano, como se, ao invés de escolher um final, decidiram usar todos os que puderam imaginar.

Essa é uma falha triste, mas que não arruína o que o filme me causa. Como dito antes, sou um jovem branco de classe média. A realidade desse documentário não me é próxima, mas tão pouco me é desconhecida. Não seria este o primeiro material que me apresenta o abandono social ou as heranças racistas do Estado. Estou acostumado a lidar com essas informações de forma lógica e política, com toda informação e cultura que acho que tenho.

Em Furna, esse processo de distanciamento lógico não se concretizou. Existe aqui um objetivo de registrar o modo de existir dos quilombolas em sua forma íntima, e mesmo que em alguns momentos o realizador demonstra ser invasivo, consegue ao fim compor um registro pessoal de seus personagens. Assim, a obra se destaca dos documentários-denúncia por colocar em sua linha frente o povo sobre qual discursa. A sua rotina, seu passado e suas humildes conquistas não são interpretadas ou analisadas, mas contadas por aqueles a quem pertencem.

É o aspecto humano que brilha em Furna dos Negros, e que faz perceber não só um grupo demográfico, mas os indivíduos que a compõe. E foi em seu momento de maior intensidade, onde um casal de quilombolas canta, dentro da caverna histórica, uma música onde pedem a Deus que não os deixem ser escravos, que decidi que iria aplaudir mais forte para o curta, o primeiro em minha vida a me arrancar uma lágrima.

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