Crítica: Metafilmagem (direção coletiva)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa.

Metafilmagem (2014) é um curta experimental cuja constituição formal e narrativa se utiliza facilmente de uma geometria dos círculos, e de um reprocesso métrico (quase que estilo found footage) de seu próprio material para, em última análise, explorar temática e dramaturgicamente a concepção de um projeto existencial cíclico (de construção e destruição) para a vida de um indivíduo.

Logo que começa o filme, num ângulo baixo, seguido de uma panorâmica, vemos cinco estudantes de filosofia se reunirem em um apartamento para a elaboração de um roteiro. Mas de todas as ideias sugeridas, na qual a composição do plano aberto por vezes coloca os atores ao centro da posição de um círculo, nenhuma parece satisfazer e gerar o consenso para a realização de um bom curta-metragem. Com isso, ainda que de maneira espontânea e livre, a geometria dos círculos vai se articulando na composição dos planos, nos movimentos da câmera, e na encenação.

Quando os estudantes fazem especulações, num processo de brainstorming do qual se propuseram, a imagem corta para um sujeito deitado em torno de uma vela acesa numa sala escura (é já aí uma metáfora ao ato de pôr luz à consciência). A expressividade plástica da escuridão em torno gera no plano uma aura que contorna o centro da composição. O jovem, a acompanhar o raciocínio dos estudantes, em seguida procura um pão, come-o, depois começa a queimar os papéis que representam o seu projeto existencial para a vida.

A seguir, uma das ideias propostas pelos estudantes é a de que haveria uma sociedade ideal onde um sujeito teria o direito de tirar a sua própria vida sem ser julgado pelos demais. Com isso, a movimentação da câmera, ao longo de todo o diálogo, opera numa constância de giros (que vão e que voltam) a depender do enquadramento de cada personagem – mas não confunde o espectador, já que mantém um mesmo eixo. A compor uma das vias narrativas, evoca-se então um palco teatral no espaço do qual já se desencadeava a ação, e a representação da ideia de repente assume a própria realidade ficcional do filme. Um homem adentra à sala (que agora é uma clínica), onde antes há algumas formalidades a serem realizadas, e, admitindo o seu desejo de cometer suicídio, é conduzido a um quarto no qual um psicólogo lhe executa friamente um procedimento de eutanásia. Em plano sequência, e perante um cenário inteiramente improvisado, a cena evidencia a força de toda uma atmosfera dramática.

Após a sequência, que logo retoma a sua realidade ficcional primeira, há um ligeiro e completo movimento rotatório de câmera, que quebra o eixo, uma transição para um plano abstrato, no que se assemelha ao registro de uma bolha metálica, e um dos estudantes manifesta outra ideia: a de fazer um filme que discuta o valor da vida. “Um indivíduo, dentro de uma sociedade na qual a violência é banalizada, passa a se espantar e a não mais aceitar aquela banalização”. Quando descrita a ideia, ao prazeroso som da trilha de um sitar indiano, o outro estudante que lhe estava ao lado (Emerson Pereira) se ergue da cadeira, a contraluz serena do plano, retira um revólver do bolso, e dispara contra a cabeça do amigo. Num Jump cut, a cena então se revela como que parte de um delírio de algum dos personagens.

O estudante sentado ao centro (Arthur Buendía) tem finalmente a ideia de fazer um curta sobre como fazer um curta. Todos ali presentes concordam com a ideia, e a câmera retorna ao mesmo ângulo baixo do princípio. Nasce, assim, o Metafilmagem, obra que se faz no mesmo ato em que se refaz. E eis, portanto, a ideia de reprocesso métrico e cíclico de seu próprio material, ou seja, de representar o próprio processo de tentativas fracassadas, numa espécie de reciclagem. O que também não deixa de ser maneirismo: quando a linguagem se cansa de abarcar a matéria das coisas e entra em crise, volta-se então a si mesma. É da crise que surge a metalinguagem, quando ela põe luz à consciência (como o sujeito diante da vela) na necessidade de compreender as próprias falhas.

No fim das contas, a mensagem que o filme transmite diz respeito ao significado de se construir um projeto existencial para a vida, já que os seus personagens argumentam que todas as investidas são autodestrutivas (quando não o mundo, o próprio sujeito trata de destruir o seu próprio projeto). Os estudantes, assim, discutem questões relativas à liberdade, a autonomia do indivíduo e ao próprio valor da vida. O modo como o filme então sintetiza a sua realidade – no campo gráfico, por exemplo, a captação de esferas abstratas, bolhas, de influência estética psicodélica, que serve como aberturas e transições – é o que valida o discurso do conteúdo, já que o conflito da narrativa é elaborado com base em diálogos e interações de estudantes que buscam conceber ideias que de alguma forma acabam por ser destruídas (discordam, entram em desconformidade).

É justamente dessa somatória de erros que o filme se faz, e se refaz, além de se valer por si só como obra reflexiva, experimental. Percebe-se, portanto, que a mensagem que o filme transmite afirma a importância da construção de um projeto para a vida, ainda que esse projeto seja altamente irresponsável, que tenda para a incompletude, que se perca e que seja facilmente destruído. O que, no fim, se configura como um grande ciclo, um começo e um recomeço.

Os diretores do filme não negam o seu teor marginal (de som direto mal capitado; cinematografia mambembe, numa abordagem instintiva; cenários e performances improvisadas), por outro lado, não sei se eles têm consciência de sua potência hipnotizante. Após o Pisadas Na Areia (2017), Arthur Buendía afirmou que jamais pretendia atuar novamente, já que não tinha lá tanto jeito para ator. Acredito, porém, que ele deveria ocupar de vez uma cadeira única de diretor de algum projeto, ainda que as suas principais áreas de domínio sejam a pintura e a poesia; já que a sua energia primitiva, às vezes de forte inspiração onírica, quando depositada no cinema, é própria da pulsão de um olhar de real fascínio à arte, e esse olhar é preciso.

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