Crítica: Nem todas as manhãs são iguais (dir. Fabi Melo)

Texto: Matheus Costa. Revisão: Larissa Lisboa.

No transcorrer do tempo pode acabar esquecendo de antigos sabores, detalhes, cheiros, locais e experiências que foram imprescindíveis na nossa constituição enquanto indivíduos. Em muitos casos, estamos desesperadamente querendo esquecer, principalmente, quando há dor nessas vivências, em outras, apenas esquecemos automaticamente. 

Por isso, quando estamos diante da tela a assistir, Nem todas as manhãs são iguais, somos convocados a retornar para esses sabores, detalhes, cheiros, locais e experiências esquecidas ou empoeiradas pelo tempo. Aliás, retornar é a palavra de ordem, pois somente assim podemos lembrar do esquecido, sentir o que tais objetos nos despertam e elaborar o que está nos afetando ou afetou. 

No curta-metragem somos incitados a pensar sobre como um determinado local geográfico traz em si uma gama de lembranças e experiências. E que apesar de serem partes que registradas foram subitamente esquecidas. Por isso, o retorno ganha um sentido de elaboração e só estará completamente realizado a partir de tais lembranças, cheiros e experiências. Mas isso não é feito de qualquer forma, é realizado com sensibilidade, na figura de Ana. 

Podemos observar que há uma relação entre jardim, cheiro e a lembrança da vó. Isso nos leva a considerar que a morte é um processo que vai além de “enterrar” um corpo, e que morrer está em consonância com um certo apagamento da dimensão simbólica que tal corpo tinha enquanto estava em movimento. O corpo também remete a objetos que eram imprescindíveis para tal pessoa, enquanto dimensão simbólica,  e que além disso, remete a tal ser. 

Talvez, seja por isso que podemos ver que não há um cuidado com a casa, existe poeira nos móveis, o jardim, que remete a um aspecto da vó, está em descuido. Durante o luto precisamos nos distanciar de objetos que remetem a pessoa, porque nos objetos também existe a pessoa que morreu, enquanto corpo objetivo. Entretanto, quando esquecemos efetivamente da pessoa, realiza-se sua morte definitiva. O objeto já não tem um remetente, ou até mesmo um sentido de existir, perde a sua “alma”. 

Por isso Nem todos as manhãs são iguais precisa reelaborar o que é vida, e o que é a morte, bem como, o limiar que vai diferenciá-las. Ninguém melhor que a Ana para fazer isso (o jardim não morreu, ele só precisa de amor para sobreviver), pois ela é a figura do retorno, como também da catalisação do processo de elaboração, ou melhor da reelaboração do seu pai. 

Aqui não há um sujeito que por ter mais, tempo mais terra, sabe mais, aqui existe um sujeito que ao questionar pode ajudar o outro em seus processos, e isso é amor. Não há outra definição para o que é o amor, em frase como “não papai, ela está aqui”, ou “você pode chorar se quiser”, Ana nos faz observar que amar é um verbo cheio de leveza e sensibilidade, e que apesar dos processos difíceis que são inerentes ao estar vivo, devemos tê-lo. Ana é o elo de amor que aproxima filho e mãe.   

Nem todas as manhãs são iguais nos convida a conectarmos com os retornos que precisamos fazer para dar sentidos e elaborar nossos processos, independente da ordem. Bem como de que há uma relação intrínseca entre lembrar, esquecer e morrer. 

O retorno é o momento em que vamos nos conectar com uma certa essência matriz constitutiva subjetivamente de nós que devido ao tempo perdemos, ou simplesmente, está cheia de poeira. Não pense que será a mesma, pois nunca será, é uma ação que nos possibilita lembrar e sentir a partir do que já vivemos e estamos vivendo. É um voltar ao passado a partir do presente, sentir o passado no presente. 

Os retornos são necessários para que não haja a morte simbólica, isso feito no/pelo lembrar. 

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