Crítica: O Canto (dir. Isa Magalhães e Izabella Vitório)

Texto: Jai Karoline. Revisão: Mirante Cineclube e Larissa Lisboa.

Luz e Sombra de uma Cultura ou O Ouro Verde Arapiraquense

O mais difícil

É arrumar o fumo

Fumo de rolo de Arapiraca

(O torrado da Lili, de Luiz Gonzaga)

Quem são os rostos por trás de uma força de trabalho capaz de estruturar o desenvolvimento de uma cidade de médio porte? A primeira cena do filme O Canto traz, não casualmente, uma silhueta tocando pandeiro. Uma face encoberta pela sombra, mas que se releva ao espectador ao longo da narrativa.

A mão enrugada que toca o instrumento percussivo, é a mesma que destala a folha de fumo. Dona Rosália, com seus óculos escuros, passos lentos e canto marcante personifica as tantas trabalhadoras destaladeiras de fumo de Arapiraca, tema de pesquisas acadêmicas, músicas de cânones brasileiros, outras obras do audiovisual e demais cenários artísticos.

Acontece que essas mulheres, que hoje rodam o Brasil realizando apresentações musicais, têm sua origem nas lavouras de fumo e nos salões de destalagem da planta, processos esses que enriqueceram a segunda maior cidade do estado de Alagoas, deste que foi durante muito tempo o principal produto desse agreste.

A trajetória de Arapiraca está intrinsecamente relacionada com o comércio de fumo. Muitos donos de terras prosperaram há décadas atrás, no apogeu desse negócio, tornando-se fumicultores tradicionais, muito conhecidos nas cercanias. Em contrapartida, esses fazendeiros “costas largas” não lidavam diretamente com o plantio, já que o contato com ele pode ser danoso à saúde humana. Então, contratavam pessoas, em sua maioria mulheres, para colherem, colocarem para secar no varal e separar as folhas dos talos, processos nos quais as trabalhadoras tinham o costume de cantar para ajudar a passar o tempo das longas e árduas jornadas de trabalho. Assim cresceu a economia arapiraquense, feita a muitas mãos e em meio à cantoria.

A história da cultura fumageira está presente no curta, mesmo que de forma indireta, musicada e contemplativa. Num tom que mescla melancolia nos sons graves da trilha, no misticismo das cenas de prece silenciosa e na alegria no coco de roda quando entoado nos cantares coletivos. A trama enlaça o lado luz e sombra das trajetórias das destaladeiras.

A musicalidade é marcante, desde o título, e perpassa praticamente todos os planos. São lamentos que abordam saudade, o choro pela pessoa amada, a vontade de beber para lidar com a vida, entre outras temáticas cotidianas que foram incorporadas no ritmo do coco de roda, que compõe a tradição alagoana. Ora Dona Rosália canta sozinha, ora é acompanhada pela pluralidade de vozes ressoantes de suas colegas de cantiga, juntamente com os sons de pandeiro e pisadas. De fato, um filme musicado, que canta o ritmo da cultura do “ouro verde” de Arapiraca, trazendo as personagens à margem dessa riqueza para o centro da trama.

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