Crítica: O que lembro, tenho (dir. Rafhael Barbosa)

Texto: Laís Kalena Salles Aragão. Revisão: Chico Torres. Imagem: divulgação.

O Último Ato

O que lembro, tenho e o que tenho, guardo. Penduro dentro do armário e na parede da sala de estar, pois a lembrança é este impulso que nos transporta e nos reconduz ao nosso lugar. O fio delicado que liga Maria ao passado permite entrever fragmentos de uma vida que a demência senil ainda não havia acometido. Diante da fina cortina de renda pendurada na sala do seu apartamento, nem opaca, nem transparente, que não esconde, tampouco torna evidente, ela recorda, revive. 

O tempo traça um caminho de mão única entre a vida e a morte. Mas a distância entre uma e outra é remarcada nesse curta-metragem dirigido por Rafhael Barbosa, na medida em que as memórias de Maria justificam retroceder e levam-na a percorrer essa via em sentido contrário. A força da sua memória redefine as regras e os limites do tempo. Ela, então, refaz as malas e espera a hora certa de voltar: um retorno interior que, todavia, não exige nada além do pano iluminado estendido diante do seu corpo, ou dos momentos de abstração em frente às imagens e à escuta dos ruídos que a TV emana, revirando os seus sentidos.

A memória é tecido fino e elástico, que distende, dobra e rasga. Os buracos, largos ou estreitos, se espalham por toda a malha, como a trama de fuxico que forra o sofá da sua casa, no interior, e que depois decora a mesa de canto do apartamento, na cidade. As lacunas são transpassadas, deixando escapar o que anseia sobreviver em outros espaços, sem, contudo, encontrar mais ali um local de abrigo. Assim como o grão de milho que a mão enrugada de Maria lança no ar: ele cai no piso do apartamento e lá permanece, sob a força de um enigma, sem a contrapartida das galinhas e das outras aves que nele buscavam alimento. 

Sua filha Joana, aprisionada no momento, assiste com desânimo esse último ato em vida, espécie de criação final: uma remontagem temporal, da qual Joana está encarregada de operar a cena – desfazendo a mala, que será refeita, calçando os chinelos, que serão descalços e retornarão para dentro do fogão. Impotente à aproximação da morte da mãe e incapaz de adiar a sua chegada, ela recria o carinho, devolve o cuidado, reclama a distância do irmão Jesuel e se faz presente diante do passado.

O que lembro, tenho retrata com delicadeza a retomada e a conclusão do ciclo de vida de uma mulher do nordeste alagoano. Explora elementos materiais e imateriais da cultura local – as rendas, o fuxico de crochê, os cantos, a religiosidade – de modo a recriar a sua existência num espaço e num tempo ainda pouco visibilizados no cinema brasileiro.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

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