Crítica: Saneamento Trágico (dir. Zazo)

Texto: Thame Ferreira. Revisão: Chico Torres.

A HIPOCRISIA DO SURURU

Quem nunca tomou um caldinho de sururu que atire a primeira pedra. Mas será que nós consumidores sabemos qual narrativa social vem bancando os prazeres culinários e cartões postais turísticos de Maceió? Vivemos imersos em um sistema que, à medida que nos individualiza ao extremo, compartimenta nossas experiências de um modo tão incisivo que muitos passam a vida sem nem se perguntar coisas simples como: De onde vem o que consumo?

O documentário Saneamento Trágico (dir. Zazo) possui um tom jornalístico, mas com imagens que, por si só, tomam lado: o da denúncia política. Elas revelam um cotidiano marcado pelo alagamento e abandono, gritando o óbvio que uma cegueira cômoda finge não enxergar.

Nesse sentido, recordo do curta-metragem Ilha das Flores, do gaúcho Jorge Furtado. Esse filme se tornou um clássico nas formações políticas de jovens pelo Brasil; me alegra termos agora um análogo alagoano que precisa ser divulgado o máximo possível. Falando em Jorge Furtado, será o longa do diretor com título similar, Saneamento Básico, também uma referência de Zazo?

Mesmo com alguns problemas técnicos, principalmente em relação ao áudio, além do meu não convencimento acerca de algumas escolhas estéticas, seja em relação às imagens ou ao som (voz over masculina e imagens que remetem às reportagens do Globo Repórter), prefiro atentar o olhar à outra ponta, a dos acertos. Principalmente por ser um filme de discurso mais do que de recursos: um filme-denúncia que quer dialogar com o máximo de pessoas.

Quando assistimos um filme, é importante ter generosidade para abraçar a proposta apresentada. Principalmente numa Alagoas com uma geração de realizadores que busca fazer cinema na corda bamba de recursos, tanto financeiros quanto de formação e acesso à técnica. E, enquanto realizador, Zazo acerta quando faz o esforço de expor as pontas desse emaranhado de problemas.

E são muitos! Não é fácil conseguir pincelar tantos em apenas 25 minutos. Há uma imensa rede de conflitos, que abarca desde o processo de ocupação e nascimento da cidade de Maceió, até a contemporânea negligência descarada dos órgãos públicos. É política, história, gestão; é também ecologia, sociologia, filosofia. É, antes de tudo, direitos humanos e saúde pública. Ao ouvir o narrador falar sobre “deserto biológico”, pensei “deserto nada, ali é uma selva microbiológica, invisível, de bactérias, protozoários, vírus e nem Deus sabe mais lá o que”. São pessoas em uma rotina de risco banalizada!

Biologia e Ecologia constituem parte fundante de minha formação intelectual. É natural que deseje desenvolver problematizações que o filme levanta. Nessa área, Guillermo Foladori, professor e pesquisador da relação entre meio ambiente e capitalismo, acerta ao afirmar que nesse sistema econômico, a dimensão das contradições ambientais é fruto da dimensão das contradições sociais [1].

Ao atentar para as falas dos gestores, podemos encontrar diversas contradições. Há um termo utilizado mais de uma vez que, em primeiro olhar, pode parecer “natural”, mas me deixou de antena em pé. Talvez pela influência de Bertold Brecht e de seu conselho sobre desconfiarmos do trivial, na aparência singelo: os vícios da nossa cultura se expressam nas sutilezas.

Vou tomar como exemplo sentenças utilizadas sobre o serviço de coleta de esgoto: “A coisa mais simples que às vezes vem funcionando é o gradeamento, mas o esgoto é lançado in natura”; e “o esgoto chega in natura e é lançado in natura”. Essa locução latina que significa “em estado natural”[2] me soou estranha nesse contexto de depoimento dentro de um filme que denuncia o estado trágico do saneamento da nossa cidade. É evidente que enquanto bióloga meu olhar pode ter uma especificidade talvez exagerada, mas, diante da calamidade ambiental e social que vivemos, peço licença para a possibilidade do exagero.

Ante a situação crítica que o saneamento básico protagoniza em Maceió, essa opção de nomenclatura nesse contexto de discurso me parece amenizar o impacto do que realmente acontece. Certo, o esgoto vai para o mar sem ter sido sujeito a qualquer transformação ou processamento, logo, “in natura”. Como se nosso esgoto urbano, ao ser lançado no mar, estivesse em seu estado natural de produção nas habitações e, de algum modo, esse termo “in natura” soa ok: um esgoto produzido pela “natureza humana” jogado na natureza?

Entretanto, nosso esgoto urbano está longe de ser algo em um estado “natural”, ou simplesmente “não processado”. A matéria orgânica resultante de nossas necessidades fisiológicas se mistura ao detergente, sabonete, passando até pelo glitterzinho de carnaval e todos nossos produtos e superficialidades de uso diário, frutos de um modo de vida repleto de plástico em suas mínimas constituições.

Quando estudei ecologia na UFBA, um dos pontos de pesquisa perpassava a legislação brasileira e seus termos e conceitos. O que eles comunicam? E para que e quem eles comunicam? Há algo de problemático que se repete em diversas instâncias. Muitas vezes parece que estamos diante de políticos e suas falsas promessas em Brasília: diálogos e mais diálogos burocráticos que protegem projetos políticos falidos, enquanto os mortais eleitores agonizam junto com o meio ambiente. Os responsáveis públicos, o Estado e os detentores desse poder que é o de reter informação, proteger bens públicos e repassar conhecimento, precisam dar nome aos bois com seu devido valor de leilão!

 O fato é impactante e deve ser tratado com um léxico que impacte, sim! As palavras que usamos fazem parte de uma necessária educação ambiental, outro ponto destacado no filme. Pois o fato é que a Casal vem despejando esgoto não tratado, água “contaminada” no ecossistema marinho. Como que uma autoridade responsável pela Companhia de Saneamento das Alagoas não tem a vergonha de ser gravada dando o lamentável depoimento sobre o problema do canal da Brejal com a esquiva de: “aquilo ali não é a Casal”. Certo, e é problema de quem? Não já temos “Pôncio Pilatos” suficientes na história da humanidade?

Sei que esse texto está enorme! Peço novamente licença e, agora, perdão! Pois não consegui ser concisa o suficiente para respeitar a meta de uma lauda que o laboratório de crítica da IX Mostra Sururu estipulou por documento. Mas assumo a responsabilidade desse erro e pechincho só mais um tiquinho de atenção para seguirem comigo nesse raciocínio. Falando sobre responsabilidades, preciso destacar dois pontos:

  1. Como que uma obra de “melhoramento” realizada pela prefeitura junta duas galerias, a do bairro do Farol com a da Levada, e os moradores do último correlacionam isso com uma piora na suas vidas? Será que no Farol os moradores estão reclamando também? E como que essa obra foi feita em 2003 e estamos entrando em 2019, e seus resultados na vida da população da parte baixa seguem menosprezados?
  2. Infelizmente, enquanto órgão fiscalizador, o IMA não tem a eficiência quanto aos litorais afirmada no filme com recursos gráficos de impacto (manchetes de jornal). O sistema de fiscalização ambiental no Brasil é terrível, ruim em todo lugar. Certo que especificamente na região da lagoa há algo muito pior e o gestor entrevistado, com aparente honestidade, alerta: há falta de cobertura. Como assim, na terra das lagoas não há cobertura para proteger as lagoas?! Não é bem o que aparece nas propagandas de TV…

E é algo que não perpassa apenas uma gestão problemática, ou um termo infeliz em uma entrevista, são expressões diversas de um inegável problema sistêmico e nada pessoal. Lugares como a Vila Brejal são extremamente mais desassistidos, principalmente do ponto de vista de condições básicas de vida humana. Infelizmente é assim não só nesse profundo Brasil daqui. É impossível não correlacionar a frase de Foladori com a seguinte afirmação da professora da UFRJ Maria Célia Nunes Coelho a respeito da distribuição espacial e social dos impactos ambientais:

A urbanização e a emergência dos problemas ambientais urbanos obrigam os estudiosos dos impactos ambientais a considerar os pesos variados da localização, distância, topografia, características geológicas, morfológicas, distribuição de terra, crescimento populacional, estrutura social do espaço urbano e processo de seletividade suburbana ou segregação espacial.
Os problemas ambientais (ecológicos e sociais) não atingem igualmente todo o espaço urbano. Atingem muito mais os espaços físicos de ocupação das classes sociais menos favorecidas do que o das classes mais elevadas. A distribuição espacial das primeiras está associada à desvalorização de espaço, quer pela proximidade dos leitos de inundação dos rios, das indústrias, de usinas termonucleares, quer pela insalubridade, tanto pelos riscos ambientais (suscetibilidade das áreas e das populações aos fenômenos ambientais) (…)
As cidades historicamente localizaram-se às margens de rios. A incidências das inundações motivou as classes médias e altas a se afastar das áreas urbanas delimitadas como áreas de elevado risco. A inundações continuam e vitimam as classes pobres. Fugindo das áreas inundáveis e insalubres, as classes mais favorecidas, que buscam as áreas de topografia elevada, só eventualmente estão sujeitas a desmoronamentos. A solução do problema da minoria rica se faz mais facilmente e, não raramente, com os investimentos pesados na reorientação dos sistemas de drenagem, construção de muros de arrimo etc., em detrimento do investimento no saneamento das áreas urbanas ocupadas pela população pobre. Reforça-se, portanto, o grupo dos não atendidos pelos benefícios dos investimentos urbanos [3].

O que não falta é suporte teórico e técnico para se estruturar uma mudança. E a repetição da afirmação “Maceió tem uma rede coletora de esgoto subdimensionada” se desvela muito mais como engodo político do que algo concreto que impede a falta de se investir hoje em planejamento urbano e mitigação de impactos. Se não houve planejamento antes, que tal começar a fazer? Por que não partir do pressuposto de que pessoas e animais, ecossistemas inteiros estão, diariamente, à mercê do bafo de merda e morte? É um ponto alto do filme mostrar o poder público em sua passividade e calma, justificando e responsabilizando individualmente a população que já está literalmente na merda, mas que ainda tem que levar parcela de uma dissimulada culpa capitalista por isso.

Por fim, ao assistir e analisar os discursos de gestores com distorções e amortizações dos fatos, me vem à memória mais uma obra, O inimigo do povo de Ibsen. Temos a história de um médico, irmão do governante, que descobre que a água da baía da cidade está impropria para banho, extremamente contaminada. E na tentativa de contar para a população, é esmagado pela imprensa e autoridades locais, que iniciam uma campanha pessoal difamatória para convencer o povo de que está tudo bem.

Lembra-me muito a Maceió desses discursos que abradam os crimes ambientais que vivemos; a Maceió onde Kátia Born dizia ter solucionado o problema do Salgadinho; a Maceió que finge cuidar, finge limpar, mas superficialmente, para campanha eleitoral e sem continuidade. A exposição desse descaso conseguiu ser capturada no filme, muito mais pela exposição das contradições quadro a quadro do que por um discurso político aparente ao longo da narrativa. Um bom exemplo foi o flagrante de homens da limpeza urbana higienizando o que no outro dia a câmera capta alagado novamente.

Enquanto se adoça a amarga irresponsabilidade dos gestores e governantes, o Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba agoniza, assoreia, perde seu delicado e especial equilíbrio entre salgado e doce. Vai morrendo e junto vai levando não só uma tradição viva, que se mantêm nas catadoras de sururu, mas a vida e perspectiva de futuro para toda uma geração de cidadãos que tem seu direito à cidade negado, sua possibilidade de plenitude humana afundada numa lama de hipocrisia. Quero ver quem é que vai beber o caldo dessa lama podre quando todo sururu e fé morrerem com nossa Mundaú. Ainda há tempo, em contagem regressiva, mas ainda há. O que é que podemos fazer para essa voz d´água não se calar?

Referências

  1. Guillermo Foladori. Os Limites Do Desenvolvimento Sustentável. Editora Unicamp Imprensa Oficial, 2001.
  2. Maria Helena de Moura Neves. Guia de Uso do Português: Confrontando Regras e Usos. São Paulo: Editora UNESP. 2003.
  3. Maria Célia Nunes Coelho. Impactos Ambientais Urbanos no Brasil: Cap. 1: Impactos Ambientais em Áreas Urbanas – Teorias, Conceitos e Métodos de Pesquisa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2011.

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