Crítica: Teresa (dir. Nivaldo Vasconcelos)

Texto: Wibsson Ribeiro. Revisão: Janderson Felipe.

Teus  demônios são os mesmos

“O grande segredo, agora sabia o grande segredo. E adormeceu. O clarão recomeçou a encher a cela, mas não aumentou mais, nem ressoava. Antes ficou em torno dela, com um dossel, uma atenta e vigilante ternura, que, debruçada sobre ela, a contemplasse, tão dorida e apagada, a respirar tranquila.”
( Jorge de Sena – O grande segredo)

Nossos tempos pretensamente seculares estão longe de ter superado o legado do cristianismo, para o bem e para o mal. É essa tradição cristã que será explorada no curta de Nivaldo Vasconcelos, em especial a relação entre corpo, culpa e fim dos tempos. Ao longo do filme o que acompanhamos é uma jovem performer, que aceita o papel de viver Santa Teresa d’Ávila, personagem histórica tão distante das suas experiências afetivas no presente.

Por todo o filme o que veremos é a atriz se preparando para viver a personagem, e em seguida as semanas que se arrastam, onde acompanhamos sua autoflagelação rumo a descobertas a respeito de si mesma. É como se o corpo da jovem fosse uma máquina, que ativasse memórias que ela nem sequer sabia possuir a respeito de dor, pecado, arrependimento e graça. Ao fim, o êxtase vem, a protagonista “lembra de ter fé”, ou reconhece no próprio corpo um espaço de entrega ao divino.

O fato do filme se concentrar na experiência corporal da protagonista é interessante por seguir uma chave de política dos corpos que tem ressoado por diversos meios e canais de discussão, no Brasil e no mundo. Inserido no espaço e tempo em que foi concebido, Teresa é também uma resposta aos ataques à filósofa Judith Butler, em sua passagem recente por São Paulo, bem como uma mensagem ao momento em que vivemos em relação aos debates pedagógicos, em especial ao caso da famigerada “ideologia de gênero”, que tem tentado cerrar os corpos e enclausurar subjetividades. Tomando símbolos de uma tradição que tem sido usada de forma conservadora e agressiva contra minorias, o que o filme de Nivaldo Vasconcelos provoca é uma mudança de chave, talvez até mesmo encontrando aquilo que é mais cristão no próprio cristianismo atual, desencavando do passado puro o êxtase de Santa Teresa e com isso, talvez, preservando o verdadeiro legado do cristianismo, aquele que fala também sobre nossas dores e sobre nossos afetos[1].

O tempo, portanto, é a grande matéria deste filme. Em uma concepção de mundo escatológica, é estabelecida uma ponte entre a era medieval e o nosso presente, épocas em que as pessoas vivem uma experiência de fim dos tempos, à espera do advento do messias ou da destruição final. Teresa suspende o turbilhão de epidemias, guerras, massacres, estupros, crimes e toda a sorte de barbáries praticadas e nos enclausura em uma casa, a um corpo. Esquivando-se temporariamente do mundo lá fora e do tempero das conjunturas, saltamos em direção a um tempo mítico, como em um retiro espiritual.

Mas o filme, em seu texto, em alguns momentos termina entregando demais deste sabor conjuntural e com isso quebrando o pacto que poderia se estabelecer entre estas temporalidades. Que os demônios a atormentar Teresa hoje são os políticos e empresários a pilhar o Brasil não resta dúvidas, mas ao inscrever no texto da protagonista frases como “eu não bato panelas” ou “não vai ter golpe” o filme perde força, amarra-se a conjuntura e ao ativismo presente de uma maneira que compromete muito de sua mensagem.

Mas aí, nisso que enxergo como um problema textual, acaba se dando uma outra possibilidade do filme, talvez a contrapelo do que queriam seus realizadores. Teresa pode ser lido também como uma alegoria do próprio estado de nosso corpo político. Enquanto uma guerra social sem precedentes é desencadeada pelos de cima, os de baixo não reagem. Como Teresa, estamos trancados dentro de nossas casas. Nossos discursos, na maior parte das vezes, têm servido para produzir culpa e autoflagelação: não fomos ousados o suficiente, não lutamos o suficiente, não fomos feministas o suficiente, não combatemos o racismo o suficiente, não defendemos a cultura como deveríamos… em uma espiral contínua de arrependimentos e vergonha que nos leva ao trancafiar dentro de nossas casas. Diante disso, ficamos entregues ao divino, à passividade e ao medo. Teresa, de Nivaldo Vasconcelos, é também um ensaio político sobre nossa letargia.

[1] Neste parágrafo tomo como inspiração direta um raciocínio presente em diversas obras de Slavoj Zizek.

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