Crítica: Wonderfull – meu eu em mim (Dir. Dário Jr.)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa

O “palco”, o “bastidor”, a “plateia” e as “máscaras” da sociedade

Um texto de Clarice Lispector, em que se fala do “eu” e do corpo, é declamado por Natasha Wonderfull, que sob a luz de um palco de teatro também se performa. O público que a presencia usa máscaras de papel que são réplicas do rosto de Natasha, tratando-se já de um elemento de natureza simbólica. Logo após, no teatro grita-se “corta” e os agentes do extracampo, executores da cena, intervém sendo incluídos à realidade fílmica: com a equipe, Natasha discute suas táticas de interpretação, expondo as dificuldades e inseguranças que enfrenta ao encarnar o papel. Dessa evidência do processo cinematográfico, que imbui à narrativa documental um efeito mais ampliado de real, tomaremos de início o filme com base nas reflexões do sociólogo Erving Goffman, quando este formula uma analogia entre a interação humana e o Teatro.

Segundo o psiquiatra Carl Gustav Jung, cada indivíduo age de maneira distinta de si mesmo quando inserido em diferentes ambientes sociais, onde deve ser aceito para pertencer a um grupo, adaptando-se a depender das circunstâncias – nesta perspectiva dos fenômenos mentais, podemos dizer que Wonderfull – meu eu em mim (Dir. Dário Jr., 2016) integra ao realismo de sua mise-en-scène e à análise social de seus personagens uma eloquência psicológica inigualável. 

Enquanto que, para Goffman, a vida social é um “palco”, à la Shakespeare, em que se desempenham papéis diversificados, é uma representação que os indivíduos fazem de si mesmos – a depender das circunstâncias, e cuja função é atrair os demais e produzir a interação. Nesse processo de interação de impressões do seu modelo de “dramaturgia social”, Goffman desenvolverá principalmente três elementos de sua apresentação teatral: o “palco”, o “ator” e a “plateia”.

A título de ilustração: no filme, uma cadeira e uma mesinha de apoio são colocadas no calçadão do centro de Maceió (seria a cidade, afinal, o palco?). Por vez, Natasha perambula e interage com as pessoas, convidando-as para se sentar na cadeira de frente para a câmera, colocar a máscara de papel impressa com o rosto dela e responder a algumas perguntas pessoais. A sequência acaba por evidenciar mais a relutância dos transeuntes em aceitar o convite do que as ações daqueles que o aceitam.

Segundo Goffman, a interação social, isto é, a influência recíproca dos indivíduos em presença física imediata, se estabelece de acordo com uma definição prévia de hierarquias, de papéis e de expectativas envolvidas; e se situa conforme os “atores” e a “plateia”. Já ao remontar a Jung: cada agir diferente, ou cada papel desempenhado, seria uma persona, uma instância psíquica responsável pela interação, ou seja, uma “máscara” para o “Eu”, tentando alcançar o objetivo de ser aceita e bem-considerada socialmente. Evidentemente, no filme, esse uso das máscaras é mais uma alusão ao ato de se desenvolver a empatia, de se colocar simbolicamente no lugar do outro – no caso, no lugar de Natasha Wonderfull, uma mulher que, por ser negra e transsexual, provavelmente já sofreu demasiados preconceitos e discriminações.

Contrasto Wonderfull com outros curtas alagoanos que o sucederam e que, por razões que se farão compreender adiante, constroem igualmente uma decupagem com planos que capturam “disfarçadamente” o seu objeto, enquanto tomo também em livre teoria o elemento “palco” como sendo o lugar onde acontecem as grandes realizações de uma vida: em Wonderfull temos a recitação do poema, a performance, a entrevista em molde convencional; em Eu Me Preocupo (Dir. Paulo Silver, 2017), a viagem da personagem de Jande; em Delas (Dir. Karina Liliane, 2017), os depoimentos sob planos tradicionais, a narração como auge da consciência; em Meu Lugar (Dir. Larissa Lisboa, 2019), o círculo em volta do bolo, os parabéns, o discurso comovente. Adicionaremos, então, o elemento “bastidor” como o espaço que abrange tanto o que não pode ser visto quanto o que não pode ser considerado: os intervalos dos espetáculos como sendo o conjunto de eventos e interações da realidade cotidiana, os ensaios como sendo as produções e as atividades preparatórias para a “verdadeira vida” – em Wonderfull temos o trabalho de saúde em campo, a coxia do teatro, o calçadão do centro da cidade; em Eu Me Preocupo, as atividades domésticas, a fala ao celular; em Delas, o set de gravação não decupado, a informalidade elementar; em Meu Lugar, a conversa ao sofá, os cumprimentos, a câmera diegética. Consideraremos também o elemento “plateia” como sendo o lugar em que se acompanha o “palco” e o “bastidor” dos outros (a audiência da vida?) – para além de qualquer filme, o espaço onde todos são espectadores, onde se vive à mercê de imagens.

Desses três elementos propostos para refletir a realidade e o meio social, resta ao espectador do filme a perspectiva única da realidade da “plateia”; posto que, da sua posição de passividade, rege-se o pressuposto de uma incapacidade objetiva de trânsito. Se, no jogo da interação humana, um indivíduo, ou “ator” dessa vasta “dramaturgia social”, aspirar conhecer a verdade interior do outro, e não a “máscara”, provavelmente ele lhe acessará os “bastidores” da vida e se defrontará à “máscara” de seu cotidiano. Nessa lógica, testemunhamos o filme, ou o “Eu” da câmera (a possibilidade da observação), que efetivamente recorre à realidade do “bastidor” de Natasha. Porém, antes de justificar a afirmação; é preciso sanar o questionamento sobre a própria recorrência, dado que tal “máscara” dos eventos cotidianos, isto é, tal persona real de um indivíduo – que, segundo a psiquiatria, na esfera social também pode ser compreendida por uma identidade de gênero, uma etapa do desenvolvimento humano, um status social, ou por uma mera profissão –, também não deixa de ser mais um papel social. Assim, se o “Eu” (a identidade, a estrutura, o que podemos nomear) é um produto do conjunto de valores que orientam as relações sociais e as interações do indivíduo, ou seja, se é um produto moral, e se a persona é a que age em função de proteger moralmente o nosso “Si Mesmo” (a singularidade, o que não pode ser dito) das contradições da vida; deve-se concluir que, na interação humana, cada “Si Mesmo”, cada experiência real de si, é algo absolutamente incomunicável. Como resultado, na recorrência ao “bastidor” do outro, o indivíduo jamais presenciará o “desmascaramento”, assim como ele jamais alcançará o “Si Mesmo” do outro.

A “câmera oculta” e o “Espetáculo da Interação”

Conforme o desdobramento da narrativa – calcada a um realismo-social intimista como modelo de percepção, e sob segmentações de uma montagem intermitente que se vinculam a um formalismo melodramático –, testemunhamos Natasha em seu atual trabalho onde, em equipe, ela presta serviços de atenção à saúde, na modalidade Consultório na Rua, em bairros e comunidades da periferia de Maceió. Para viver e também registrar o dia com Natasha (e sobretudo tentando se “colocar” no lugar dela), o ator Allexandrëa Constantino põe maquiagem no rosto, uma peruca e a acompanha nessa jornada. Durante a sequência, falando e transitando com otimismo e assertividade, ante uma realidade, a olhos vistos, tão precária e desoladora, Natasha, e a sua nova assistente, cuidam de pessoas em situação de vulnerabilidade: aferem a pressão arterial de uma mulher e trocam o curativo de um jovem doente. Em face da beleza, vulgo a generosidade, do comportamento amoroso e compassivo que presenciamos; e sob a sensibilidade do olhar de Dário Jr. em simplesmente captar alguém ajudando outro, isto é, sentindo a vida junto ao outro; é que somos, num estado de “exaltação”, profundamente impactados.

A sequência permite compreender a recorrência que, se admitida, faz a objetiva à realidade do “bastidor” de Natasha, através da experiência formal – com uma sensibilidade do olhar mais voltada ao que chamaremos de “Espetáculo da Interação”. Utilizaremos esta denominação na condição de uma Unidade de elementos visuais, sonoros e emocionais, que atrai e retém a atenção, expressando a essência de uma situação de interação. Apreenderemos daí o filme como um “Eu” empenhado em evidenciar, sobretudo, a percepção da (re)ação fisiológica de suas personagens, no desdobrar das imagens e dos fatos que capta. De modo que, nessa comunidade onde nos inserimos, localizada às margens da Lagoa Mundaú, a câmera registrará as personagens através de uma abordagem predominantemente indireta: discreta e suave, afastada e com alta distância focal, às vezes como que invisível para os que são captados – à céu aberto, uma criança que se aproxima da câmera (mordendo a camisa) e as mulheres que tratam do sururu parecem nem saber que estão sendo filmadas; em outra sequência, a própria Natasha, distraída por uma conversa com amigos em um apartamento, é enquadrada disfarçadamente. 

Essa escolha de decupagem, por uma captura “disfarçada”, é uma tendência que se verá explícita e em predominância nas obras sucessoras dos realizadores e realizadoras já citados; tal qual Eu Me Preocupo, onde Paulo Silver vai ao extremo da abordagem: põe a câmera ligada na casa de sua mãe e fica registrando quase que ao acaso o cotidiano da personagem de Jande Silver. Ele a filma falando ao celular, cantarolando uma canção antiga e discutindo consigo em um automóvel. Em certo momento, enquanto filma um trabalhador pintando as paredes da casa, o seu tripé desliza e a câmera passa a registrar o chão. Da mesma forma, em Meu Lugar, Larissa Lisboa põe a sua câmera diegética (assumida como objeto da cena) sobre uma mesa e, em ângulo baixo, filma o encontro e as conversas de suas amigas e amigos, antes deles se darem conta disso. 

Em Colapsar (Dir. Coletiva, 2019), numa busca experimental por um efeito comparável, a direção coloca sob o sol do dia, ao calçadão do centro de Maceió, um homem usando um longo vestido preto, com o rosto inteiramente coberto por uma touca de cabelo, enquanto executa uma dança performática: se contorce, se sacude, deita-se ao chão e, com isso, atrai a atenção dos comerciantes e transeuntes que o cercam. Apesar de o nosso olhar, na relação câmera/personagem, não se desvincular dessa figura dançante – através da câmera captando de perto e de longe, ou da grande-angular simulando um dispositivo de vigilância –; nossa atenção se centra sobretudo nas vozes proferidas por quem presencia a cena, aos enunciados assertivos ou questionadores dos espectadores do extracampo, através do microfone que aparenta rodear sorrateiramente o público, de modo a catalogar precisamente os comentários mais inusitados possíveis: indagações humoradas, julgamentos, reprovações. 

Em linhas gerais, pode-se dizer que essa “câmera disfarçada”, ou “câmera oculta” (ou se preferível for, essa “câmera espiã”), na recorrência que faz à realidade do “bastidor” das suas personagens, opera em função de evidenciar, sob um plano intimista, a percepção da (re)ação fisiológica, que se associa às emoções, do indivíduo; isto é, destacar a percepção da emissão de um “react” de suas personagens. Esse estímulo almejado, ou pelo qual o diretor simplesmente direciona sua sensibilidade – e está próximo do desejo de evidenciar a expressividade própria do registro do flagra, ainda que captado de modo inconsciente, perante a segmentação da narrativa e as transformações do discurso (e ante o seu próprio roteiro) –, é o que nasce no bojo das características expressivas e físicas do “Espetáculo da Interação”. 

Para além desse efeito geral, em Eu Me Preocupo a abordagem também proporá uma relação entre o realismo cru da “câmera oculta” e o maneirismo (as escolhas estilísticas mais impositivas), na estilização do plano. Dessa relação se seguirá a construção da beleza existencial do ambiente doméstico. Na metalinguagem de Delas, a abordagem proporcionará planos de preenchimento dos sets de filmagem, como fotografias de cena/still, guiados pelo sentimento de espontaneidade presente na equipe. Em Meu Lugar, a “câmera oculta” igualmente preservará a poesia da espontaneidade que se entremeia na interação de suas personagens, agindo mais em função de resguardar a memória afetiva de sua diretora. Já em Colapsar, o “microfone oculto” proporá o gozo da percepção das enunciações, quando concebemos as vozes do público como inseridas à realidade social do “bastidor”. Sem ter em conta o possível argumento (de questionar a natureza da arte quando apartada do palco da sua convenção), a abordagem traz à tona os estranhamentos dos outros em relação ao modo como um corpo deve agir e se organizar em determinado ambiente social. 

Finalmente, em Wonderfull, a abordagem testemunhará a evidência de uma cuidadosa empatia para com a Natasha e o grupo minoritário o qual ela representa (um trato de quem os compreende emocionalmente). Por compreender, sobretudo, como o lugar de alguém impacta o lugar de outro, dá-se o distanciamento (que alude a ideia de marginalização), a suavidade e a estabilidade da câmera sobre a visível aspereza do ambiente da comunidade em que se insere. Essa empatia sobre a figura central, que também recai sobre o real circundante, sobre os fatos em seus desdobramentos, é um sentimento que está para além de aceitar resignadamente a realidade e os acontecimentos – não se trata jamais de amar a condição miserável de vida em que as pessoas estão eventualmente submetidas –; já que a objetiva busca enquadrar o real na sua situação histórica, isto é, apesar de sua aparência triste ou feliz, miserável ou abundante.

A metalinguagem e a narrativa em primeira pessoa

Até então, percebemos que o estímulo da percepção da emissão do “react” dos atores sociais (estímulo esse quase que onipresente ao filme) efetua-se a partir da captura do “Espetáculo da Interação” – que diz respeito a elementos visuais, sonoros e emocionais (numa figura ou realidade meditativa que atrai e prende a atenção) unidos em harmonia e expressando a essência da situação de interação; neste lugar imagético onde se registra um momento único, em que habita a profusão da verdade –, quando a câmera recorre previamente aos “bastidores” das relações sociais humanas. No âmbito sociológico, Goffman argumentará que a interação humana, ou seja, esse “processo fundamental de identificação e diferenciação dos indivíduos e grupos”, é a que surge alicerçada em uma representação ou em uma performance do indivíduo, quando elaborada de antemão nos seus “bastidores” e executada ao “palco” por meio da mobilização dos seus equipamentos expressivos. No filme, o “Espetáculo da Interação” se evidenciará quando os “atores” (a câmera ou as personagens) se sensibilizarem, se constrangerem, ou se alegrarem, isto é, quando eles reagirem fisiologicamente, conforme os anseios a transmitir na justa interação mútua, para com o desdobrar dos fatos do que produzem, executam ou acompanham. À parte isso, ainda perceberemos que, concomitantemente ou para além da recorrência à perspectiva pessoal da realidade do “bastidor” das suas personagens, o filme também se volta para o “bastidor” de si mesmo (ou o daquele que filma), evidenciando o processo fílmico e/ou a própria linguagem.

No teatro ou ao calçadão do centro da cidade, onde está Natasha, os vazamentos dos bastidores (as intervenções dos “agentes”) são incorporados ao corte final do filme: observamos a equipe técnica intervir e dar indicações por trás das câmeras, falar diretamente com as personagens, também as vemos aparecerem em frente à tela, e o desfecho com a continuísta (Maysa Reis) que bate a claquete. Para mais, também ao palco, neste lócus genuíno do espetáculo, faz Natasha um relato da sua trajetória de vida: sua decisão por assumir na adolescência a sua transexualidade, por tomar hormônios, ter o corpo modificado e sair de casa; viajar da cidade de Maceió à São Paulo e, desta, à Europa, vivendo da prostituição. Do relato, são recortadas as mais belas reflexões, carregadas de generosidade, do “Eu” enunciado da personagem de Natasha: ouvimos a sua perspectiva sobre a sociedade, sua concepção sobre a arte, sobre o seu trabalho no teatro; a sua voz que afirma suas motivações, que fala das dificuldades pessoais e do dever do ativismo político; uma voz que reivindica direitos, que discursa em favor da inclusão de gêneros em ambientes empregatícios e que, sobretudo, traz à tona a luta das transsexuais em ocupar os espaços da sociedade. 

Equipe de Wonderfull – meu eu em mim (dir. Dário Jr.)

Por conseguinte, em Eu Me Preocupo, Paulo Silver circunscreve um monitor consigo de costas em cena, editando um de seus curtas. Nesse monitor observamos a reprodução de fotografias da sua infância – cenas do filme Retina (Dir. Paulo Silver, 2015). Em outro momento, o diretor captura deliberadamente um espelho onde presenciamos previamente Jande Silver, sua mãe, penteando os cabelos, de modo que o espelho lhe reflete ligeiramente a imagem com a câmera. Em Delas, Karina Liliane entrevista mulheres profissionais do cinema que articulam discursos a respeito da produção cinematográfica em Alagoas. Nessa proposta metalinguística, ela aponta a câmera para si e para a própria produção do filme, colocando-se como personagem ao centro temático da narrativa. Em Meu Lugar, Larissa Lisboa abre o filme ao se sentar diante de duas telas, também de costas para a câmera, e filmar-se fazendo a montagem do próprio filme. Nas duas telas assistimos à filmagem caseira do seu aniversário: Larissa recebe os parabéns e faz um discurso emocionante. Com uma narração (voice-over) em primeira pessoa, ela depois profere asserções sobre as imagens do arquivo, bem como comenta suas intenções de fazer o filme; além disso, admite-se aqui a quebra da quarta parede, quando as personagens apontam para a câmera e dialogam sobre a gravação em andamento. 

Em Filme_Urgência_Corte1 (Dir. Paulo Silver, 2020), o diretor vai além, assumindo por completo o caráter pessoal da modalidade do filme em primeira pessoa, e enquadra a si mesmo, durante o confinamento da pandemia (do COVID-19), escrevendo o roteiro, editando e depois exportando o filme o qual estamos assistindo. Também o observamos perambular pela casa, almoçar com a esposa, se comunicar pelo celular e assistir TV. 

Na sua dissertação de mestrado, Eduardo Miranda Silva argumentará que essa modalidade de filme narrado em primeira pessoa, onde o diretor estabelece asserções sobre a própria vida, numa autorrepresentação ou autorreferência, não deixa de traçar a mesma linha do típico documentário de depoimentos: já que quando se rejeita a convencional voz do saber (do documentário clássico), faz-se presumivelmente assertivas sobre certas figuras ou sobre si próprio. Entretanto, tal tendência de filmes de si próprio, especificamente, quando a câmera se volta para aquele que filma e suas implicações – que historicamente só pôde ser propiciada com a proliferação das câmeras digitais, dos canais pessoais de comunicação e compartilhamento (no contexto da sociedade da informação, das selfies, da universalização da vida particular), e consequentemente com o barateamento dos custos de produção e livre difusão cinematográfica –, para o autor, é uma forte ferramenta de expressão de grupos sociais minoritários, que no passado não se viam bem representados pelos meios de comunicação de massa, nas modalidades convencionais. 

Segundo alguns pesquisadores do cinema, há um consenso de que as narrativas audiovisuais em primeira pessoa, como ferramentas de expressão da diversidade de experiências, das identidades e das linguagens humanas, buscam primordialmente um efeito de real, ao assumirem um ponto de vista não-objetivo, limitado e parcial. Esse efeito de real (essa ilusão de verdade) frequentemente é reafirmado pelo uso de imagens amadoras e pela busca por evidenciar o próprio processo fílmico (quer com a intervenção, quer com a ficcionalização da metalinguagem). O que não consta é que essa busca pode servir tanto no sentido de estimular o efeito de real (através da evidência propriamente do processo fílmico), quanto no de proporcionar o distanciamento desse real (por certo maneirismo), resultando em um possível equilíbrio de certa mise-en-scène.

Para além desse efeito de real, em Delas a metalinguagem e a narração em primeira pessoa também responderão, logicamente, à sua esfera temática: a diretora se volta para si mesma, e para o seu próprio processo fílmico, porque antes se reconhece como uma mulher do meio cinematográfico alagoano. Sua perspectiva subjetiva então instaura ao filme um olhar “micro-histórico”, contribui para sua própria problemática. Em Eu Me Preocupo, a evidência do processo fílmico ocorrerá em sintonia ao caráter pessoal da obra: na escolha temática corajosa do diretor por retratar o cotidiano privado de sua própria mãe e de si mesmo, filma-se fazendo o que mais ama, ou seja, filmando e editando. Em Meu Lugar, o caráter pessoal da temática (em representar o próprio aniversário) será assumido, refletido e justificado através da modalidade de narrativa em primeira pessoa, enquanto o uso da metalinguagem se preponderará sobre essa temática – para quem desconhece os trabalhos de Larissa Lisboa, talvez até julgue esse uso intensivo da metalinguagem como um artifício deliberado contra uma possível insegurança para com a sua declaração conteudista, ou seja, como uma forma de legitimar o caráter pessoal da própria declaração. Entretanto, o processo cinematográfico sempre foi tema do cinema de Larissa e aqui ela nada mais faz do que um registro da memória individual daquilo que lhe pertence: dos amigos e familiares que ama; da paixão que tem pela captura dos reflexos, por discursar sobre o cinema e pela atividade propriamente de gravar e montar um filme. Na forma como dedica a sua vida, preserva assim a própria identidade e a própria história.

Enquanto essa metalinguagem de Meu Lugar, por exemplo, se configura através das escolhas estilísticas mais impositivas (do aniversário refilmado diretamente das telas da mesa de montagem), como forma maneirista de se distanciar do efeito ampliado de real, se distanciar um pouco do caráter íntimo da captura; a evidência do processo fílmico de Wonderfull, que não é uma metalinguagem já que o “Eu” da câmera (o código) não implica contra si, mas apenas desvela a natureza de seu “corpo”, a sua constituição – o que igualmente ocorre em Eu Me Preocupo, um “Eu” do filme que deseja apenas se reconhecer através dos próprios olhos –, opera em função de cativar nossa crença no “real”. Quando Natasha Wonderfull articula as suas enunciações munindo-se de um amor e de uma positividade visíveis que tem à vida, compreendendo-a em uma práxis histórica, isto é, através das transformações, ou do desejo pelas transformações, dos fatos; no âmbito subjetivo, nós acolhemos as intervenções, esses “vazamentos” da câmera em off, como conteúdos legitimados, e pela verossimilhança da realidade do “bastidor” de Natasha, é que nos permitimos ceder à verdade já inquestionável do filme.

O Centro dos principais acontecimentos

Sabemos que a realidade se constitui num processo histórico, a despeito de qualquer força contraditória de embate com o mundo. A partir da recorrência que se faz à realidade do “bastidor” do outro, perante essa teia de reações com o mundo, defronta-se com a “máscara” do seu cotidiano. Dessa “máscara” se sobrevém o “Espetáculo da Interação” como um Elemento poético-expressivo da (re)ação fisiológica humana; mas quando capturado pela objetiva, uma Unidade de elementos fílmicos – tal como uma versão cinemática do Instante Decisivo do Bresson. A olhos nus, frequentemente imperceptível, o “Espetáculo da Interação” é o “Si Mesmo” da imagem: uma Unidade de elementos audiovisuais e emocionais que expressam a essência de uma situação de interação. Tal Unidade ocorrerá quando a interação entre o “ator”, o outro e os seus observadores for perturbada por impressões emitidas involuntariamente, o que suscitarão formas ligeiras de reações: constrangimentos e demais emoções observáveis. Por isso, o estímulo do “react”, na dimensão cinematográfica, surge somente a partir da percepção desse “Espetáculo da Interação”.

Na esfera social, o “palco” da vida humana é lócus genuíno do Elemento da (re)ação fisiológica humana, tanto quanto este também é condição que determina aquele; ainda que, na teoria, o Elemento possa ser igualmente reconhecido “fora do palco”, quer inserido no “bastidor”, quer na “plateia” da vida social. Daí, o simples olhar subjetivo como fator determinante para a manifestação do “palco”; de modo que, o “Espetáculo da Interação” sempre esteve sujeito a ocorrer em todo e qualquer âmbito da vida social, e a sua presença como uma Unidade de elementos visuais, sonoros e emocionais apenas evidencia um caráter reconciliador que a narrativa propõe com o real, com a trivialidade da vida, ou seja, com o “bastidor” designadamente. Dessa Unidade de elementos, como um escopo formal, e dessa mensagem reconciliadora com o real – de que a beleza se encontra nas coisas mundanas, nas pequenas coisas da vida –, decorre o Centro dos principais acontecimentos. 

Uma vez que a “plateia” e os “bastidores” do “teatro”, ou seja, a realidade do espectador e do cotidiano, são, igualmente, lócus do “Espetáculo da Interação”; então na vida de um ator social – tal vida concebida como uma construção dramática, uma construção simbólica da realidade – os “bastidores” jamais são espaços preparatórios para o “palco”. A realidade cotidiana, que dá origem aos “Eus” que se desenvolvem a cada dia, não é intervalo da “verdadeira vida”. Como resultado, contrariando a ideia estereotipada de um “real” (das ações cotidianas) que aparenta ser “antiespetacular”, desagradável, previsível e enfadonho; constatamos através de Wonderfull – mas para além de sua constituição material –, o Centro dos principais acontecimentos de uma vida como situado à realidade do seu “bastidor”, ao extracampo do filme e às “máscaras” dos eventos cotidianos. 

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