Encontro em Tiradentes – Rosemberg Cariry

20200126 - TIRADENTES/MG - 23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES - Rosemberg Cariry - Foto Leo Lara/Universo Produção
Perguntas: Pedro Krull. Respostas: Rosemberg Cariry. Transcrição: Karina Liliane. Edição: Pedro Krull e Larissa Lisboa. Revisão: Karina Liliane, Pedro Krull e Larissa Lisboa. Foto:Leo Lara/Universo Produção

Pedro Krull: Rosemberg, você foi presidente da ABD- Ceará e foi um dos fundadores da Associação de Produtores e Cineastas do Norte e Nordeste – APCNN, em entrevista em 2019 você mencionou um vulcão de obscuridade que explodiu. Usando essa analogia, hoje as cinzas estão cobrindo os horizontes principalmente da cultura, como você vê o setor audiovisual nessa disputa?

Rosemberg Cariry: Rapaz, nós vivemos num momento de extrema gravidade no país pra ser sincero com você. Há no mundo uma grande crise civilizatória, muita coisa entrou em colapso no mundo e aqui no Brasil como um país periférico, ou seja, onde os resíduos coloniais, de uma mentalidade colonial são muito fortes e tal. Essa crise fez aflorar uma sombra né, uma sombra destrutiva, uma sombra que de alguma forma compromete,  não só compromete o futuro como nos leva a um retrocesso grande, um retrocesso profundo, ou seja, grandes conquistas realizadas na área da cultura, da política ou mesmo nas conquistas sociais estão sendo desmontadas. Esse é um dos momentos mais ricos, eu acho, porque é o momento de nos reinventarmos como povo, nos reinventarmos como nação, tá entendendo?! E mudarmos, vamos dizer, essa situação. A primeira coisa é o momento que nós temos que procurar ter equilíbrio né, não podemos nos desesperar, nós não podemos perder a esperança e eu acho que a arte e a cultura jogam de um papel fundamental como lugar da inquietação, como lugar da busca, como lugar da procura, como lugar de experimentação da vida.

PK: Alagoas hoje vive um momento audiovisual ímpar, estamos com quatro filmes aqui em Tiradentes, sendo um deles o primeiro longa metragem realizado com recursos públicos pelo Prêmio Guilherme Rogato. 33 projetos foram contemplado em outro edital recente de curtas, longas, telefilmes e capacitações. O cinema nordestino resiste, com Bacurau e Vida Invisível, são filmes que me veem à mente, por exemplo, mas o  momento é volátil. Como você vê essa situação?

RC: Sim. Eu acho que a grande questão que se coloca é, porque junto com isso tem que se pensar também nas formas de circulação desses produtos.

PK: Principalmente dos nordestinos.

RC: Por exemplo o que está se propondo no Ceará é a criação da Ceará Filmes que seria uma empresa de iniciativa público privado, ainda está se desenhando qual seria a figura jurídica disso, mas que estaria voltada para distribuição e pro fomento do cinema não só do Ceará, mas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, entende?! Ou seja, porque o montante de filmes produzidos é altíssimo, e no entanto, esses filmes terminam não circulando por não ter canais, vamos dizer assim, de circulação. Então é uma empresa que iria tratar disso não só dentro do mercado nacional, ou seja, das brechas desse mercado, mas também internacional. Então tomara que dê certo. Seria uma forma concreta de organização desse movimento porque uma das coisas que nos enfraquece bastante é porque nós somos ilhados. Ilhados no sentido, Pernambuco faz seu cinema ali, Ceará faz seu cinema ali, Alagoas faz seu cinema ali, e nós todos juntos somos grandes cara, somos importantes.Tem que pensar cada vez mais nessa coisa da cooperação e da integração entre os estados. Se o Ceará avançou em determinadas áreas, e coisa e tal, tem que fazer uma parceria com Alagoas ou é ou Alagoas que tem que fazer com Pernambuco, Pernambuco faz com a Bahia, ou seja, e assim vamos ver como que a gente caminha né.

PK: e essa rede como você vê montada?

RC: Os editais estaduais vão ser fundamentais agora, é o respiro que se tem na medida em que a Ancine começa com sua crise, tal, entrar em declínio, e o acesso às verbas vão ser cada vez mais difíceis inclusive por conta dos filtros ideológicos e religiosos fundamentalistas e tudo que está se estabelecendo de forma tão feia, tão horrorosa, né?

PK: As cinzas do vulcão.

RC: É. E os estados vão ter essa função, são respiradouros, tu me entendes?! É importantíssimo, sabe, a construção da política pública nos estados continuarem sendo ampliadas. E não é só a questão da dependência da política pública, é que o, nós temos que encontrar também as nossas próprias formas de sobrevivência e de realização do filme mesmo que seja através de cooperativas, de coletivos, de, há de se surgir coisas novas de formas também. Já experimentaram inclusive em outros tempos. E uma coisa que o cinema nordestino descobriu e funcionou e nos deu grande força foi também essa ligação com o exterior.

PK: O filme Escravos de Jó que abriu a 23ª Mostra Tiradentes de Cinema, havia sido pensado para ser rodado em Estrasburgo na França, segundo uma entrevista sua em 2018, mas ele foi rodado em Ouro Preto, quanto isso afetou a integração dos conflitos como, por exemplo, xenofobia com imigrantes Palestinos e personagens europeus, além disso como foi compensada a diferença entre atmosfera das cidades/suas arquiteturas?

RC: O Ouro Preto tem muito disso. É uma cidade com essa marca do passado, uma marca profunda e trágica por conta da ferida da escravidão que o país ainda hoje sangra em Alagoas, em Minas, no Ceará, e todo Brasil, né? E dos massacres dos povos originários que aquilo resulta vamos dizer dessa trágedia iniciada, dessa tragédia colonial, mas surge também todo aquele barroco, toda aquela, não é, importância daquela arquitetura muito linda com suor com sangue. Ela ao mesmo tempo é uma cidade que se insere na contemporaneidade e guarda essa tensão, tá entendendo? Porque é uma cidade universitária também. Ali tão jovens do Brasil inteiro fazendo a escola na Universidade de Ouro Preto. Uma universidade imensa, muito importante, entende?! E ao mesmo tempo é uma cidade aberta para o turismo, para as artes, para a cultura, vem muita gente de fora do país. Eu acho que é a cidade ideal para você ter essa tensão entre o passado e a contemporaneidade. Então ela se presta a essa coisa, dessa compreensão “transbarroca” desses conflitos.

PK: Mas eu queria entender, você criou esse espaço sacra em Ouro Preto, mas também um lugar desse caldeirão de conflitos por vezes simbólicos, mas o conflito palestino/Israel pra mim eu sinto ele distante.

RC: Não, é um conflito daqui.

PK: Você sente isso?

RC: Sim, claro que sim, claro. O nosso ator Radir, por exemplo, é sírio. O nosso ator, o Daniel Passir é de descendência saudita. Nós nordestinos, nordestinos nós somos árabes, nós somos sefarditas, judeus ibéricos, nós somos tudo isso. Nós trazemos todas essas heranças e esse conflito está posto na ordem do dia, entende? Eu acho que as figuras mais históricas, os velhos estão bem situados em Ouro Preto, é uma cidade que recebeu grandes poetas, grandes pintores, grandes nomes da poesia viveram em Ouro Preto estrangeiros também.

PK: No centro do filme, mora um romance entre dois jovens de religiões e backgrounds opostos, Samuel e Yasmina, isso se desenvolve sobre uma trilha sonora, muitas vezes, épica e na cidade colonial, preservada de Ouro Preto. Essas antíteses fazem parte da estética barroca, mas a maneira como foram enquadrados os processos da juventude: encontros de bar, selfies, nudes, mostram uma certa distância da vivência e dos personagens, ao contrário da proximidade e conforto nas imagens, esculturas e arquitetura barroca. Por quê?

RC: Eu fui estudante em Ouro Preto. De 70 a 72 eu fui estudante lá numa época de grande efervescência cultural e tal. De certa forma aquele personagem, o interesse dele pelas coisas, reflete um pouco a minha experiência. Tu me entendes como é?

RC: Eu não sei se o jovem de hoje tá tão interessado assim sobre temas do passado. Na pesquisa, em estudar o barroco, em desvendar os nó da história, do passado colonial, dessa coisa toda e tal. Mas na minha época isso era muito vivo, ou seja, eu sou de uma geração que isso era muito vivo. Eu sei que essa coisa do fazer cinema, do estudar cinema, tá perfeitamente inserido na contemporaneidade, ou seja sua câmera na mão, sua descoberta e tal, mas é isso. Mas eu acho que a história do filme mesmo é a história daqueles dois jovens. Que eles vêem de lugares distintos religiões distintas. Se encontram em uma cidade que não pertencem a eles, numa tentativa de construções identitárias, ao mesmo tempo de conflito com essas identidades.

PK: Os corpos no filme dos dois jovens são enquadrados de modo bem específico, muitas vezes blocados em alusões a figuras/esculturas barrocas o drama é reforçado pela direção de fotografia de seu filho, Petrus Cariry. Porém, existe uma disparidade da exposição do corpo masculino e feminino, a cena de nu de Samuel, protagonista homem, é imersa em sombras, com um fino contra luz, enquanto o corpo de Yasmina diversas vezes é exposto por completo e recortado, despedaçado por que essa decisão?

RC: Porque o dela se insere numa nova forma de captação, ou seja é o celular. A luz é a luz que geralmente são mais lavadas mais num sei o que e tal. E ao mesmo tempo aquele corpo é um corpo espedaçado, um corpo fragmentado num é?! Ela vem de um conflito, de uma guerra e ela quando manda o corpo pra ele tem que montar os pedaços daquele corpo para poder compor. E ao mesmo tempo é um corpo que fala de um amor que ele acontece como simulacro, uma virtualidade, um não sei o que, um desejo coisa e tal de um amor que não se constrói no real, ele fica dividido entre Tanatos, digamos assim, a imagem da morte, os corpos flagelados, marcados. Aquela composição de pedaços onde ele busca a beleza e uma visão do Eros, o amor da possibilidade. Então o filme tem essa, trabalha essa poética, vamos dizer, da imagem, quase também de forma simbólica, metafórica, de um tempo. Então são jovens também de alguma forma espedaçados.

PK: Mas o corpo dela é retratado muito mais despedaçado do que ele.

RC: É, ela vem de uma guerra. O tempo todo ela ta falando de parentes mortos. Tem uma cena que ela vê um cineminha. né? O cavalo é a liberdade, é a possibilidade, é a fuga, é aquela coisa toda e junto aquilo começam a vir todas as imagens fragmentadas da guerra, do sofrimento, então são pessoas muito dilaceradas também, entende? E há também uma coisa muito marcada que não sei se você percebeu isso que são as visões de mundo, de política, de tudo, entre ela e o irmão, ela acredita no diálogo, ela acredita na possibilidade das duas nações em paz, sem muros e o cara sofreu outras coisas e acha que tem que ser na luta.

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