Filme Brasileiro

Texto: Rastricinha Dorneles. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: Diego Paz.

De quem é o cinema brasileiro? Você pode ter certeza que alguns vão gritar que é do Brasil, eu já não sei. As estatísticas compartilhadas pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE) afirmam que a produção de cinema no Brasil é majoritariamente masculina, branca, cisgênera e de pessoas pertencentes a um grupo econômico que representa apenas 3% da população brasileira.

No ano de 2023 o cinema arrecadou mais de 2 bilhões nas salas de cinema, com mais de 100 milhões de ingressos e desses cem milhões, menos de 3% do público foi assistir uma obra nacional.

O cinema de um país atua para produção de memória, dos costumes, roupas, arquitetura e das pessoas que fizeram de alguma forma parte da indústria cinematográfica. Hoje o nosso país continental tem toda sua atenção e investimentos voltados para a narrativa que um pequeno grupo tem para contar.

Eu nasci em 1992 na cidade de Paty dos Alferes, na verdade nasci em Miguel Pereira, pois na minha cidade não tinha uma maternidade. Sou uma travesti, que teve mãe e avó domésticas. Minha avó sonhava com as novelas e com os filmes da cozinha de seu trabalho e compartilhou seu sonho comigo. Minha mãe é uma artista intensa, que nunca conseguiu manifestar sua voz, mas sempre sonhou em dançar. Pessoas que têm histórias comuns às pessoas do Brasil, mas que só podiam sonhar em fazer filmes.

Cresci na cidade do Rio de Janeiro, fui com seis anos viver com minha mãe e novo pai. Tinha um SESC perto de casa e estudava em escola pública de qualidade, desde muito novinha sabia que queria viver de audiovisual, minha determinação e esperança eram confundidos com petulância. Quando eu tinha 14 anos, meu professor de Geografia falou para mim, na frente de toda a turma, que alguém como eu no máximo seria caixa de supermercado.

Aos 16 participei de um processo coletivo com jovens que resultou em dois curtas que abordaram o tema da homofobia nas escolas. Depois fui júri jovem do Festival de Curtas do Rio ano de 2009. Nesse grupo de jurados, eu fui a única que não teve coragem de estudar cinema e no ano de 2011 ingressei na Universidade Federal Fluminense para fazer psicologia. A UFF é uma das poucas universidades públicas no Brasil com curso de cinema, mas eu mesma não acreditei que poderia escolher a carreira que eu sonhava. Seguir um caminho diferente do nosso é adoecedor. 

Devido às políticas públicas fui percebendo uma mudança, cinema negro, cinema de mulheres cis, cinema indígena começam a surgir puxando uma onda de discussão, um cinema exclusivo de homens brancos cisgêneros não é um cinema tão grande quanto o Brasil.

Larguei a universidade sentindo o cheiro da nova estação, comecei a fazer meus vídeos-artes, acessar espaços de formação como Projeto Marieta, nisso fui percebendo que uma carreira não deveria ser um sonho, mas um direito. Devemos ter o direito humano de decidir com que vamos trabalhar, o direito humano à cidadania plena, mas uma andorinha só não faz verão.

Quando entrei na Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA) deixei de sonhar só, para sonhar junto e como disse Fernando Pessoa, sonho que se sonha junte, vira realidade. Quando entrei na APTA consegui me articular para encontrar parcerias profissionais, finalizei meu primeiro curta como produtora, diretora e roteirista, consegui registrar meu filme, que tem seu certificado de produto brasileiro, Erê: Criança no axé, discute se uma casa de axé é lugar de criança, e só existe graças à organização política de pessoas trans. 

Hoje estou desenvolvendo ideias, enviando projetos para editais e com meu primeiro longa como roteirista em pós produção. Talvez eu seja a primeira realizadora da minha cidade, Paty dos Alferes. 

Por mais que seja difícil de acreditar, nas menores cidades, nos grupos mais vulneráveis, existem cineastas. Para que a indústria audiovisual deixe de ser excludente, para fidalgos, eleitos ou escolhidos, ela precisa olhar com respeito para as cinematografias produzidas por diversos gêneros, raças e territorialidades, respeitando, investindo e acolhendo a diversidade no ecossistema da produção do cinema brasileiro.

Veja mais informações sobre a filiação junto a APTA aqui

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