Nuno Balducci indica

Texto e escolha dos frames/imagens: Nuno Balducci*.

Refleti muito antes de fazer essa curadoria. Como produzir uma seleção de filmes alagoanos quando se está tão envolvido com os produtores, ter dirigido filmes, participado de equipes e feito curadoria para festivais locais? Refletindo sobre esse lugar de dentro, a qual me vejo inserido, qualquer tentativa de buscar um olhar de fora seria um esforço inútil e empobrecedor. Aceitando esse lugar de desconforto, mas também de pertencimento, não só pelas imagens que esses filmes me causaram, mas também tendo em conta o seu processo de produção e da minha relação com os realizadores, cheguei a um conjunto de filmes que seguiram de alguma maneira a minha trajetória com o cinema alagoano e sobretudo com a minha vivência cultural em Maceió. A frágil ligação entres esses filmes (que não se aproximam necessariamente em estética, nem em escolhas temáticas, nem em formatos visto que cito curtas, médias e longa-metragem) é esse lugar do inacabado, do processo, do “erro”, do experimento e do risco e, sobretudo, com a convicção de ser cinema. Que tenham planos ou ideias instigantes sem que se tenha o filme perfeito tecnicamente ou completamente convincente em sua encenação. Em outras palavras é a busca pela construção de vários cinemas alagoanos que me interessa ao propor a curadoria a seguir.

1. Mirante Mercado (2004) dir. Hermano Figueiredo

Esse documentário em média metragem foi o primeiro filme alagoano que eu assisti. A ocasião da primeira sessão foi curiosa. Um grande amigo e antigo vizinho, Vinicius Barbosa, era sobrinho do realizador e foi a primeira pessoa a me dizer que existiam pessoas que se arriscavam a dirigir filmes numa capital onde se tivesse cinco salas de cinema na época era muito e a exibição de filmes nacionais era bastante limitada. Por coincidência, pouco tempo depois dessa revelação Hermano foi a minha casa para entrevistar meu pai para um documentário sobre Calabar e o presenteou com o DVD de Mirante Mercado. Muitos dos personagens que surgiram na tela eram indivíduos já conhecidos pelas minhas andanças no centro de Maceió. O ponto de partida da narrativa também não me era estranho: a linha de ônibus que liga a praia da sereia com o mercado público. É um filme que fala sobre viver numa cidade chamada Maceió com pessoas que usam do humor e do jogo de cintura pra levar a comida para casa todos os dias. Retrato de uma sociedade desigual, violenta, mas que ainda assim não perde o humor e a ternura.

2. Interiores ou 400 anos de Solidão (2012) dir. Werner Salles Bagetti

Assisti esse documentário profundamente inventivo para a curadoria de uma sessão de cinema alagoano, em 2013, do Projeção Cineclube (cineclube que fiz parte e que funcionou de 2010 até 2013 na Unit). Todo aquele universo fantasmagórico que mistura cores, palavras e imagens de um sertão contemporâneo, mas carregado de elementos arcaicos e performáticos, me impressiona toda vez que eu revejo esse média-metragem. Aquele objeto da fé e da espiritualidade, que Bagetti viria a desenvolver mais profundamente em seus filmes posteriores, é acompanhado de combinações estéticas que vão desde a fotografia estourada da paisagem do Sertão, ao uso do preto-e-branco no sermão de um padre, até o uso de animação. Não há textos nem voz em off explicativos para guiar os acontecimentos que surgem na tela. É preciso viajar em todo aquele jogo visual marcado por uma montagem frenética e uma atmosfera sonora que mistura elementos do suspense, road movie e cinema-direto.

3. O Vulto (2013) dir. Wladymir Lima

Meu contato com esse curta-metragem se deu por ocasião da IV Mostra Sururu de Cinema Alagoano, edição na qual fiz parte da curadoria ao lado da Ismélia Tavares e João Paulo Santos. Filme urbano que mistura violência e misticismo através da luta de um casal de jovens da periferia para sobreviverem após a ameaça de morte por uma facção rival. Ao contrário de Mirante Mercado (em que o ambiente do centro me é familiar), o cenário apresentado era menos familiar, enquanto jovem de classe média que visitou poucas vezes as grotas e bairros periféricos da cidade. Um ponto curioso no enredo é a relação que se estabelece entre centro e periferia, em que uma das personagens se vê na necessidade de se deslocar do bairro onde mora e ir para uma região de classe média para visitar uma madrinha que detêm o conhecimento de uma “simpatia” que poderá impedir que o assassinato de seu namorado ocorra.

4. Jorge Cooper (2013) dir. Victor Guerra Araújo

Outro interessante documentário ambientado na região do centro de Maceió (e que tive a oportunidade de conferir enquanto curador da Mostra Sururu 2013), mas agora tendo como objeto de investigação a trajetória pessoal do poeta alagoano Jorge Cooper. Utilizando-se da fotografia em preto-e-branco nas cenas externas filmadas na praça Deodoro e da textura colorida do super 8 nas imagens do autor alagoano (em conversa com o poeta Marcos Farias gravadas pelo cineasta Celso Brandão em meados dos anos 80), o filme mescla entrevistas com personalidades que conviveram com o poeta e também com estudiosos de sua obra, porém eliminando a sincronicidade entre a fala dos entrevistados e suas imagens. Já as raras falas de Jorge Cooper, registradas em super 8, com toda sua acidez na crítica sobre a sociedade alagoana e maceioense, tornam esse curta-metragem um dos grandes documentários sobre Alagoas.

5. Maré Viva (2013) dir. Alice Jardim e Lis Paim

Outro filme que eu tive contato na curadoria da IV Mostra Sururu de Cinema Alagoano. Esse curta-metragem, que aceita o seu lugar de experimental, nos brinda com o uso criativo do espaço urbano e natural de Maceió. Partindo de dois fatos sociais sensíveis na sociedade em geral, o abuso sexual de mulheres e o suicídio, as diretoras exploram as localidades e espaços de maior incidência dessas duas na capital alagoana. Mas engana-se quem pensa em assistir um filme sobre o assunto. O uso da câmera em primeira pessoa (onde o espectador é colocado no lugar das vítimas) é o ponto que une a estrutura experimental do curta para daí explorar o espaço urbano e sua arquitetura. Associado ao desenho de som e trilha sonora condizente com a proposta criativa do curta, as diretoras fazem de prédios, grotas, terrenos baldios e até fios elétricos uma viagem imagética e sonora única pelo espaço urbano maceioense, passando pelo centro da cidade, os bairros mais nobres até bairros periféricos.

6. A Gente Não Combina Com Essa Sala (2014) dir. Nivaldo Vasconcelos

Falar desse filme é também falar da minha relação com seu diretor. Nivaldo é sem dúvidas uma das pessoas mais criativas e mais apaixonadas pelo cinema que eu tive a oportunidade de conviver desde a época do movimento cineclubista, onde o conheci no início da década passada. Foi nesse intenso contato que tivemos durante a atuação cineclubista (onde ele enquanto membro do Cineclube Ideário e eu do Projeção Cineclube) que Nivaldo me convidou para ser seu assistente de direção nesse curta. Foi o primeiro set de filmagem que eu participei num filme rodado praticamente em 48 horas, numa sala branca, com ausência de cenário, os atores praticamente nus em todas as cenas, com um enredo envolvendo assassinato numa Maceió que só se revela na tela no último plano. Tratava-se de projeto ambicioso e que tinha o objetivo de causar estranheza e deslocamento num cenário audiovisual onde o realismo nas atuações e a fotografia excessivamente trabalhada mostrava-se presente em quase toda a leva dos curtas alagoanos daquele período. Um filme de risco e de excessos propositais, onde se assumem os perigos de um cinema que se quer autoral e, por isso mesmo, é imperdível.

7. Eu Me Preocupo (2017) dir. Paulo André Silver

Ao contrário de todos os outros filmes citados aqui, esse foi um filme que o assisti ainda no seu processo de edição. Um curta que muitas cenas foram filmadas a partir da necessidade delas existirem para construir a narrativa na edição e que pude acompanhar no período de montagem do meu segundo curta-metragem, Os Desejos de Miriam (2017), em que Paulo fora o montador. Paulo Silver tem em quase todos os seus curtas um único objeto e um único tema: a passagem do tempo e a experiência afetiva no cotidiano. É dessa urgência que o tempo e o presente se apresentam que emergem seus filmes. É da experiência com as pessoas que estão a sua volta que surgem seus temas. Não por acaso Eu me Preocupo tem como protagonista sua mãe, Jande Silver, e seu enredo envolve o reencontro dela com um ex-namorado na internet, após anos de luto pela perda do marido. Embalada pela canção do Dire Straits (que dá título ao filme), esse curta move o espectador ao mesmo tempo nos espaços de convivência de Jande e Paulo no apartamento que dividem, mas também nessa vontade de mudar e romper com esse mesmo cotidiano na eterna busca de ser feliz.

8. Ilhas de Calor (2019) dir. Ulisses Arthur

Mais uma produção em que estive na equipe, atuando novamente como assistente de direção, e que minha presença nas filmagens se deu pela amizade anterior com seu realizador. Ulisses Arthur, além de um grande amigo, é uma pessoa com olhar cinematográfico para o mundo. A beleza e a sensualidade de seu olhar sobre o outro é o que torna seus filmes tão sedutores e envolventes e Ilhas de Calor cristaliza essa sua maneira de ver e filmar. Longe de buscar um encadeamento de causas e efeitos para sua narrativa (onde a mise-en-scène seria de alguma maneira submetida e ao mesmo tempo submeteria os atores e os objetos em cena), é a quebra desse “efeito de realismo”, associado a uma ênfase na performance emancipatória dos corpos no plano, e não na sua representação dramática, que torna Ilhas de Calor um filme envolvente da primeira a última cena sem recair nos vícios da câmera parada ou do plano-sequência interminável. A monotonia da sala de aula é quebrada não apenas pelo subterfúgio do recreio, mas também pela potência imagética de um ensaio de um grupo de rap feminino, um clipe musical imaginado, no corpo negro e trans da atriz Vyctor(ia) Tenório, ou mesmo na pedra que Fabrício joga contra a câmera revelando a quarta parede cinematográfica. É essa pedra jogada por Fabrício, que atinge o espectador no seu estado de conforto e segurança ao tentar pré conceber a próxima cena, que melhor representa o inconformismo entusiástico do fazer cinema de seu realizador.

9. Como Ficamos da Mesma Altura (2019) dir. Laís Araújo

Assisti esse curta-metragem durante o processo de curadoria do Mostra de Cinema Brasileiro do Circuito Penedo 2019 da qual fiz parte. Essa primeira incursão de Laís Araújo na direção de um filme de ficção revela um momento bastante singular no cinema alagoano: o redirecionamento do olhar ficcional de Maceió para o interior de Alagoas. Processo esse que vem desde as ficções de Pedro da Rocha, mas que ganhou força com a presença em festivais nacionais de produções do Navi em Arapiraca, Cana Filmes de Teotônio Vilela, mas também do curta, já citado e filmado em Viçosa, Ilhas de Calor (2019) de Ulisses Arthur. Através de um road movie “canceriano”, onde acontecimentos e ressentimentos do passado emergem nos diálogos e nos sentimentos das personagens, Laís capta todo um universo de imagens, sons e gestos presentes em Anadia. Mas engana-se quem acha que o curta se resume a registrar esses elementos locais. Laís cria diversas cenas cinematograficamente interessantes, tanto no tremido da câmera, que filma duas garotas conversando em frente a uma banca de fogos até captar um chapéu de guerreiro no bagageiro de uma bicicleta, no movimentos dos atores no plano após uma briga, ou na insistência da protagonista em tirar uma farpa do pé. Os corpos dos atores aqui estão quase sempre destituídos de sua unidade física, seja por causa do enquadramento da câmera, ou pela escolha de ângulo que enfatizam certos objetos do cenário, seja uma parede, uma tv ou uma rede.

10. Cavalo (2020) dir. Rafhael Barbosa, Werner Salles Bagetti

Cavalo não é apenas o primeiro longa-metragem alagoano financiado por edital público. Ele é o primeiro longa-metragem alagoano em que temos a oportunidade de, a partir dele, revisar os caminhos criativos e tortuosos da produção cinematográfica dos dois realizadores de estéticas e interesses tão distintos, mas que conseguem, ainda assim, criar juntos uma obra singular. Ressoam nas imagens de Cavalo elementos de História Brasileira da Infâmia (2005), Interiores ou 400 anos de Solidão (2012) e Exu, para Além do Bem e do Mal (2012) de Werner Salles Bagetti, mas também de Km 58 (2011), O Que Lembro, Tenho (2012) e Jangada de Pau (2015) de Rafhael Barbosa. O elemento híbrido e performático presente em todos esses curtas e médias-metragens se revelam num amadurecimento e sofisticação bastante singular nas imagens do longa, mas também em sua abordagem temática. A partir da trajetória e experiência de atores e atrizes negros na vida urbana maceioense e seus vínculos de ancestralidade ancorados em suas relações com as religiões de matriz africana, o longa explora a performance desses mesmos corpos que, ao se apropriarem dos mais diversos espaços da cidade, revelam a anfibialidade da cultura alagoana, e que esse território demarcado pela identidade é representado no filme tanto pelas águas salobras da lagoa Mundaú até as praias da Garça Torta e Riacho Doce. A lagoa, espaço onde surgiu tantas manifestações populares, que inspirou toda uma produção cultural alagoana (Otávio Brandão, Jorge de Lima, Dirceu Lindoso, Edson Bezerra etc.) e que foi e ainda é o local de moradia e sustento, a partir da coleta e comércio do sururu, de milhares de famílias majoritariamente negras, encontra (cinematograficamente falando) uma das praias que é o “refúgio” de toda uma nova geração de artistas, intelectuais e acadêmicos que pensam e fazem a cultura alagoana hoje. Da mesma maneira que em Interiores ou 400 anos de Solidão é preciso viajar nas sequências de imagens e elementos que surgem na tela, levando o espectador a uma viagem pessoal e instigante por uma Maceió negra, não no sentido racista-colonizador que o negativiza, mas do mangue, da lama do sururu, da umbanda e do camdomblé, das nuvens ao pé do mar que trazem a chuva, da vida noturna da periferia, das ruas desertas do centro e sobretudo do povo preto e herdeiros de Palmares.

De alguma maneira, começar essa lista com Mirante Mercado (2004) e terminar com Cavalo (2020) é demonstrar um elo cultural e territorial que o cinema alagoano se apropriou de diferentes maneiras em filmes com propostas estéticas e temáticas distintas nos últimos 16 anos. O ônibus que sai da praia da sereia em direção ao mercado da produção atravessa diversos cenários de alguns filmes citados aqui. Mas independente de estar na rota dessa linha viária, ela serve como metáfora para pensar os caminhos que o cinema alagoano tem percorrido, ao nos levar nos mais diferentes territórios e espaços do estado a partir de diferentes propostas estéticas e narrativas que forçam o espectador não apenas a contemplar paisagens já conhecidas, mas a pensar e refletir sobre esses mesmos lugares de memória e reconhecimento e que nos formam enquanto alagoanos.

*Nuno Balducci é cinéfilo, cineclubista, realizador e pesquisador, atuando também como curador, oficineiro e crítico cinematográfico. É diretor e roteirista dos curtas-metragens Atirou para Matar e Os Desejos de Miriam e mestre em Antropologia Social pela Ufal, onde investigou a relação entre performance, masculinidade e identidade regional no cinema do Nordeste contemporâneo.

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