Série: Encontros em Brasília – Amanda Devulsky e Pedro B. Garcia (Aulas Que Matei)

Entrevista: Leonardo Amaral. Texto: Leonardo Amaral. Revisão: Janderson Felipe e Larissa Lisboa.

A cobertura do Hotel B estava quase vazia, só populada pelos funcionários e um ou outro hóspede. Só eu, Amanda Devulsky e Pedro B. Garcia estávamos lá, na reta final do 51º Festival de Cinema de Brasília para conversar sobre Aulas Que Matei, o curta mais recente da dupla de diretores brasilienses.

Leonardo Amaral: Como foi a experiência escolar de vocês?

Amanda Devulsky: Pessoalmente?

LA: É!

Pedro B. Garcia: Eu acho que tem duas experiências escolares diferentes na minha vida. De quando primeiro estudei em Goiânia, quando tava estudando… e depois minha experiência atuando nas escolas com cinema e educação, mais próximo do que seria um professor, do papel de professor. Minha experiência escolar é muito marcada por essa lógica de uma privatização do ensino, de um estudar para atender alguma demanda de mercado, um ensino voltado pra vestibular, apreensão de conteúdos específicos. E muito pouco pautado nas relações humanas.

AD: Eu sinto a mesma coisa. Tanto que quando a gente começou a falar sobre esse filme – quando Pedro tava saindo da UNB e começou a falar sobre esse interesse de dar aula, fez um curso de licenciatura e começou a fazer estágio de professor de filosofia justamente e tal… eu pensava muito na minha dificuldade de me relacionar, naquela época, com o ambiente escolar por causa da experiência desagradável, desumana, que eu tive na escola. Eu nem terminei o Ensino Médio, fiz um supletivo, assim… no geral é isso, é essa relação complexa no sentido de que existe essa tentativa de resistir com algum afeto, alguma humanidade, a essa padronização estéril ao qual a gente é submetido.

PG: É, e aí eu acho que nesse segundo momento quando vou trabalhar nessas escolas – a gente trabalhou em várias escolas da rede pública do DF – eu já encontro um outro espaço. Ali nessas escolas da rede pública daqui do DF era possível encontrar brechas e rupturas onde era possível ativar essas relações humanas e encontrar outros laços da educação, que tão pra além dessa reprodução de conteúdo. E aí isso começou a me instigar muito, a vontade de continuar com esses projetos. A gente foi conhecendo algumas escolas que tinham programas mais interessantes, outras nem tanto. Em todas sempre havia uma brecha pra uma educação mesmo, assim.

Amanda fala risonha.

AD: “Uma educação mesmo”.

LA: É interessante você falar sobre essa questão de privatização porque eu acho muito estranho como, por exemplo, se une a escola privada com algum cursinho. Eu não sei se é a realidade daqui, mas lá em Maceió a maioria dos estudantes de escola privada tem a escola e ainda tem cursinho, um acúmulo de ensinos que não conseguem realmente absorver.

PG: Eu não lembro quase nada dos conteúdos, fora os que me interessavam tipo Literatura. Fora isso, eu não lembro quase nada do que aprendi no Ensino Médio, assim… é uma relação muito de interesse, de objetivos profissionais, muita coisa se perde. Acho que aqui tem também isso, acho que no Brasil é isso, vem avançando cada vez mais essa lógica de ensino. O Brasil tem a maior rede privada de educação do mundo. O maior grupo que vai desde o ensino superior até o ensino básico. E cresceu muito nos últimos anos, esses grupos privados de educação, são quase monopólios. É um pouco assustador. E acho que são esses grupos que tão nessa pressão por uma precarização da escola, a quem interessa essa precarização; tem a quem interesse, tem quem tá ganhando com isso.

LA: Quando você usa o termo assustador, eu lembro de uns momentos do “Aulas que Matei” que vocês empregam dentro das subjetividades dos alunos presentes um certo fantástico na coisa. As cenas envolvendo policiais e como eles lidam com o ambiente escolar geram apreensões que vocês não utilizaram exatamente do explícito, usam do sonoro com sirenes e só de imaginar uma criança sendo abusada por um policial já dá um negócio… Como vocês mediram o quão explicitamente lidar com essas coisas?

Amanda se direciona a Pedro com um sorriso.

AD: Gosto quando você responde que dá tempo de eu ficar pensando mais enquanto isso.

PG: Acho que essa presença da polícia nas escolas é uma questão séria, assustadora, a forma que isso é colocada. Aqui em Brasília, aqui no DF tem o batalhão escolar. Existem escolas em que a polícia está diariamente, fardados e armados. Eu entendo que quando a polícia entra na escola a educação já acabou, se encerrou o papel da educação. Não existe mais possibilidade. Acredito que não é algo que devemos naturalizar. E acho que o filme vai por isso mesmo. Uma tentativa de não naturalizar essa presença da polícia na escola. É algo que não é de boa, não é normal. Acho que vai por aí e também a vontade de não explorar violências.

AD: É, acho que tem a ver com isso o fato de certas coisas não serem mostradas. E também tem a ver com o processo que a gente teve com as pessoas que construíram o filme com a gente, assim… não reproduzir, não montar uma situação que é escrota.

PG: Não refazer no filme a violência que a polícia faz com eles, faz com todos esses sujeitos da escola.

LA: É muito bom falar isso porque existe uma mania de quando lidar com grupos marginalizados que são violentados de alguma forma, se cria todo um espetáculo em torno dessa violência, geralmente o clímax do filme envolvendo LGBTs é uma violência, um abuso, e isso serve pra outros grupos também. Vocês sentem que a formação acadêmica trouxe uma maneira interessante de lidar com violência?

PG: Só retomando o começo, porque assim: a gente tá lidando com a escola enquanto uma comunidade escolar, enquanto sujeitos coletivos. Mas também entendendo que ali existe uma multiplicidade de sujeitos muito grande. O interesse do filme não é pensar: vamos falar de um grupo marginalizado. É falar de diversos sujeitos que atravessam aquele espaço. Acho que nem cabe só reproduzir uma violência que acontece, porque existe uma complexidade, existe na escola quem teja apoiando a polícia. A polícia quando entra tem aval da diretoria, né? Mas essa questão da experiência acadêmica…

AD: Acho que, rapidinho, só te interrompendo, acho que isso que você tá falando tem a ver com aquela questão que a gente conversou muito sobre não representar uma realidade. Pensar que existe a realidade fixa e a gente vai retratar o real…

PG: Como se existisse uma verdade anterior ao filme que a gente vai só reproduzir na tela.

AD: Isso, no sentido que a gente enquanto produtor de imagem, como todo mundo que trabalha no filme, a gente tem essa possibilidade de construir uma experiência específica que se dá no momento do filme.

PG: É, é uma experiência específica que tem muito a ver com esse processo de novo. Ela foi sendo construída na relação com quem tava participando do filme, que eram professores, alunos, equipe do filme também. E essas experiências iam atravessando o que a gente queria fazer.

AD: Isso talvez tenha a ver – agora que eu juntei com a questão de reflexão…

PG: Acho que claro que como a gente estudou – nós dois temos uma trajetória parecida nesse período da educação na universidade, a gente estudou na UNB na Faculdade de Comunicação e agora vem dando continuidade aos estudos… Isso influencia a gente mas não é tão uma reflexão direta. “Ah, esse conceito eu vou aplicar aqui”, e tal coisa. Isso vem de debates que a gente tá envolvido e de alguma forma vão refletir na forma que a gente tá fazendo o filme, como as outras pessoas vão trazer outras coisas que tem a ver com a experiência de cada um, e vão afetar o filme. Afeta o filme junto com um turbilhão de coisas que acho difícil dizer o que foi cada coisa, o que foi que refletiu em cada momento. O processo refletiu, as nossas experiências refletiram, o contexto político do Brasil também se reflete de alguma forma. Acho que a gente fugiu um pouco da sua pergunta…

Rimos.

LA: Nada, faz parte, gosto assim. Nessa edição do festival de Brasília a gente percebe um aumento de filmes de zonas e áreas que não são normalmente vistas em um espectro geral de cinema brasileiro. Quando vocês pensam em como Brasília é representada, não só ela, mas as cidades satélites em volta, como isso afeta o cinema de vocês? Não diria nem representação, mas construção da identidade de uma cidade de certa forma.

PG: São experiências em cidades – e o DF é bem grande, tem bastante cidades com rolês próprios e muitas coisas acontecendo – e ao mesmo tempo pensar que nosso filme foi filmado em São Sebastião, mas a vontade de fazer dele vem de experiências em diversas regiões e cidades. A primeira escola onde eu trabalhei foi no Paranoá, depois trabalho na Ceilândia, e aqui no Plano também tem escolas da rede pública, professores com quem eu conversei que trabalhavam em escolas.

AD: É, você tá falando do imaginário visual de Brasília né?

LA: Isso.

AD: Existe esse imaginário de Brasília que tem a ver com o centro, com o Plano Piloto, com esse espaço, que o Pedro até comentou e foi parar na entrevista com a Gabriela. Esse espaço de segregação, essa arquitetura que tem suas questões espaciais.

PG: A forma como foi construída a cidade é tão específica e de alguma forma agressiva que acaba atravessando a maioria dos filmes da cidade. Meio difícil fugir disso. Pensando no nosso processo a gente tá sempre muito pautado pelos espaços, quando a gente faz os filmes que a gente faz junto. O filme anterior que a gente fez, “Fantasma Cidade Fantasma”…

AD: Ele é gravado aqui no parque da cidade. Um espaço super específico, cheio de vazios…

PG: E que de alguma forma reverbera esse vazio da cidade.

AD: É, reverbera na configuração espacial dele, reverbera no sentido de experiências que acontecem ali de dia e de noite, foi o ponto de partida do “Fantasma Cidade Fantasma”. E acho que esse filme novo tem um procedimento parecido. Esse procedimento de partir de um espaço, de uma experiência prévia, que nesse caso é a escola, pra criar e construir com outras pessoas uma ressignificação.

PG: Se no parque a experiência era ir pelos rolês, tipo beber em estacionamento, aí você vai encontrando as pessoas naquele lugar a noite… no “Aulas” acho que a experiência parte inicialmente mais desse lugar do professor, e aí por ele a gente vai se desfazendo desse lugar do professor.

AD: Se desfazendo dessa perspectiva única do professor. Que ao mesmo tempo é isso. A gente falava disso durante, que essa coisa de filme com professor que vai lá e o professor salva o aluno é quase um gênero.

PG: Uma coisa desde o início que a gente não queria era repetir essa lógica um pouco perversa.

AD: Mas ao mesmo tempo a gente parte dessa perspectiva.

PG: É, porque existe uma vontade dos professores que atuam ali porque acreditam nesse espaço público.

AD: Sei nem por quê a gente tá falando disso, mas…

LA: É ótimo assim, várias ideias.

PG: Vai nessas digressões…

AD: No final, era uma coisa que a gente tava sentindo durante todo o processo de um jeito bem intuitivo. Na montagem com Bruno, durante o processo de montagem a gente mostrou pros estudantes pra discutir com eles também. Nesse processo ficou muito evidente pra gente essa coisa de que o filme entrava com a nossa perspectiva e no processo ele se ramificava em outras perspectivas dessa experiência. Ao mesmo tempo que o processo que tá no filme enquanto filme, é um processo que tava no processo de fazer o filme. Exatamente essa coisa de chegar, ter uma proposta e a partir desses diálogos todos que tá acontecendo a proposta se alterar, se modificar, se transformar.

LA: Geralmente quando a gente faz um filme tem aquela coisa, ou coisas, que a gente gostaria muito de falar sobre e ninguém nunca pergunta sobre.

PA: Uma coisa que eu gosto de falar recentemente, assim, mas não sei se tem a ver tanto com o filme, mas tem a ver com a vontade do filme, é pensar esses modos de exibição, sabe? Porque quando a gente faz o filme, e quando a gente tá presente na escola, uma coisa que é muito forte são essas possibilidades. Essa é outra forma de exibição muito diferente da sala de cinema. Uma coisa que eu sentia muito: o cineclube da escola é uma experiência distinta da sala de cinema, que tem claro muitas coisas em comum, mas ele possibilita algumas relações que as salas de cinema são mais difíceis. Acho que a exibição na escola tende a um controle menor, não tá numa sala escura. E tem um aspecto mais coletivo. Pessoas que se conhecem juntas vendo um filme pra dialogar sobre o filme. Alguns festivais têm mais isso, outros menos. E acho que isso tem uma potência muito grande, sabe? Gosto de falar isso porque um pouco da nossa vontade com esse filme agora…

AD: Desde o início.

PG: É, desde o início, é começar a dar esses rolês e ter essas trocas, com ou sem a gente. É uma coisa que eu gostaria de falar porque surge poucos nos debates.

AD: Essa vontade de exibir o filme e ele se desprender cada vez mais é muito forte.

PG: O que interessa a partir de agora não é nem o que a gente quis dizer, mas o que o contato das pessoas com as imagens vai gerar. O que a gente quis dizer é pouca coisa em comparação com o que pode surgir desses novos contatos. Ficar querendo limitar o filme ao que a gente quis dizer…

AD: Também por isso a gente fez um filme que tem uma abertura muito grande, né? Que é até incômoda, nesse sentido. De ter um vazio muito grande a ser preenchido por quem assiste, ou não.

PG: As vezes a gente é interpelado nesse sentido, tipo: “O que você quis dizer com isso?”

AD: Ou então: “mas as coisas não se resolvem?”

LA: Vocês falaram sobre como vocês entregam o filme e ele vai se transformando a partir não só da colaboração de pessoas na produção, como de outras experiências no futuro. E uma coisa bem forte nessa edição do festival é uma questão de diretores em dupla, grupos, que vai contra uma lógica comum de autor, o autor da obra. Qual a opinião de vocês não só sobre Teoria do Autor, mas como ela está se transmutando no Brasil e no mundo nesses últimos anos.

AD: Ai, isso me preocupa. É algo que eu penso bastante.

Nesse momento fomos interrompidos por uma galera do Canal Brasil porque estávamos sentados na mesa que eles usaram em outras entrevistas em vídeo. Trocamos de mesa. Um beijo pro Canal Brasil.

AD: continuando… eu não sei se te falei, mas eu tenho um outro projeto que é o Verberenas. É um site criado em 2015 feito só por mulheres realizadoras que escrevem sobre cinema. Antes ele rolava só com textos independentes, e depois ele virou meio que uma revista com edições. Aí, enfim, tem todo esse rolê. Essa discussão do autor interessa a gente bastante porque esse fazer que é mais coletivo, mais colaborativo, menos hierarquizado, parece ter uma influência, uma interferência nos processos que acontecem no filme e o que acontece depois dos filmes. Ao mesmo tempo, a gente conversava sobre como pode ser uma questão também no sentido que existem vários sujeitos históricos que nunca puderam estar nesse lugar da autoria. E aí no momento que esses sujeitos podem finalmente começar a ocupar esse lugar da autoria, existe também uma vontade destruir a autoria, entende?

LA: Nunca tinha percebido, mas é bem real.

AD: Tudo isso acontece quando esses sujeitos começam a se empoderar. Aí isso me preocupa, no sentido de ser uma espécie de sabotagem. Porque quem fala do fim da autoria muitas vezes são pessoas que puderam estar nesse lugar, em primeiro lugar. Então acho que é uma ressalva importante, algo a se pensar, o privilégio de você poder se desfazer da autoria. Mas, essa ressalva sendo feita, acho que sim, essa questão dos processos coletivos e colaborativos é algo muito importante pra gente no momento. Não focar no indivíduo apensar, não individualizar, partindo também pra uma lógica neoliberal… às vezes isso acaba acontecendo até por uma necessidade mercadológica. Mas pra riqueza dos processos, essa questão estética e política, essa pluralidade é massa.

PG: Disse tudo.

LA: Total. Como é o nome da revista mesmo?

AD: Verberenas. É o sobrenome artístico da primeira realizadora brasileira nos registros, Cléo de Verberena. Foi daí que veio essa vontade de fazer um projeto que fosse feito só por mulheres e olhasse pra esse cinema feito por sujeitos históricos que não tiveram lugar de destaque. E também que fossem textos mais limpos, que a gente pudesse falar das nossas próprias perspectivas sem precisar de um juízo de valor de crítica de cinema sobre como X é bom, Y não é bom.

Esse texto faz parte de um projeto de entrevistas realizadas no 51º Festival de Cinema de Brasília com alguns dos diretores e atores da Mostra Competitiva. Busca-se a partir dessas entrevistas evidenciar questões e levantar tópicos de discussão sobre diversos pontos que compõem o atual cinema brasileiro a partir da experiência pessoal dos entrevistados.

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