Tempo de atuação, uma entrevista com Gessyca Geyza

 

Perguntas: Larissa Lisboa e Wanderlândia Melo. Respostas: Gessyca Geyza. Revisão: Larissa Lisboa. Imagens: Weber Salles (ilustrações) e Nereu Ventura (foto).

Quais pessoas da atuação você conhece do cotidiano? E quais você conhece dos palcos, dos filmes, da tela do seu celular? Com a pandemia você pode acessar mais ou menos pessoas das artes alagoanas ou residentes em Alagoas? São questões que se mantem ou que foram transformadas pelas mudanças necessárias para o enfrentamento da COVID 19.

Esta entrevista surge da renovação do desejo de dialogar, conhecer e reconhecer pessoas das artes alagoanas ou residentes em Alagoas que trabalham com o audiovisual. Entre elas, Gessyca Geyza, atriz, preparadora de elenco, diretora e mascareira, que topou compartilhar um pouco sobre a sua trajetória e seus trabalhos.

Esta entrevista foi construída com a colaboração de Gessyca e de Wanderlândia Melo, que também é uma das pessoas da atuação em Alagoas, e que foi uma das pessoas entrevistadas na série Lugares de Atuação.

Larissa Lisboa: Como surgiu o Coletivo Heteaçã?

Surgiu em 2013 a partir da vontade de fazer teatro em espaços que fossem alternativos aos edifícios teatrais. Na época eu e Wanderlândia Melo estávamos como graduandas do curso de Teatro Licenciatura da Ufal. Conversávamos muito sobre uma frase que costumávamos ouvir com frequência “o povo não gosta de teatro, não gosta de arte” e pensávamos: Como dizer que o povo não gosta de arte, se a gente não consegue nem chegar no povo? Ficávamos refletindo sobre o movimento teatral da cidade e sobre como percebíamos um certo círculo vicioso, pelo menos entre as produções que acompanhávamos naquele período. Nos perguntávamos sobre qual público queríamos alcançar e onde poderíamos encontrar esse público, que não estava necessariamente estudando ou produzindo arte. Foi então que levamos para a rua os trabalhos “Eu estranho” e “o que te sufoca?”. Em 2014, os atores Felipe Espíndola e Joesile Cordeiro juntaram-se a nós colocando na roda mais uma produção para a rua, o espetáculo “Mamulengo do Ambrósio” que foi remontado em 2016, circulando por quatro estados do nordeste por meio de financiamento coletivo.

LL: Quando teve início a oficina de criação de máscaras teatrais? E como foi o processo para realizar, e a realização online, durante a pandemia?

Na minha prática artística a confecção de máscaras foi se impondo pela necessidade de ter máscaras para trabalhar como atriz. Fui aprendendo a fazer, para ter como aprender a usar. A primeira vez que me propus a ensinar a fazer máscaras foi no processo do espetáculo “Entre Rio e Mar Há Lagoanas”, eu queria muito que as atrizes dessem forma às máscaras que usariam, então fui conduzindo alguns caminhos nesse sentido. Depois, fui convidada pela Universidade Federal de Alagoas para assumir durante um semestre a disciplina “Pedagogia das máscaras cênicas” do Curso de Teatro da UFAL. Experiência presencial que demarca o que entendo como o primeiro curso de confecção e jogo de máscaras teatrais que ministrei.

Agora, a primeira oficina online nasceu por meio de um convite muito provocativo feito pela Cia de Artes Farol. A princípio eu não tinha pretensão de investigar metodologias possíveis para a criação de máscaras teatrais no formato online, imaginava que esse momento poderia chegar, já que via o mundo nesse movimento das propostas online, mas não tinha pressa para isso. Sentia que a experiência desse fazer só se daria de forma satisfatória diante da presença não virtual. Do olhar de perto, do tocar o rosto do outro e perceber a sua estrutura, do mexer na argila de cada participante e apontar caminhos. Mas, me surpreendi! Nos surpreeendemos, nos superamos, foi desafiador,  incrível e trouxe muita realização. Isso nos levou (Coletivo Hetéaçã) a abrir uma nova turma, na qual tivemos inscrições de vários estados como AL, BA, PE e SP.

LL: Como era a sua relação com a produção audiovisual antes da pandemia?

Restrita ao que poderia surgir como convite ou oportunidade de participação em projetos idealizados por outras pessoas. Foi durante os primeiros meses da pandemia que, em parceria com Nereu Ventura (integrante do Identidade Alagoana), me coloquei no exercício de criação misturando audiovisual e máscaras teatrais. Um exercício que fez nascer o projeto “Tempo de Máscaras”, despertando em mim reflexões e mais vontades criativas.

LL: Como foi o processo de realização de Tempo de Máscaras como projeto fotográfico e audiovisual?

Começamos de forma muito despretensiosa. Quando digo que começamos, me refiro a mim e Nereu Ventura, um companheiro que tenho a alegria de dividir um lar e muitos sonhos. Estávamos em isolamento social, muito tempo em casa, muito silêncio pelas ruas e muita vontade de inventar coisas. Nereu tinha uma câmera na mão e a experiência com a produção audiovisual consequente do seu trabalho de videomaker no Identidade Alagoana, eu tinha uma gaveta com máscaras teatrais e o tédio de não estar movendo meu corpo criativamente. Juntamos tudo e fomos brincar um pouco com o que tínhamos. Nos primeiros vídeos utilizei uma máscara neutra, a pretensão era apenas me relacionar com o espaço, olhar a rua, ouvir os silêncios, sentir como era estar sentada em um lugar de tantos encontros como uma calçada, mas não ter ninguém para conversar. Essa relação com o instante nos levou a compreender qual seria a narrativa do projeto. O primeiro vídeo ganhou o nome de “Respire” e os demais seguiram com a proposta de relação com o contexto pandêmico em que estávamos inserides. 

Wanderlândia Melo: Existe alguma diferença da máscara teatral sendo utilizada no teatro e no audiovisual?

No meu entender, como a máscara é um elemento extracotidiano e naturalmente acaba conduzindo o corpo para esse mesmo contexto de dilatação, de projeção de voz, de ampliação das ações, a depender da proposta que se desenha para a utilização dela no audiovisual, é possível que algumas escolhas precisem ser redimensionadas, porque a câmera também amplia. No entanto, percebo que existem princípios que fazem parte da linguagem da máscara que na minha percepção não podem ser dispensados, seja no espaço cênico teatral ou não. Por exemplo, para que a máscara viva é necessário que o corpo se movimente em conexão com o que ela sugere em suas linhas de expressão, formas e volumes. Por mais que a movimentação venha a ser minimalista, é necessário que exista. Uma máscara teatral sobre o rosto de alguém é só uma máscara apoiada sobre algo se esse corpo estiver parado. Até a respiração da máscara precisa ganhar corpo, se não a gente não vê que a máscara está respirando. Não estou falando de todas as máscaras em todos os contextos, falo da máscara teatral que sugere uma figura (personagem), até porque as máscaras cênicas e o audiovisual podem se encontrar de outras formas, com propostas diversas e infinitas, inclusive exclusivamente plásticas. No caso do projeto “Tempo de Máscaras”, queríamos experimentar como seria a relação das figuras (personagens) com esse outro espaço que é delimitado pelos enquadramentos. Me senti completamente perdida nos primeiros vídeos, fazia um perfil e ganhava lateralidade demais revelando muito do meu rosto, olhava para baixo e perdia a máscara por aparecer mais a minha cabeça do que a máscara olhando para baixo… precisei ir recalculando o tamanho, o direcionamento e o ritmo das minhas ações, na câmera segundos pareciam ser minutos se eu deixasse a máscara parada. Sempre achei o olhar de fora indispensável no trabalho com a máscara teatral e o projeto só reafirmou isso pra mim. Os direcionamentos de Nereu “levanta mais o rosto, faz mais rápido, olha mais na diagonal”  foram indispensáveis, e diferente de estar no palco, tive a vantagem de poder me assistir e me dizer: não funcionou, vai lá fazer de novo. 

WM: Como se deu a construção do roteiro e fotografia na construção conjunta de Tempo de Máscaras com o Identidade Alagoana? 

No primeiro vídeo, não elaboramos roteiro, tínhamos uma ideia do que queríamos e fomos brincando com os espaços. Escolhi começar pela máscara neutra, uma máscara que se propõe ao exercício do encontro, do agora, da percepção e da relação com tudo o que pode vir a atravessá-la. Vesti a máscara, fui me relacionar com os espaços e naturalmente os espaços também foram nos encaminhando.  

Fomos nos empolgando e começamos a imaginar outras situações que poderiam ser abordadas, conforme as ideias chegavam, íamos roteirizando, escolhendo os espaços e as máscaras. Cada núcleo/tema para os vídeos se relacionava com o que estávamos sentindo e percebendo durante o período de isolamento, fazer exercícios em casa, aulas online, sensação de vertigem com o número de mortes, reflexão sobre quem não pôde parar de trabalhar, enfim.

Cada fotografia buscou revelar o que ao nosso ver se configurava como uma chave do que seria abordado no vídeo. 

LL: Como foi o processo de realização dos curtas Agridoce (dir. Nereu Ventura e Gessyca Geyza) e Subsidência (dir. Beatriz Vilela e Marcus José)?

Foram dois processos bem diferentes. Eu acompanhei Agridoce desde a primeira ideia de roteiro apresentada por Nereu e fui participando ativamente, contribuindo e acompanhando as transformações e adaptações que foram surgindo no decorrer da criação. Estávamos sem pressa, nos permitindo experimentar com o que tínhamos e do jeito que podíamos. Os espaços que fui ocupando, para além da atuação, foram chegando de uma forma tão natural para mim, que eu nem dei muita bola, eu estava querendo focar no que precisaria fazer como atriz, mas como sou enxerida, fui dando pitaco e depois fui percebendo junto a Nereu que, na  prática, acabamos dirigindo o trabalho juntes. Para mim foi uma experiência que se aproximou muito do caráter artesanal que percebo no fazer teatral, quase um: “só tem a gente, bora fazer? Bora!” Cada um acrescenta um pouco, se intromete um pouco e no final um ajuda o outro a chegar em um lugar comum. 

Já em Subsidência, me percebi em um outro lugar. Queria entregar o que a direção precisava, não atravessei outras funções como em Agridoce, estava na escuta do que havia sido idealizado por Beatriz e Marcus, me colocando como criadora dentro da minha função de atriz.

Quando recebi o convite aceitei o mais rápido que pude, porque realmente fiquei muito interessada em contribuir com a materialização de um filme que se propunha a lançar uma lupa sobre uma situação de profunda violência, que vinha sendo violentamente silenciada.  Quando recebi o roteiro entendi o que eu precisaria entregar, porque entendi também que eu funcionaria como um veículo, uma ponte de acesso a grande protagonista da história, que não era a história individual de uma personagem, era a história de um corpo coletivo, de um território completamente devastado, de bairros inteiros afundando, de histórias sendo roubadas. Foi tudo muito rápido, porque precisava ser. Como a Beatriz falou em um dos nossos encontros, se tratava de um “filme de urgência”. E foi. 

LL: Como foi a preparação para atuação em Agridoce e em Subsidência?

Eu diria que a natureza desses dois trabalhos não nos exigiu um tempo específico destinado à preparação de elenco.

De um lado Agridoce, que foi feito dentro de um apartamento, no auge da pandemia, assumindo o seu lugar de experimentação, se propondo a materializar um roteiro simples banhado muito mais por sensações do instante, que pela ideia de construção de uma personagem. Do outro lado Subsidência, um filme que além de ter exigido urgência para acontecer, me conduzia mais para a necessidade de um corpo presente e poroso aos espaços que eu iria atravessar e me relacionar, do que necessariamente a um corpo preparado, sabendo com o que teria que lidar. 

LL: Como está a sua relação com a produção audiovisual durante a pandemia?

Quando parei pra pensar um pouco sobre essa pergunta, me dei conta de que foi dentro do processo pandêmico que me aproximei e consequentemente acabei me envolvendo mais em produções audiovisuais. É interessante pra mim perceber também o quanto a necessidade de criar dentro do contexto da pandemia foi exigindo o estreitamento entre teatro e audiovisual e o quanto isso encaminhou novos projetos como “Tempo de Máscaras”, o curta Agridoce, o projeto cênico audiovisual “As Meninas de Lá”, além de outras participações em projetos que também surgiram nessa relação teatro-audiovisual, como por exemplo o episódio 08 da websérie “Sobreviver é a salvação pois parece que viver não existe” do grupo clariCENA. 

É também no contexto pandêmico que os curtas Subsidência, Lapso e O primo holandês chegam na minha trajetória. 

Acredito que a pandemia e as urgências decorrentes dela, fizeram com que as linguagens artísticas se aproximassem um pouco. De alguma forma todo mundo precisou criar no campo do virtual e isso fez com que nos olhássemos de uma outra maneira também. Além disso, a Lei Aldir Blanc, com certeza foi uma grande disparadora, mais gente idealizando, mais gente produzindo, mais gente na cena. 

LL: Como foi ministrar o Laboratório da Cena: corpo e imagem junto a Joelma Ferreira no “Webinário: Cultura e Cinema”?

Para mim foi uma oportunidade de aprendizagem mútua. Construir um caminho metodológico com uma artista que tem uma trajetória tão bonita na dança, como Joelma Ferreira, fez todo o diferencial. Quando as nossas experiências se cruzaram me dei conta de aspectos ligados à relação entre corpo e imagem que a minha trajetória como atriz no audiovisual ainda não tinha me permitido vivenciar. Quando  alguns princípios das linguagens da dança, do teatro, do teatro com máscara e do cinema se encontraram, pensei: caramba! Olha quantas possibilidades criativas nós temos. Entre tantas outras percepções, acompanhar as elaborações de cada participante, ampliou o meu olhar sobre o difícil assunto: criar em meio a pandemia. Sobretudo, em um momento em que fomos quase que forçadas a estarmos criando por trás ou diante das câmeras.  

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Atriz, preparadora de elenco, diretora e mascareira. Natural de Belo Jardim – PE, graduou-se em Teatro Licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas com mobilidade acadêmica pela Universidade Federal da Bahia. Reside em Maceió-AL, onde tornou-se cofundadora do coletivo de Teatro Heteaçã e integra o Grupo Gestor do Festival de Artes Cênicas de Alagoas (Festal).

Pesquisadora da linguagem da máscara teatral, da mímesis corpórea e do treinamento energético na preparação de atrizes e atores.

Atriz nos filmes Subsidência (2020), Agridoce (2021),  Lapso e O primo Holandês, os dois últimos a serem lançados. 

Esteve como coordenação geral e atriz na obra cênica audiovisual “As Meninas de Lá” (2021), assumiu atuação e direção nos espetáculos teatrais “Entre Rio e Mar Há Lagoanas” (2017 a 2019) e “Incelença” (2017 a 2019). 

Em 2020, idealizou o projeto fotográfico e audiovisual “Tempo de Máscaras” onde, em parceria com o grupo cultural Identidade Alagoana, investigou a relação entre máscara teatral e audiovisual diante do cotidiano em tempos de pandemia. 

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