Texto: Sobre transicionar o olhar

O meu processo de autoconhecimento está conectado com a minha relação com o audiovisual, em específico aqui nesse texto com filmes, uma vez que é um filme ou formas de fazer filmes que me provocaram a refletir e mergulhar nesta escrita. Autoconhecimento de uma mulher cis branca, que em contato com filmes e séries queers, se permitiu e permite transicionar o seu olhar.

Como espectadora de uma obra audiovisual queer, protagonizada por personagens LGBTQIAP+, e em sua maioria ainda proveniente de autorias cisgêneras, incansavelmente me vi e me vejo como alguém que se conecta, identifica, encanta pelos personagens, mas que freia o ímpeto de falar sobre obras queer por efetivamente não ser desta comunidade.

Antes de libertar-me do preconceito e me permitir assistir a Rupaul’s Drag Race em 2016, facilmente seria uma pessoa que se autodeclararia não preconceituosa, e que não enxergava os seus próprios preconceitos. Estar em contato com obras audiovisuais de autoria e/ou com protagonismo de pessoas LGBTQIAP+ é receber estímulos para refletir sobre liberdade, autoconhecimento, arte, vulnerabilidade, entre tantas outras coisas que o patriarcado e a cisgeneridade nem hesitam em silenciar e violentar.

O cinema é um espaço de tensionamento, estar aberto a dialogar sobre a arte, passa pela forma como nos tensionamos, lidamos com as tensões sociais e mais ainda sobre como encaramos quem somos ou a jornada de nos permitirmos ser quem somos.

Não me lembro qual foi a primeira obra audiovisual com personagem LGBTQIAP+ que me tensionou. Mas me lembro de dois momentos nos quais me vieram o desejo de escrever e eu silenciei, por insegurança e por medo de errar, o primeiro foi em janeiro de 2017 quando assisti a Lembro Mais dos Corvos (dir. Gustavo Vinagre) na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, e o segundo foi em janeiro de 2018 quando assisti a Meu Corpo é Político (dir. Alice Riff) no Sesc Centro no evento de lançamento do filme, promovido pelo Departamento Nacional do Sesc. Foi através destes filmes que conheci a atriz, roteirista e diretora Julia Katherine, e a compositora e multiartista Linn da Quebrada, respectivamente.

Diria também que foi ignorância e descrença de que o meu posicionamento seria importante independente de ser reconhecido assim. Há também uma limitação que absorvi e venho aprendendo a desapegar, de que a minha escrita só deveria existir quando couber num formato. Estar aqui escrevendo este texto é justamente parte do meu processo de reconhecer e aceitar que sou autora de textos críticos, que tem valor (principalmente pra mim) e podem ocupar espaços, mesmo que não sejam feitos na forma que se reconhece como crítica de cinema.

Desdobramento também do meu processo de autoconhecimento, que me faz abordar o meu encontro com os livros da pesquisadora de sentimentos Brené Brown, incansavelmente. Pois mudou a minha relação com a vergonha, o silenciar, o medo, a responsabilidade, a vulnerabilidade, só para listar alguns porque a lista não termina aqui. Ressignifiquei os meus conceitos e a compreensão do quanto é importante seguir ressignificando, tensionando, aprendendo, sentindo, conectando…

Munida destas e outras várias bagagens, assisti a Germino Pétalas no Asfalto (dir. Coraci Ruiz e Julio Matos), e foram os tensionamentos que este filme me provocou, junto a reflexão sobre continuar silenciando a minha escrita, que busco desaguar aqui em alguma medida.

Quando assisto um filme na maioria das vezes reajo principalmente a montagem, aos personagens e a narrativa construída. Em específico no caso de Germino a minha reação e relação contou com uma vivência anterior como referência e influência, por ter assistido ao filme Limiar (dir. Coraci Ruiz) em 2020.

Como diretora e montadora que aprecia a dilatação do tempo nas cenas, sinto-me sempre tensionada quando identifico que desejava ver mais de algumas cenas, ou quando me desconecto do filme entre a justaposição delas, ou quando sinto que foram justapostas cenas que me provocaram emoções dissonantes a ponto de atrapalhar a minha fruição com o filme. A minha percepção como montadora provocou vários tensionamentos no meu desfrutar de Germino, o que desdobra também em tensionamentos relacionados a narrativa construída.

Em contraposição em Germino me vi mais uma vez encantada com personagens que se reconheceram em suas vulnerabilidades e autenticidades, que provocaram a minha curiosidade, renovaram a minha percepção sobre a relação com corpos, com ser quem se é, com estar em transição, sobre não ter que caber e findar processo.

Fui provocada a receber o filme para além da binaridade, da cisgeneridade, do que se espera de uma obra audiovisual, e sozinha confesso que fracassei em aceitar esta provocação, o que me fez mais uma vez me convencer a não escrever sobre um filme queer. Temi errar ao me forçar a escrever sobre Germino como crítica de cinema, principalmente porque não me senti capaz de transformar a minha relação com o filme para algum outro lugar, fiquei presa comparando-o apenas a partir dos meus parâmetros, e em conflito com o afeto que carrego por Coraci e Noah desde que os conheci por Limiar

É um desafio constante enxergar um filme ou o mundo sem reduzir a forma que podemos olhar e nos expressar, e a questão é também sobre como encaramos o que nos desafia? Para onde direcionamos a nossa coragem e curiosidade? O quanto nos esforçamos para fugir da tensão?

Ainda fujo da tensão e responsabilidade de criticar os filmes queers, ou os filmes de Coraci, mas desta vez escolhi não fugir por completo do desejo de escrever, e da necessidade de me conectar.

Ao ler a frase: “A cisgeneridade é um compromisso com a mentira” HB.CARAO (não sei se eu compreendi a grafia, caso não agradeço a correção), você se permite considerar a relação entre cisgeneridade e mentira?

Abracei a coragem para criar este texto apenas após assistir ao debate sobre Germino Pétalas no Asfalto realizado na programação da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, inspirada em uma das falas de uma das personagens do filme, Helena Agalenéa. “…se pensar o traviarcado incomoda o corpo cisgênero, acho que é o corpo cisgênero que tem que repensar porque que esse triunfo não te contempla”

Tenho aprendido a ver a potência dos tensionamentos, de não me ausentar ou isentar da responsabilidade de participar de uma conversa que pode ser vista como uma conversa difícil. E não me isentar, só é possível se eu assumir a minha vulnerabilidade, se eu usar da minha coragem para afirmar que pensar o traviarcado me incomoda, e abraçar esse incômodo com empatia, para entender que se eu desejo seguir em diálogo com a comunidade LGBTQIAP+, preciso estar disposta a repensar e a questionar a ausência de consciência crítica em mim e nos espaços. Há espaço em mim para abordar o incomodo, especialmente incômodos como este que me estimulam a transicionar as minhas percepções. 

Preciso dizer também que já faz um tempo que eu sinto a ausência de pessoas trans, e que sinto falta de ações, não apenas falar sobre a necessidade de criar oportunidades. Dar oportunidades aqueles que são privades, passa por enxergar além da meritocracia, por revolucionar a nossa percepção “profissional” de que as pessoas só podem ocupar os espaços se alcançarem os parâmetros defasados do mercado.

A inspiração também veio a partir de uma das falas de uma das pessoas responsáveis pelo desenho de som e mixagem de Germino, também assistente de montagem, Augusta Gui: “Todo mundo deveria transicionar pelo menos o olhar”, que em específico também inspirou o título deste texto.  O debate completo sobre o filme está disponível no Youtube da Universo Produção, Germino só ficou disponível por 24 horas, mas você pode seguir @laboratoriociscoaudiovisual para saber quando ele será disponibilizado novamente.

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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