Vivendo o cinema com Cássio Kelm

Criadora e entrevistadora da série “Vivendo o cinema”: Rastricinha Dorneles. Revisão: Larissa Lisboa. Imagens: Cássio Kelm.

Janeiro é o mês da visibilidade trans, datas como essas são importantes para alertar sobre a diversidade do mundo, nessa realidade pós industrial foi construído o mito dos iguais, todo homem, toda mulher, neste código binário e patriarcal, séculos de negligência e destruição foram implantados na nossa vida. Por escolha da sociedade certas pessoas são perseguidas.

Eu sou Rastricinha, travesti e cineasta, fui convidada a contribuir na escrita desse lindo projeto que é o Alagoar. Essa é a primeira entrevista com cineastas que fazem parte da minha rede de afeto, pessoas que admiro por seu trabalho, mas também por sua generosidade de compartilhar sua vivência e assim mostrar os caminhos do fazer cinema. Essa série de entrevistas eu nomeei de “Vivendo o cinema”.

Com vocês, Cássio Kelm:

Rastricinha Dorneles: Cássio, quem é você, onde você nasceu e onde você vive hoje?

Sou Cássio Kelm, tenho 37 anos. Nasci no interior do Paraná, em Ponta Grossa, em um bairro chamado Olarias. Ele se chama assim porque antigamente tinha várias fábricas de tijolos, era um bairro operário. Trago isso comigo. Trabalho muito. Sou filho de Alceu Jorge Nunes Soares, contador, e Lili Kelm Soares, professora do Estado. Ambos já partiram. Sou também irmão de Ana Kelm, a pessoa mais importante de minha vida. Uma irmã carinhosa e com múltiplos talentos desde música, programação e até engenharia. Sou tutor de duas gatinhas que amo: Jujuba e Princesa.

Atualmente moro em São Paulo, na Zona Leste, e pela primeira vez em muitos anos busco me estabilizar. Saí de Ponta Grossa após me formar em Jornalismo, com vinte e um anos, fui para Curitiba, depois morei três anos em Cuba, depois morei em Matinhos, no litoral do Paraná, depois Florianópolis e agora São Paulo. Tenho a felicidade de ter gravado inúmeros filmes em todas essas cidades. Tenho quinze curtas e um longa em minha jornada.

RD: O cinema era presente na sua infância?

CK: Sim. Principalmente pelas locadoras de VHS. Havia uma a três quadras da minha casa e meu pai sempre me levava lá. Se você alugasse sete filmes por sete dias ganhava três fitas, logo eu devorava dez filmes em uma semana. Via muitos desenhos da Disney e muitos filmes antigos. Meu pai me mostrou O Exorcista (quase morri de medo), O Iluminado, Doutor Zhivago, Embalos de Sábado à Noite, filmes do Roberto Carlos, Rebelde sem Causa, E O Vento Levou, etc. Eu via muita televisão também. Cresci nos anos 90, com acesso somente à TV aberta. Então vi muita Sessão da Tarde e muito Mazzaroppi e filmes da Vera Cruz na TV Cultura. Também adorava o Corujão que assistia sexta-feira, quando meus pais me deixavam dormir mais tarde.

RD: Quando você decidiu fazer filmes?

CK: Eu entrei em um curso de cinema gratuito da Cinemateca de Curitiba logo depois que me mudei para lá. A princípio pensei que saber de cinema me ajudaria em minha carreira como jornalista, mas acabei me apaixonando. Além disso, em uma aula de produção me falaram dos cachês por semana dos profissionais do set. E aquilo me pareceu uma fortuna, porque o piso salarial mensal de jornalismo na época era o que podia se ganhar em uma semana no cinema. Aí fiquei sabendo que precisavam de profissionais para som direto na cidade. Eu já gostava de microfones, gravações, porque tinha tido uma banda punk na adolescência e fizemos gravações caseiras, então fui me metendo por aí.

Trabalhava muito de graça em curtas aos fins de semana para fazer portfólio enquanto garantia meu sustento, também com som, trabalhando fixo em uma produtora de videoaulas. Enquanto isso observava os diretores no set e no fundo pensava “cara… eu posso fazer isso”. Mas então bateu as saudades de escrever e eu consegui trabalhar como roteirista em outra produtora de videoaulas enquanto escrevia meus projetos paralelamente.

Aprovei meu primeiro curta em um edital para iniciantes. Ficou bonito, gosto até hoje. Chama-se Retrato Invisível e fui diretor e roteirista. Entrou em vários festivais e ganhou prêmios até no Chile. Aí eu me animei. Voltei ainda uma última vez para o jornalismo como assessor de imprensa de um sindicato. Isso foi importante porque eu ganhava melhor e trabalhava meio período, o que me permitiu montar minha empresa que tenho até hoje, a Haver Filmes. A princípio eu tinha um sócio, o Aristeu Araújo, agora estou só eu. Desde então, produzo meus filmes. Não fiquei rico como imaginei. Nunca nem ganhei aqueles salários que vi naquela aula de produção. Mas vivo ok. Me mudei para São Paulo porque quero trabalhar em projetos maiores. Logo, logo chego lá.

RD: A codireção de um reality show chegou a você como e como você está após essa vivência?

CK: Importante ressaltar que essa proposta chegou até mim graças à APTA – Associação dos Profissionais Trans do Audiovisual – pois foi lá que vi o anúncio. Foi uma experiência maravilhosa. Nunca imaginei que eu iria me satisfazer tanto em um projeto comercial, sendo que minha experiência é toda em projetos autorais. A equipe tinha muitas pessoas trans e isso foi mágico. Eu co-dirigi com Luz Barbosa que é outra pessoa transmasculina e foi incrível! Ele é um gênio super generoso e espero em breve trabalhar com ele de novo. No momento estamos dirigindo a edição e é muito lindo ver nosso trabalho tomando forma. O Born to Fashion é a maior audiência da América Latina do Canal E! Estou louco pra saber se a América Latina está pronta para o que vem aí. Esse evento é um fato histórico, pois desconheço outras pessoas trans que tenham dirigido séries comerciais no Brasil.

RD: Quais foram as conquistas mais surpreendentes para sua carreira?

CK: Meus filmes estiveram em mais de 80 festivais e todos os lugares por onde eles passaram são maravilhosos. Mas em 2017 recebi o prêmio do júri pelo meu documentário “Soy”, no IDFA. O IDFA é um festival na Holanda e é o maior festival de documentários do mundo. Havia uma plateia lotada, com vários documentaristas que admiro. As palavras do júri sobre meu filme foram lindas e subir no palco e receber o troféu com documentaristas de todo o mundo me aplaudindo foi realmente mágico. Em 2021 voltei ao mesmo festival, com outro filme. Neste ano vou para o Festival de Berlim pois fui selecionado para o Berlinale Talents. Acredito que será emocionante também. Ah! E teve uma vez, em 2014, em que fui fazer um pitch na China! Foi uma loucura… eu tenho muita história para contar, sou muito inquieto e por isso vivo inventando coisas.

Estou ressaltando esses eventos porque sei que são lugares onde poucas pessoas chegam e muitas pessoas almejam. É muito legal. Mas não é tudo. Todos os cinemas são importantes. Ao longo de 2023 atuei como arte educador na Vila Cisper, na Zona Leste de São Paulo. Tive inúmeros momentos emocionantes com meus orientandos. A projeção final dos trabalhos foi incrível. O público eram os familiares e amigos e cada aluno tinha uma história emocionante. Havia um aluno neurodivergente que fez um trabalho tão maravilhoso que levou o pai às lágrimas na exibição. Havia um aluno trans de 14 anos, que pela primeira vez assinava um trabalho com seu nome social e estava exibindo para a avó. Esses momentos, essas pessoas importam, e muito!

RD: Qual é o maior desafio ao seu desenvolvimento profissional?

CK: A instabilidade. Estar sempre tendo que “segurar as pontas” e viver com ansiedade financeira. Isso me tira horas de trabalho criativo e horas de sono, consequentemente afeta minha saúde mental. Observo que isso é uma condição de quem faz cinema em geral, mas penso que talvez seja mais difícil por eu ser trans. Mesmo antes de transicionar, eu já era um corpo dissidente. Fiz parte de minha carreira enquanto mulher cis e quando comecei não havia os espaços e as políticas afirmativas de hoje. Ajudei a construir esses espaços feministas e minha maior decepção na vida é ver espaços, editais e eventos que abrem espaço para “mulheres cis e mulheres trans” e excluem os transmasculinos das políticas afirmativas. As pessoas pensam que o mundo se divide entre Clube do Bolinha e Clube da Luluzinha e que ao transicionar os homens estão nos esperando de braços abertos para nos acolher e dividir seus privilégios. Mas a realidade é muito distante disso. Isso me deixa muito amargurado. Só quero observar que esse comentário não tem a ver com uma disputa com mulheres trans e travestis. A culpa não é delas de existir essa divisão. Essa crítica é direcionada para as pessoas cis que organizam esses espaços, eventos e editais.

RD: O que te faz fazer filmes hoje?

CK: Tem coisas que quero que os outros saibam e tem coisas que quero que os outros sintam. Um filme te permite saber e sentir. Essa é a forma como me comunico, me expresso. Não sei ser de outra forma. Gosto do processo, de me aprofundar em um tema por longos períodos. Cinema é algo que eu sinto, eu entendo. Obviamente que não sei tudo e aprendo mais a cada dia, mas acho que o cinema vem de encontro com minha sensibilidade, ele flui em mim.

RD: Planos para o futuro?

CK: Conseguir financiamento para meu primeiro longa de ficção Valsa de Luan, que estou escrevendo há 6 anos com meu parceiro Lui Castanho. Quero em breve gravar um curta em São Paulo, para tentar fazer meu nome por aqui. A produção ainda é muito focada no eixo Rio-SP e os trabalhos em audiovisual se dão por conexões. Demorei um pouco para entender a dimensão disso. Sonho em dirigir séries de ficção, mas adoro documentário também. Quero trabalhar muito, experimentar projetos maiores, conquistar mais parceiros de trabalho, poder me desenvolver em minhas aptidões como diretor e roteirista. 

Em breve chego aos 40 anos, e quando chegar lá quero planejar adotar um filho/a/e.

RD: Onde encontramos suas produções?

CK: No meu site https://www.cassiokelm.com/ tem a aba “filmografia”. Lá tem a página de cada filme. Os que estão disponíveis tem um link “assista aqui”. Alguns estão na internet livres, outros pagos, outros não estão disponíveis. Meu curta-metragem Lui em breve vai estar no Canal Brasil. Meu longa Mães do Derick ainda estou tentando financiamento para lançar nos cinemas, então ainda não posso disponibilizar na internet.

RD: Qual o filme que você não consegue esquecer?

CK: Meu? No momento, o último, Perto de Você, que gravei com meu pai. Gravei o filme durante a pandemia, em 2020, lancei o filme em 2021 e meu pai faleceu em 2022. Sinto saudades dele e me sinto muito feliz de poder ter gravado o jeitinho que ele era em um filme.

RD: Chegou sua hora: diga algo que você precisa por para fora e não teve espaço para falar.

CK: Quero deixar um conselho: trabalhar com audiovisual me satisfaz muito, mas exige bastante. Quero que os iniciantes desconfiem de cursos que dizem que vão te preparar rapidamente para escrever um filme ou uma série. Não é simples assim. Demora muito, exige muita preparação e muito tempo. Falo de anos, décadas até… e estamos sempre à mercê das mudanças políticas.

Na terceira pergunta respondi como foi que decidi fazer filmes. Contei uma versão da história. Há também outra: com 23 anos tive crises de pânico e comecei a fazer psicanálise. Nesse processo percebi que precisava me dedicar ao cinema. Essa motivação me salvou. Com 25 anos fiz meu primeiro curta e a partir daí todo meu tempo e dinheiro dedicava a fazer projetos, cursos, ir em eventos, etc. Me apaixonei e vivi uma relação romântica com o cinema até há pouco tempo. Aos 37, isso mudou. Sou mais ponderado e não deixo que o cinema leve tudo de mim. Quero uma relação recíproca e hoje prezo pela vida que está fora do cinema também. A paixão, por fim, se tornou amor.

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