A Vigilante lucidez da crítica

Texto: Thame Ferreira e Janderson Felipe. Revisão: Mirante Cineclube e Larissa Lisboa. Foto: Vanessa Mota


A arte exige da crítica que ela lhe sirva e não que ela se sirva da arte. É porque a arte tem uma necessidade vital da crítica. (Jean Douchet)

Há três anos, ocorreu um encontro movido pelo desejo de fomentar a crítica de cinema em Alagoas: o primeiro Laboratório de Crítica Cinematográfica, na época produzido pelo Sesc Alagoas. André Dib, instrutor dessa edição, provocou nos alunos a criação de um cineclube, como forma de articular o cinema como ferramenta de intervenção social e democratização dos espaços de acesso à obras audiovisuais. Assim nasceu o Mirante Cineclube.
Terminamos a quarta edição do Laboratório na 10ª Mostra Sururu, lugar do gérmen desse cineclube que, desde então, está envolvido com essa atividade, junto dos instrutores que sucederam Dib, como Fernando Mendonça e Camila Vieira. Ao reunir pessoas durante a Mostra Sururu de cinema alagoano em torno da elaboração e debate de críticas, podemos alegar que essas iniciativas vêm atraindo as obras para fora de si. Como bem falou André Bazin, a função da crítica é prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que leem, o impacto da obra de arte.
E o que isso quer dizer? Significa que a crítica dá sobrevida para os filmes, não como o fim ou morte da obra, mas como perpetuação e continuidade. Como o primitivo mecanismo dos moinhos, sendo a crítica a azenha pela qual as águas do cinema passam, tendo a força da obra, sua energia cinética, transformada em eletricidade! Por isso é importante para o cinema alagoano pensar esse lugar da preservação da memória e propulsão da energia artística da obra, principalmente ao se perceber Alagoas ainda enquanto cenário periférico dentro do cinema brasileiro.
E um dos movimentos fundamentais para formação da atitude crítica é nunca esquecer da história. Começando pelo crítico Elinaldo Barros, passando pelos jornalistas Imanoel Caldas e Gildo Marçal, que se dedicavam a escrever sobre os filmes nos principais jornais alagoanos. Estendemos o recente histórico da crítica feita em Alagoas aqueles que também contribuíram com essa jornada dentro da Mostra Sururu – Cid Nader e Filmologia, movimentos externos a produção da Sururu e que foram descontínuos, mas importantes para a construção da memória de uma mostra que vai para a sua décima edição. Em 2019, tivemos mais uma atividade do Sesc Alagoas, com o Curso de Crítica Cinematográfica tendo Felipe Benício como instrutor, de onde saiu alguns alunos para o laboratório de crítica desse ano. Por isso, é fundamental o interesse desse evento em dar continuidade a essa formação que movimenta um ciclo. O pensar crítico e curatorial sobre a mostra se fortalece a partir dessas iniciativas e sua perpetuação.
A atitude crítica serve para nos conectar com todas as dimensões da objetividade. Segundo Maurice Blanchot, a crítica é movimento que dissolve a solenidade e o caráter abrupto e fechado das obras, entregando-as à reflexão da vida que, como sabemos, felizmente, não respeita nada.
A prática crítica resgata um olhar sensível e interessado sobre a obra e fomentá-la é lutar pela modificação de um olhar efêmero sobre o mundo. Seu lugar é, antes de tudo, a comunhão de sensibilidades do artista e do público com a obra. É mais sobre consolidar pontes humanas do que reforçar fragmentações e abismos. E por pertencer indissoluvelmente ao domínio da criação, torna-se um lugar sério e valoroso como prática criativa. Como falou André Bazin, sua função é estender, na inteligência e na sensibilidade dos que leem, o impacto da obra.
Na consolidação dessa linha de pensamento, o fomento dessa concepção de cinema também perpassa pelo fortalecimento do sujeito crítico. Mesmo que, a priori, este construa confusos pensamentos apenas expressados na linguagem oral. Pois a crítica revela o indiferente, a partir da sua falta. O exercício de pensar uma obra demonstra, por si só, interesse, relevância. E, dentro desse primeiro passo, outros seguem, outras críticas, outros olhares, extrapolando o limite da obra em si, como já expresso no início desse texto, fazendo-a brilhar um pouco diante de sua sonhada imortalidade.
À medida que se democratiza o cinema e o “fazer” crítico, poderemos começar a ultrapassar um cenário que ainda reproduz releases, textos com viés jornalístico ou focados nos aspectos externos e estruturais das obras, como questões de produção ou falta de recursos financeiros ou de tempo. Para fortalecer o sujeito crítico é também preciso desmistificar e democratizar a crítica, desde os lugares (da universidade para fora de seus muros) a das pessoas que escrevem (a crítica deve ser um espaço para quem se sentir estimulado a ocupar).
Talvez a falta de um curso superior na área também reforce esse lugar que fala mais do que há em torno do filme do que do seu universo, seus aspectos mais orgânicos e sua lógica intrínseca. Mas, certamente, todas as iniciativas em torno de cursos, workshops, editais, oficinas, são degraus importantíssimos para o fomento da crítica, à medida que aproximam diversos estratos sociais do fazer cinematográfico, trazendo mais sujeitos sociais para esse importante espaço de expressão das subjetividades, diversificando-o.
E ninguém deve ter medo de se expressar. Esse receio é apenas mais uma infeliz face de lógicas sociais e políticas de poder, que jogam contra o florescimento do pilar da crítica. A política de não “falar mal” de um filme para “não se queimar”, é equivocada. Despersonificar a crítica é agregar valor para os filmes já realizados e os futuros.
Tirar a crítica da percepção de algo direcionado pessoalmente a alguém e entender como espaço para ampliação de horizontes, discussão e reflexão sobre a obra, é um exercício fundamental para o fortalecimento da sétima arte. E isso nos faz pensar no debate da potência da crítica como exercício de criação artística, o que reforça a importância da disposição em despersonificar e incentivar a produção desse tipo de material e registro. Ao realizador há a tarefa de fazer seus filmes, a quem assiste, de falar deles, mesmo que este que assista seja “amador”. Ao sujeito crítico, para escrever sobre um filme o primeiro passo é se sentir afetado por ele.
A crítica praticada com lucidez atinge a vocação de arte. A busca dessa lucidez se inicia pela compreensão da necessidade de uma atitude crítica como algo indissociável da prática cinematográfica. É algo positivo, construtivo, mesmo que possa parecer duro ou “desrespeitoso”, a crítica é sobre a dimensão imponderável da arte, e não sobre expectativas pessoais.
O binômio paixão-lucidez afeta as mais diversas faces profissionais. Como disse Jean Douchet, “para o artista, mais que para o crítico, é perigosa e difícil essa busca incessante de uma harmonia entre a sua paixão e a lucidez!”. O movimento de afeto, interesse e aceitação da atitude crítica é imprescindível para os realizadores e demais envolvidos nessa cadeia produtiva.
Logo, além de tarefa coletiva, a atitude crítica é um desafio individual. Fluir entre a paixão-lucidez e nos expressar, comunicar e finalmente, nos conectar. O terreno da arte é um lugar para reconhecermos diferenças e semelhanças, nos respeitarmos, e apreendermos nossas complexidades à luz dos recursos historicamente desenvolvidos.
É urgente fortalecer a crítica como pilar do estado de cinema. A continuidade do ciclo: assistir, escrever, debater e ler sobre o que escreveram do filme. É necessário consolidar a cultura da crítica para além de uma conversa em mesa de bar que morre na ressaca. Isso relega as obras ao léu do acaso que, na melhor das intenções, torna-se uma borracha de origem duvidosa. Para superarmos essa cultura, devemos fortalecer o sujeito crítico, desmistificar e democratizar seus lugares a todos os sujeitos verdadeiramente engajados nesse processo.
Essa prática e concepção revela a crítica como uma ferramenta mágica, quando cada um for se apropriando dos rituais e bruxarias, sem preconceitos, alimentando os caldeirões de olhares com seus ingredientes-palavras, tecendo os sabores-textos com o infinito particular das receitas misteriosas do que é fazer arte.

P.S.: Por isso outra janela se faz importante, a desse site que está lendo, lugar que temos a sorte de existir, iniciado pelo empenho de Larissa Lisboa e Amanda Duarte. O Alagoar possui um acervo já relevante para o histórico da Mostra Sururu e é um espaço aberto a receber essas críticas, sem necessidade de títulos pomposos ou formatos fechados. O importante é a mola propulsora interna: A vontade de falar de cinema.

O Alagoar está aberto para contribuição e recebimento de críticas, resenhas e impressões sobre filmes alagoanos e brasileiros, independente da participação no laboratório, para isso o texto tem que ter no mínimo 1500 caracteres e ser enviado para audiovisualalagoas@gmail.com.

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