Formação e gestão, uma entrevista com Beatriz Lindenberg

Beatriz Lindenberg está em diálogo há 25 anos com a gestão de projetos culturais audiovisuais, muitos deles realizados no Espiríto Santo, e outros deles em diversas cidades do país através do Instituto Marlin Azul, responsável pelo Revelando os Brasis (iniciado em 2004) e Projeto Animação/Núcleo Animazul (iniciado em 2002).
Em quatro das seis edições do Revelando os Brasis foram contemplados projetos de cidades do interior de Alagoas com até 20 mil habitantes, possibilitando aos proponentes participarem de uma imersão no Rio de Janeiro e viabilizando a realização de seis curtas-metragens. Com o intuito de difundir informações sobre esse e tantos outros projetos produzidos por Beatriz compartilhamos essa entrevista.

Larissa Lisboa: Como você começou a trabalhar com cinema?

Beatriz Lindenberg: Em 1994 fui convidada a integrar a equipe de filmagem de um curta-metragem que havia sido aprovado pela Lei Rubem Braga, de incentivo à cultura do município de Vitória.  Acabei produzindo a ficção A Lenda de Proitner, considerado um curta clássico do cinema de horror brasileiro. Com uma equipe formada por amigos, a maioria em primeira viagem, filmamos durante 1 mês com atores capixabas e uma família pomerana, que nos proporcionou as principais locações do filme, figurinos, objetos de cena, ambientações e alguns personagens. Moradores das margens da represa do Rio Bonito, Santa Maria de Jetibá /ES, a família Brandt nos acolheu incondicionalmente e deu o tom da produção. Com trilha sonora original, rodado em super 16mm, A  Lenda de Proitner fez uma bela carreira internacional em festivais e mostras de Cinema de Horror e Filmes Estranhos. Foi uma experiência incrível e decisiva, de produção densa e divertida. Assim como eu, muitos integrantes da equipe se profissionalizaram no cinema. Em seguida produzi Flora, curta de época rodado na estação de trem de Matilde/ES, com Selton Melo em papel de estreia no cinema, Regina Braga, Celso Nunes e elenco local.  Em 1999 fundamos o Instituto Marlin Azul para profissionalizar as produções de filmes, mostras e projetos audiovisuais.

LL: Como definiria a sua relação com o cinema antes de começar a trabalhar? E ao longo das experiências acumuladas desde 1997 até hoje, a partir da sua visão e atuação como agente do setor audiovisual?

BL: Ir ao cinema era um dos programas da minha adolescência, mas nunca imaginei que pudesse trabalhar na área.  Desde o início das produções, participei de equipes mescladas de profissionais experientes e iniciantes, atores e não atores. Após as primeiras experiências de realização de filmes e festivais, fui fisgada definitivamente, numa relação que se intensifica.  Acredito na força do cinema e considero o audiovisual potente por reunir arte, invenção, talento, experimentação, descobertas e capacidade de transformação. Tenho imenso prazer em criar e realizar projetos de cinema e educação ou produzir obras profissionais.

LL: Quais funções desempenhou no Festival Vitória Cine Vídeo?

BL: Fui coordenadora geral do Festival durante 15 anos, do ano 4 ao ano 19.  Nesta função a gente se envolve com tudo, desde elaborar o projeto, articular parcerias, formar equipes, ver os filmes, desenvolver a programação, as publicações, planejar a comunicação e receber os convidados. Sempre gostei de cuidar das mostras, oficinas e do módulo infantojuvenil. Criei o Festivalzinho de Cinema de Vitória, que deu origem ao Projeto Animação e ao Ponto de Cultura Animazul, projetos que permanecem ativos e vigorosos.

LL: Como foi criado o Instituto Marlin Azul?

BL: O Instituto Marlin Azul foi criado em 1999 por um grupo de amigos e parceiros que já atuavam  juntos na produção audiovisual.  Surgiu da necessidade de profissionalizar o trabalho, dando suporte jurídico às ações e projetos de formação, produção e difusão de interesse público, que já estávamos realizando informalmente.

LL: Como surgiu o Revelando os Brasis?

BL: Revelando nasceu em 2004, em período radiante do Ministério da Cultura e da Secretaria do Audiovisual, com a genial dupla Gilberto Gil e Orlando Senna.  Havia um projeto muito consistente da SAV/Minc para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro em muitas direções.  Revelando os Brasis foi a aposta mais radical no sentido de democratizar o acesso de muitos brasileiros e brasileiras à formação e aos meios de produção audiovisual. Nasceu com o propósito de “alfabetização audiovisual” para moradores de municípios com até 20 mil habitantes. Viabilizar experiências comunitárias de realização audiovisual pelos próprios moradores, que são os roteiristas, diretores, atores, produtores e apoiadores de seus próprios filmes, proporcionando-lhes iniciação à linguagem e às técnicas audiovisuais. E mais: garantir o direito a assistir a seus filmes na tela grande, nas ruas ou praças de suas cidades de origem, a grande maioria sem salas de cinema.

LL: Como é realizada a seleção dos projetos contemplados?

BL: Uma comissão formada por 5 ou 7 profissionais do audiovisual de características diversas, de diferentes estados e regiões faz uma seleção em três etapas, considerando a diversidade temática, regional, o interesse pelo tema. Inicialmente há uma checagem documental feita pela produção e em seguida as histórias são enviadas aos integrantes da comissão para leitura, discussão e seleção, ao longo de três encontros. Não é fácil selecionar as histórias. Não se trata de um concurso de roteiros e nem de literatura. É um universo de ideias e abordagens dos mais variados temas.  A verdadeira expressão da diversidade, uma coleção do imaginário brasileiro.

LL: Quais as dificuldades na realização do Revelando os Brasil?

BL: A maior dificuldade é viabilizar os recursos para a realização a cada edição.  É um projeto grande, com ciclos de formação, produção e difusão que duram cerca de dois anos.  Assim, Revelando os Brasis não se enquadra no padrão da maioria dos editais públicos.  Mas realizar o Projeto é sempre um percurso muito prazeroso, envolvente e de intenso aprendizado de todos os envolvidos. É um desafio a cada etapa, começando pela divulgação das inscrições, que precisa chegar a 4 mil municípios brasileiros e sensibilizar moradores acima de 18 anos que em geral nunca almejaram realizar um filme.  Há um desenho de comunicação nos níveis nacional, estadual e local, abrangendo redes sociais e especialmente rádios locais, comunitárias, mas também jornais e canais de TV, além do boca a boca da rede de parceiros e regulamentos/fichas de inscrição distribuídos pelas agências dos correios dos pequenos municípios.  Os riscos em reunir pessoas dos interiores (de todas as idades, práticas, profissões, escolaridades e culturas distintas) numa imersão audiovisual de 15 dias no Rio de Janeiro,  nunca foram percebidos com dificuldades, mas um grande estímulo.

LL: Como funciona a capacitação oferecida aos projetos selecionados pelo Revelando?

BL: Os autores das histórias selecionadas se reúnem  no Rio de Janeiro durante 15 dias para cursar as oficinas de roteiro, direção, produção, direção de arte, direção de atores, fotografia, som, edição, finalização, direitos autorais, mobilização comunitária.  Neste período os autores escrevem seus roteiros, baseados nas histórias selecionadas, elaboram a base do plano de produção e pensam o filme. A ideia é que os autores saiam da imersão audiovisual preparados para produzir e dirigir seus filmes, com envolvimento e participação da comunidade. A equipe de filmagem será formada por moradores e profissionais que operam os equipamentos (câmera, som).  A edição também é feita com um profissional sob direção do (a) selecionado (a).

LL: Quantos projetos provindos de cidades de Alagoas realizaram inscrição no Revelando Brasis? Quais foram selecionados e realizados?

LL:São 6 edições realizadas até agora, com mais de 5 mil histórias inscritas de todo o Brasil. Já recebemos inscrições com histórias escritas em papel de pão, diários inteiros, textos originais para livro, recados para políticos, poesias, confissões, mensagens de amor. Proporcionalmente, Alagoas sempre teve um número razoável de inscrições. A primeira edição realizou os curtas alagoanos Borboletas, um documentário de Vicentina Dalva, de Piaçabuçu; Nelson, ficção de Thalles Camêllo da Costa, de Capela e o documentário Cadê Calabar?, de Joaquim Alves de Oliveira Neto, de Japaratinga. Na segunda edição, a história selecionada foi de autoria de Maria do Carmo Silva Ferreira,  de Batalha, que produziu a ficção Infância no Sertão. A quarta edição realizou a ficção As Ilhas de Minha Vida, de Zezinha Dias, de Piaçabuçu e o Revelando VI selecionou a história que resultou no doc Nêga da Costa, de Joelson de Oliveira, de Quebrangulo. Todas as histórias selecionadas foram realizadas.

LL: Como foi o processo de realizar filmes no interior de Alagoas? Entre os primeiros filmes contemplados realizados em 2005 e o mais recente, o que seria possível destacar sobre os processos de realização?

BL: As primeiras edições foram mais focadas no processo de iniciação à linguagem audiovisual das oficinas.  A ideia era promover o acesso de moradores das pequenas cidades à linguagem e à tecnologia audiovisual. A atenção do projeto estava voltada para o processo de “alfabetização audiovisual”, compreendido como a formação nas oficinas. A realização dos filmes era considerada, então, uma consequência, e não uma parte igualmente central do processo de aprendizagem. Os filmes eram realizados nas cidades com a direção dos selecionados,  a participação dos moradores e a operação dos equipamentos feita por uma equipe profissional contratada na capital do estado ou de estado próximo.  A coordenação do projeto fazia um acompanhamento à distância, cuidando especialmente do processo de preparação, mas sem qualquer participação em campo, durante a realização dos filmes. Nas edições 5 e 6, a pré-produção e as filmagens na comunidade ganharam igualmente centralidade no processo de formação. A partir daí destacamos a valorização da etapa prática como a continuidade do aprendizado, compartilhado com todos os moradores participantes. Alguns professores passaram a integrar as equipes técnicas e as filmagens tornaram-se uma etapa dedicada também à aprendizagem e experimentação, com resultados muito positivos.

LL: Como foi a experiência de exibir os filmes realizados pelo Revelando os Brasis no circuito nacional de exibição de 2008 a 2018?

BL: Aí está o grande deleite, compartilhado com toda a comunidade. Os lançamentos são o momento do encontro, das identificações, da alegria, da valorização, do estímulo, orgulho de si e do outro, da cidade, da arte local, das potencialidades, do resgate da memória, das projeções, da força do coletivo. É um acontecimento que reverbera longe nas pessoas e nas cidades.

LL: Como foi criado o projeto “Animação”?

BL: Foi criado em 2001 a partir de exibições de filmes para alunos da rede pública, com a presença dos diretores para um bate papo.  Certa vez, o diretor de 14 anos apresentou sua animação O Nordestino e o Toque de sua Lamparina.  Ítalo Maia, quase tão jovem quanto os alunos, impactou a plateia de estudantes.  As crianças e adolescentes até então retraídos nas perguntas, expuseram toda a curiosidade e fascínio pelas imagens. Vislumbramos a oportunidade de oferecer oficinas de cinema de animação em escolas públicas. As primeira aconteceram na região de manguezal. Experimentamos diferentes técnicas em quatro escolas da Prefeitura. As primeiras oficinas resultaram na animação Mangue e Tal, primeiro curta metragem do projeto. Lançado no Teatro Glória para plateia de 1.200 espectadores, Mangue e Tal teve trilha sonora apresentada ao vivo por 60 alunos da Banda de Congo Mirim da Ilha, projeto musical parceiro nosso desde 2002.  A cada edição, um novo filme é produzido por novas turmas de alunos, possibilitando o desenvolvimento do saber audiovisual de crianças e adolescentes.
Alguns deles são: Mangue e Tal (2002); Portinholas (2003); Zen ou Não Zen? Eis a questão (2004); Vitória pra Mim (2005); Albertinho (2006); Ele (2007); Mestre Vitalino e Nós no Barro (2008); Um Fio de Esperança (2009); As Curvas de Niemeyer (2010); O Maestro do Tempo (2013); Dinossauro Rex (2014); Nada, Nadador (2015); O Bruxo do Cosme Velho (2015), A Árvore de Humberto (2016), No Caminho da Escola (2017), Sobre a Gente (2018), Vento Viajante e Dia do Manguezal (2019), em finalização, entre muitos outros.

LL: Como funciona o Núcleo Animazul? E o Estúdio Animazul?

BL: O Núcleo Animazul se formou a partir das oficinas do Projeto Animação, com alunos talentosos e desejosos em continuar a aprender as técnicas e linguagem da animação.  Ponto de Cultura certificado desde o primeiro edital, o Núcleo Animazul formou professores e monitores, que apoiam a realização de oficinas para iniciantes. O Estúdio é uma das modalidades de workshop para a apresentação e experimentação das técnicas artesanais do cinema de animação, que pode ser desenvolvida em escolas, ruas, praças e instituições.

LL: Quais outros projetos e ações gostaria de compartilhar conosco?

BL: O Núcleo Animazul mantém um trabalho cineclubista com alunos de escolas públicas do Espírito Santo a partir de visitas ao IMA para falar de cinema, brincar de cinema e ver filmes.  Fazemos o DIA DE CINEMA com a apresentação e experimentação de brinquedos óticos, uma bate-papo sobre linguagem, breves exercícios de criação e a exibição comentada de curtas-metragens. Tem sido uma vivência muito divertida para os convidados e instrutores formados pelo Ponto de Cultura Animazul, e que comandam o cineclube. Iniciamos também a realização de animações com crianças do ensino infantil, entre 4 e 6 anos, que é um novo desafio instigante. Paralelamente, começamos a produção de uma mostra de cinema nas cidades históricas do ES, promovendo o diálogo entre cinema e espaço urbano. A Mostra produzirá as Cartas pro Futuro, que serão histórias das cidades contadas em vídeo pelos moradores, proporcionando, através da tradição oral, uma reflexão sobre o patrimônio cultural imaterial do Estado.

LL: Quais funções desempenha atualmente? E com qual (is) delas mais se identifica?

BL: Coordeno os projetos do Instituto Marlin Azul e tenho o privilégio de trabalhar exatamente com o que gosto. Não sei trabalhar sem identificação com os projetos… não dá certo!

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Sou graduada em Comunicação Social na Universidade Federal do Espírito Santo. Fiz especialização em Literatura Brasileira Contemporânea na Fundação Nelson Abel de Almeida/ES e atualmente curso especialização em Cultura e Educação na Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, a Flacso/Brasil. Atuo como gestora de projetos culturais audiovisuais desde 1995. Sou fundadora do Instituto Marlin Azul e coordeno os projetos da instituição, com especial destaque para o Revelando os Brasis (iniciado em 2004) e Projeto Animação/Núcleo Animazul (iniciado em 2002).

Sobre Larissa Lisboa
É coidealizadora e gestora do Alagoar, compõe a equipe do Fuxico de Cinema e do Festival Alagoanes. Contemplada no Prêmio Vera Arruda com o Webinário: Cultura e Cinema. Pesquisadora, artista visual, diretora e montadora de filmes, entre eles: Cia do Chapéu, Outro Mar e Meu Lugar. Tem experiência em produção de ações formativas, curadoria, mediação de exibições de filmes e em ministrar oficinas em audiovisual e curadoria. Atuou como analista em audiovisual do Sesc Alagoas (2012 à 2020). Atua como parecerista de editais de incentivo à cultura. Possui graduação em Jornalismo (UFAL) e especialização em Tecnologias Web para negócios (CESMAC).

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