Cineclubismo, uma entrevista com Ismélia Tavares

Perguntas: Larissa Lisboa e Tatiana Magalhães. Revisão: Tatiana Magalhães. Respostas: Ismélia Tavares. Fotos: Leonardo A. Amorim (Mirante Cineclube)

Ismélia Tavares foi uma das mulheres homenageadas pela Virada Miranteira, realizada pelo Mirante Cineclube em março de 2020. Na busca por somar com essa homenagem e estimular o diálogo sobre o cineclubismo Larissa Lisboa e Tatiana Magalhães construiram essa entrevista em conjunto com Ismélia.

Larissa Lisboa: Como teve início a sua relação com o cinema? O que lhe incentivou a ir além do lugar de espectadora?

Ismélia Tavares: Bom… minha relação com o cinema eu diria que é bem antiga. Desde que minha família adquiriu a primeira TV, na minha adolescência, eram os filmes que me interessavam. Filmes de cowboy e os clássicos musicais americanos sempre eram exibidos na sessão da tarde, e eu assistia todos com minha amiga Sueli. Depois cada uma de nós escolhia um personagem e brincávamos de atuar. À noite, quando minha família já estava dormindo, eu caminhava nas pontas dos pés até a sala, ligava a TV bem baixinho para assistir aos filmes de terror, pois adorava os filmes de vampiro. Assistia também a um programa do Alfred Hitchcock, apresentado pelo próprio, onde ele falava do processo fílmico. Era muito bom. Mais tarde, foi numa sala escura do cinema que percebi a magia…risos. Lembro-me da primeira vez que fui ao cinema. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos e fui sozinha. No Brasil, a ditadura militar imperava e pouco se assistia de filmes nacionais no cinema. Nesta época passavam muitos filmes italianos. Menina, vinda do interior, entrei desconfiada na sala de cinema. Só avistei poltronas e uma parede branca, sentei. De repente apagam-se as luzes e aquela parede imensa a minha frente se iluminou. Meu coração disparou, minhas mãos suaram. Fui transportada para a Itália dos anos 60 e o filme Dio Come Ti Amo, estrelado pela cantora e atriz Gigliola Cinquetti e sua voz doce, me arrebatou. Fiquei muito tocada, ri e chorei horrores…Risos. Foi uma emoção nunca sentida antes. Porém, o meu despertar para o “ir além do espectador no cinema”, foi sem dúvida, a partir do meu envolvimento com o Cineclube Projeção, o qual fui uma das idealizadoras. Foi quando afloraram ideias, sonhos, e vontade de realizar. Foi nas relações cineclubistas que conhecemos os realizadores audiovisuais de Maceió. Todas essas coisas juntas abriram horizontes.

LL: Como teve início o seu diálogo com cineclube?

IT: O primeiro cineclube a chamar minha atenção e que assisti algumas sessões foi o Ideário, que realizava um trabalho incrível e com pessoas igualmente incríveis. Participei na sede do Ideário de reuniões importantes sobre as jornadas cineclubistas, onde se discutia o fortalecimento do cineclubismo na região Nordeste. Quem estava à frente da associação na região Nordeste, na época, era a Lis Paim, realizadora e montadora, uma profissional incrível. Ali percebemos que havia uma política cultural e social em torno dos cineclubes. Entendemos que os cineclubes representavam um lugar de engajamento e de resistência do cinema nacional.

Tatiana Magalhães: De que forma o cineclube mudou a sua forma de ver filmes?

IT: Quando você começa a frequentar um cineclube ou participar de um, você naturalmente amplia seu olhar sobre muitos aspectos do cinema. Antes do cineclube, ir ao cinema para mim era acima de tudo um lazer. Não que tenha deixado de ser. Hoje assisto filme com o olhar de apreciador da arte, porém mais crítico. No cineclube quando você escolhe um filme para exibir, essa escolha acaba sendo de alguma forma uma escolha política, porque a intenção é atingir algo ou alguém, além do prazer é claro, que esse momento proporciona.

TM: A partir da sua experiência em cineclubes, fale um pouco sobre como você enxerga o processo de escolha de filmes para exibição. Havia uma preocupação em exibir filmes locais ou nacionais que tivessem menor circulação?

IT: O processo de escolha pode acontecer de diversas formas de acordo com a proposta de cada cineclube. Não precisamos copiar formas. Aliás, esse é o grande barato do cineclube: a diversidade de engajamento e de propostas. O Projeção Cineclube por exemplo, tinha uma proposta de dar uma volta ao mundo através dos filmes estrangeiros e nacionais. Porém, tínhamos sempre uma preocupação com temas que fossem relevantes e que poderiam trazer para os debates um confronto de ideias. Existia sim uma preocupação em exibir filmes nacionais e principalmente filmes de menor circulação. Aliás, realizamos algumas mostras de filmes nacionais. Fizemos também uma mostra só de filmes alagoanos com a presença dos realizadores, que teve um debate bem esclarecedor sobre alguns aspectos da nossa sétima arte local.

TM: O cineclube do qual fez parte chegou a ter algum público fixo (ex: exibição para alunos de ensino médio)? Se sim, de que forma isso determinou a escolha do filme? Há temas e linguagens “adequados” de acordo com o espectador?

IT: Os cineclubes são lugares abertos. O público varia de acordo com o interesse pela obra exibida. Me lembro de ter frequentadores assíduos, que não perdiam uma sessão e quando perdiam, ao voltar justificavam a ausência. Era lindo. Não exibimos especificamente para alunos do ensino médio mas, realizamos exibição em comunidades onde o público era composto por crianças, jovens e idosos. Nesse caso, houve um critério para a escolha dos filmes. Escolhemos filmes com temas e linguagem que dialogassem com a realidade local e ao mesmo tempo que permitisse sonhar. Porque sonhar é preciso.

TM: Ano passado, o edital da FMAC contemplou cineclubes, o que fez com que novos grupos fossem criados para exibir e discutir filmes. Qual a importância do apoio e financiamento público para essas iniciativas?

IT: Um edital que contemplasse cineclubes era mais que o esperado. Sou a favor do financiamento para a criação de novos cineclubes, aliás, essa foi uma das propostas que colocamos durante a Conferência Municipal de Cultura que aconteceu em 2013, realizada pela Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC). Eu e Nivaldo Vasconcelos éramos representantes do segmento Audiovisual dentro do Conselho de Políticas Culturais, o primeiro criado na gestão do Vinícius Palmeira. Durante três dias de discussão com o segmento, durante a Conferência, elaboramos quais seriam as metas que desejávamos alcançar nos próximos 10 anos para o audiovisual em Alagoas. E o financiamento público para Cineclubes estava entre essas metas. Que bom…mais uma meta cumprida.

LL: O que você destacaria como essencial para a manutenção de um cineclube?

IT: Além de apoio financeiro para realização de mostras, para compra de equipamentos e encontros dentro e fora do Estado para discutir as ações cineclubistas, eu destacaria o amor ao cinema e o entendimento que cineclube é uma ferramenta de resistência e de trabalho coletivo.

TM: Qual a importância dos debates/bate-papos após as exibições de filmes?

IT: Quanto aos debates. Essenciais. Não consigo entender um cineclube sem debates. Alargar o olhar sobre o que está explícito e implícito na obra é estender seu olhar crítico sobre as coisas do mundo. Para que isso aconteça, requer ouvir as impressões do outro. Sendo assim, os debates proporcionam trocas e ampliam olhares. Portanto, essenciais.

Registro da homenagem realizada pela Virada Miranteira a Alice Jardim (representada por Nadja Rocha), Ismélia Tavares e Nataska Conrado. Foto: Leonardo A. Amorim.

TM: Os cineclubes possuem, historicamente, um papel importante na utilização do cinema como ferramenta para a mudança do olhar do espectador. Como você vê essa “função social” do cineclube? Na sua visão, ele possui um papel político?

IT: Os Cineclubes possuem uma longa história de existência. Sabe-se que nas primeiras décadas do século XX, na França, um italiano chamado Riccioto Canudo resolveu reunir artistas de outros segmentos para assistir e discutir a imagem em movimento. Logo depois publicou um manifesto  atribuindo ao cinema o título de A Sétima Arte. Logo depois, um francês seguidor de Canudo criou a nomenclatura  Ciné-Club. Até aí os cineclubes tinham um papel puramente intelectual e artístico. No Brasil registra-se que o primeiro cineclube nasceu no Rio de Janeiro com o nome de Chaplin Cineclube. Idealizado por um grupo de amigos apaixonados por cinema e o primeiro filme exibido foi O Limite, do cineasta Mário Peixoto (1931). A partir daí, os cineclubes foram ocupando vários lugares e passaram a se constituir como espaços democráticos de discussão e alargamento de olhares a partir de obras cinematográficas. Não demorou muito para se tornar um ambiente político onde as películas além de discutidas artisticamente eram também utilizadas como ferramenta do pensar cultural, social e político. Em minha opinião, os cineclubes possuem sim uma função social e política fundamentais, entretanto, é preciso não descuidar do olhar sensível e artístico sobre a obra. Acontece de a diretora ou diretor se esmerar durante horas para construir um plano, uma sequência de planos ou uma mise-en-scène de tirar o fôlego e nem sequer passa pela discussão. O cinema para mim é resistência, mas também  é sonho.

LL e TM: Houve alguma situação/experiência marcante durante sua vivência cineclubista? Qual? O que a relação com o cineclubismo lhe ensinou?

IT: Aconteceram várias experiências e situações que eu poderia destacar aqui. Vou comentar duas delas. A primeira foi quando exibimos O Homem que Virou Suco, filme de 1981, dirigido por João Batista de Andrade. O filme já era conhecido, mas resolvemos exibi-lo por conta dos temas por ele abordados. O longa tocava em assuntos como migração, preconceito regional, pobreza, capitalismo selvagem. Essa sessão foi maravilhosa e tinha muita gente, para a nossa surpresa. Muitas pessoas ficaram para o debate. Todos queriam falar, dar a sua impressão sobre os diversos temas abordados num mesmo filme. Um espectador alagoano se viu meio que na pele do protagonista do filme e criticou os paulistas pelo preconceito com os nordestinos e generalizou dizendo que ele tinha passado por constrangimentos em São Paulo. Imediatamente uma espectadora paulista, que estava presente, discordou e disse que não se podia generalizar porque o povo paulista era gente boa e rebateu dizendo ter sofrido preconceito aqui quando chegou em Alagoas. Para simplificar, houve tensões e choros. No final do debate todos riram, pediram desculpas, foi uma experiência incrível que só o cineclube proporciona. Outra experiência fantástica que tenho orgulho de comentar foi uma parceria “Projeção e Ideário”. Nos unimos para realizar uma mostra com os filmes do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder. A mostra se chamou “As Mulheres de Fassbinder”. Nos juntamos eu, Nuno Balducci, Nivaldo Vasconcelos e Nataska Conrado nessa aventura. Escolhemos quatro filmes cujo protagonismo era feminino. Cada sessão era realizada num espaço diferente. A primeira no Ideário a segunda no Projeção e assim sucessivamente. O trabalho foi grande, mas foi um sucesso. Pois é, cineclube é essa arte coletiva onde envolve resistência, amor, trabalho e emoções.

LL e TM: Você acha que é importante que mais mulheres realizem, exibam e debatam filmes? Por quê? Como fazer parte de um cineclube empoderou a sua atuação no cinema/audiovisual?

IT:  A mulher nasceu para o protagonismo e não para figuração. Existe um discurso criado socialmente e que foi naturalizado que insiste dizer que tal coisa é próprio das mulheres se referindo às atividades realizadas por elas como secundárias, menos importantes. Isso é criação machista. As mulheres têm uma vocação de tudo que faz, faz muito bem. O protagonismo não se encontra apenas nas lideranças de grupo ou na direção. As mulheres estão atuando desde os primórdios do cinema, inclusive dirigindo filmes. O que pouca gente sabe é que até 1925, metade dos filmes produzidos em Hollywood era dirigido por mulheres. Precisamos assumir uma postura firme diante desse pressuposto histórico que tende a nos colocar para baixo e realizar, exibir e debater filmes com a nossa visão feminina.

TM: Na sua opinião, estamos tendo uma nova “onda cineclubista”? Se sim, qual a razão para que isso ocorra?

IT: Parece que a onda cineclubista acontece de tempos em tempos e os motivos giram de acordo com a vida social e política do seu tempo. Fizemos cineclubes no momento em que os cinemas estavam fechando e seus espaços sendo transformados em igrejas e mercados. Precisávamos ver filmes, discutir temáticas, conhecer obras e diretores (as) de outras regiões e países pelo mundo. Não queríamos nos render ao capitalismo dos cinemas de shopping, que visa apenas lucro e direciona olhares. Vimos no cineclube uma possibilidade de ir mais longe em nossas reflexões através do cinema.  Acredito que essa nova onda cineclubista passa por essas questões também, mas hoje, essa ferramenta se ampliou. Os cineclubes são espaços que exibem o grito da resistência e empoderamento das diversidades de gênero e cinematográficas.

LL: Como o seu empoderamento feminino é alimentado pelo cinema?

IT: Falar de empoderamento é algo completamente atual. Vivemos na época de assumir posturas diante das coisas e situações. Viemos de um processo histórico desfavorável à mulher no cinema.  Entretanto, nas últimas décadas, uma tomada de consciência tem empoderado o gênero feminino nas artes, em  especial  no cinema, seja escrevendo roteiros, dirigindo, produzindo ou atuando. Embora precisemos de mais mulheres roteirizando e dirigindo, o cinema tem sido uma ferramenta da cultura eficaz para mostrar a força  feminina. A mulher pode ser o que desejar ser. Empoderem-se!

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