Corpos e presenças em “Colapsar”

Perguntas: Joelma Ferreira e Pedro Krull. Respostas: Equipe de Colapsar (Amanda Môa, Juliana Barretto, Luiza Leal, Mayra Costa, Reginaldo Oliveira, Renah Berindelli, Renata Baracho e Valéria Nunes). Revisão: Karina Liliane. Foto destaque: divulgação. Fotos texto: Juliana Barretto.

Colapsar (direção coletiva) parte do conceito de corpos abjetos cunhado e defendido pela filósofa contemporânea Judith Butler. Corpos esses, que não são passíveis de luto, que não tem direito a vida, restando-lhes, uma vida precária como defende a filósofa. Vida precária segundo esta pensadora seriam todas aquelas vidas que não são compreendidas e nem cooptadas pelas instituições, ou seja, são vidas que não tem legitimidade para serem vividas, não são corpos viventes nem vivíveis. Desse modo, afirmar que a vida é precária, é afirmar que a possibilidade de sua manutenção depende fundamentalmente das condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver. Como os corpos dissidentes não são corpos vivos perante as instituições estado/sociedade, as violências sobre esses corpos são afirmadas e legitimadas. São corpos sem nenhuma proteção e sem garantia das condições mínimas necessárias para a sua sobrevivência e prosperidade. Esses corpos abjetos são corpos LGBTQIA+, Mulheres, Negros, Pobres. Corpos que já nascem mortos, por colapsarem a norma, a heteronormatividade vigente. É sobre esse debate que Colapsar advoga sua poesia e sua crítica.

Joelma Ferreira e Pedro Krull: A videodança é um campo de investigação relativamente recente, que continua abrindo diferentes aspectos da análise no conhecimento. Essa investigação e hibridismo é muito sentida em “Colapsar”, principalmente na construção dramatúrgica da dinâmica do corpo com a câmera, como ela foi desenvolvida? E como se difere essa relação nas silenciosas cenas iniciais, no complexo cultural do Teatro Deodoro, à performance no centro de Maceió comentadas pelos transeuntes?

Equipe de Colapsar: A relação dramatúrgica com base no corpo e na relação com a câmera se deu, de maneira mais enfática, no processo de edição do filme. Durante a dinâmica de ação da dança para a filmagem o processo foi se fazendo e se construindo no momento mesmo da dança e da filmagem. Existiu um roteiro que era a caminhada até o centro, até a ENCRUZILHADA do antigo Bar do Chopp e lá alguns parâmetros de movimentos a serem dançados. Ali tudo foi se alterando, se modificando e se reinventando pelas mãos e olhares de Renata Baracho e Juliana Barreto que, a partir de seus olhares e dos olhares de suas câmeras foram solicitando enquadramentos para a dança ser feita, ali mesmo, no momento de sua execução. A fisicalidade do dançarino Reginaldo Oliveira foi se alterando também, a partir das interferências de fala e de relação com os transeuntes e com a própria equipe de produção de Colapsar. No campo conceitual do filme estávamos interessados em problematizar e provocar o olhar do espectador para a relação entre a esfera do privado (do espaço fechado, íntimo e protegido) e do público (da rua, da invisibilidade e da violência). Nesse sentido, importa para nós e para o filme, borrar, criar fricções e mostrar que público e privado não são oposições como os dualistas defendem e como a sociedade patriarcal utiliza desse pensamento para alimentar seu poder a partir da exclusão da diversidade. Mas, que essas esferas organizam suas lógicas em interfaces e campos de fronteira. Por isso a escolha de uma ENCRUZILHADA para a dança ser feita, ou seja, o ponto onde várias ruas e caminhos se cruzam e de maneira simbólica, um espaço de proteção, prosperidade, descarrego, de despacho e de oferendas segundo a Umbanda.

JF e PK: Para chegar nesse estágio de exposição e colapso absoluto que é proposto pela videodança, houveram processos de experimentação e etapas? 

EC: Houveram etapas de experimentações no corpo especificamente, mas não seguindo uma pavimentação lógica de etapas. De partida, a experimentação mais óbvia é o corpo do próprio dançarino, que já é um “corpo colapsador”, um corpo gay afeminado não só em seus gestos, mas também nas vestimentas usadas por esse corpo enquanto reconhecimento social: que vai do uso de saias, roupas curtas e apertadas, e roupas sem um desenho claro de uma masculinidade ou feminilidade. Como esse projeto vai além da videodança e é também um espetáculo de rua e a videodança foi um dos dispositivos de construção do espetáculo, o corpo do dançarino foi experimentando algumas porcentagens de colapsos até a produção da videodança e posteriormente o espetáculo de rua. Esses procedimentos de colapsos foram construídos a partir da relação com Valéria Nunes que é a dramaturga do espetáculo, uma espécie de debatedora das questões ali postas. Foram experimentos de pintar as unhas de vermelho e observar como as pessoas reagiam a essa ação, desde a manicure até uma recepcionista de uma lanchonete por exemplo. E também experimentos dentro da sala de ensaio, a partir das vivências colapsadas: experimentos de gestualidades tensas a partir da região do quadril, de quedas corporais, de movimentos fragmentados e frenéticos…

Foto: Juliana Barretto.

JF: O olhar heteronormativo fabricou signos correspondentes ao que é reconhecido como masculino e feminino. Diante disso, como foi construído o colapso dessa norma nas escolhas feitas pela produção (preparação, dança, figurino)?

EC: A produção se dedicou na utilização de elementos ou tecnologias que desconstruíssem e desmontassem o contrato sexual da sociedade que privilegia o corpo do homem hétero como corpo soberano. Desse modo, o figurino sendo um vestido, uma roupa socialmente feminina e a dança construída de gestos ondulatórios a partir do quadril e da coluna que também, são movimentos socialmente entendidos como sensuais direcionados a mulher, e sendo essas vestimentas e gestos usadas por uma figura indefinida, pois não é possível ver o rosto, advoga para si um mito CIBORGUE seguindo o pensamento da filósofa Dona Haraway. Ou seja, um sujeito híbrido, sem gênero, indefinido, transgressor, dotado da capacidade de fraturar identidades por ser constituído no entre, na fronteira entre natureza e cultura, humano e animal, organismo e máquina. Nesse sentido, os elementos compositivos e constitutivos da personagem ciborguiana apresentada em Colapsar através de sua composição estética e de seus artefatos tecnológicos desmontam, remontam e reinventam multiplicidades, modos diversos de existir no mundo, o que implica em convulsionar o regime heterossexual, esse regime político que legitima a sujeição de certos corpos a outro. A preparação corporal foi então aplicada de modo a entender o corpo não enquanto lugar de opressão, mas sobretudo enquanto potencializador de resistência, de blasfêmias, de territórios de produção e de imaginação.

JF e PK: A locação que foi escolhida, bairro do centro de Maceió, mesmo sendo palco histórico de intervenções e expressões artísticas não reconhece esse corpo outro de “Colapsar”. Como esse elemento de descentralização e (de)marcação simbólica do ambiente atuou na performance, escolha do local e montagem?

EC: A presença de um corpo indócil no espaço da rua constrói fricções e rupturas na medida que esse corpo é colocado o tempo inteiro para fora do campo social. A escolha do centro de Maceió foi propositiva nesse sentido, de trazer para a esfera do público um corpo que é direcionado para a margem da vida, dos espaços sociais, dos desejos e das possibilidades dialéticas. Colocar esse corpo, esse ciborgue, nesse espaço de Encruzilhada visibiliza nossos corpos e histórias negligenciadas pelo poder público. A presença desse corpo age como dispositivo político e estético de interferências na produção de questionamentos e de subjetividades desse espaço e das pessoas que por ali transitaram e foram contaminados para o bem ou o para o mal com a ação desse corpo em situação de dança.

JF e PK: Como se deu a interferência do olhar-outro e comentários dos passantes no sentir a dança e gravação? Que sentimentos surgiram durante a performance? E como esses sentimentos influenciaram a própria performance?

EC: As interferências ocorreram de maneiras diversas, visto que o espaço da rua cria redes de tensionamento e essa sempre foi e ainda é o objetivo da ação: promover espaços de tensionamentos, de conflitos, de produção e ressignificação do corpo, do espaço, da situação de dança e dos espectadores que são afetados. Desse modo, os afetos são e foram plurais, desde a curiosidade, o cuidado, a necessidade de aproximação e de afastamento, até o medo, o perigo e a violência. E esses afetos produzem ação, reação, transformação e ressignificação no corpo do dançarino e na própria dança. Então, uma dança que tinha alguns parâmetros para a sua execução foi sendo modificada na produção de outras possibilidades de movimentos do corpo, ou mesmo, de alteração do desenho espacial e até de enfrentamento aos afetos ali produzidos e compartilhados.

Foto: Juliana Barretto.

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