Cobertura: Açucena (dir. Isaac Donato)

Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.

O início do filme nos apresenta um relato, a entrevistada fala de sua vontade de ter uma boneca quando criança, que nunca conseguiu. Até que, nesse meio tempo, cruzou caminhos com Açucena. Enquanto ouvimos sua fala, vemos a imagem noturna de uma casa rosa, com uma trilha sonora de cordas tensa no fundo. O filme de Isaac Donato nos introduz a uma estranha atmosfera, um mistério. Nessa pequena vila iluminada por luzes vermelhas logo amanhece, e duas personagens discutem a preparação para o evento que se aproxima enquanto realizam seus afazeres, conversam sobre o aniversário de Açucena: uma idosa que comemora anualmente os seus 7 anos, sempre a mesma idade, em sua casa enfeitada por bonecas.

Esse ritual mobiliza um grupo diverso de profissionais: tem quem conserte as bonecas que enfeitam os quartos, quem produz suas roupas, quem organiza, pinta e limpa a casa. As conversas do grupo alternam entre o coloquial e o expositivo, com uma montagem que salta entre pedaços de encontros distintos para manter a agilidade do filme. Há também uma encenação bem marcada, como por exemplo na cena com o homem que conserta bonecas e manda áudio: utiliza-se um plano e contraplano entre as duas partes do diálogo, o que denuncia a encenação. Aliado a isso, a maneira com que as personagens são filmadas distantes, entre grades ou partidas no quadro, reforça o tom observacional aplicado, ao mesmo tempo que um cuidado, uma percepção espiritual. Percebe-se então um controle por parte de Isaac Donato, sobre o que se apresenta e como se apresenta, para manter o mistério.

A fixação pelos 7 anos, pela infância, que se reafirma na presença de bonecas e figuras como branca de neve e os sete anões, traz também uma ideia de fantasia. É um posicionamento que foge à razão, à noção de tempo linear. As mulheres que se colocam a ajudar Açucena são mulheres negras mais velhas, como a protagonista: Dona Guiomar. Sua neta, inclusive, em determinado momento, brinca que ela é Açucena, e também destaca em sua fala a predominância de bonecas brancas. É compreensível que o ideal de infância que não pôde ser aproveitado, as bonecas que não puderam ser compradas, faça com que essas mulheres se sensibilizem com a personagem-título. Desde o começo do filme, inclusive, vemos diversas personagens e nos perguntamos se agora é Açucena, o que a divide por todo o elenco de idosas, e faz de sua presença algo constante, que impregna o longa: o ato de não mostrá-la a transforma em mitologia, entidade.

Perto do final do filme, quando Dona Guiomar é filmada brincando com algumas bonecas, fazendo carinhos nelas, a câmera a filma por de trás das bonecas, comprimindo-a na imagem e utilizando das cabeças das outras bonecas ao seu redor; o filme mantém a posição de distanciamento, zelo, apresentado desde o início, mas também pode ser interpretado como uma posição dúbia, que vê algo de enclausurador e danoso nessa realidade. Nisso se revela o tato de Isaac Donato para manter a complexidade das coisas, porque Açucena é um filme que consegue se apresentar sem negar possibilidades.

Isaac Donato tem em mãos um evento singular, uma mulher que percebe seu aniversário como um tempo deslocado do mundo, do físico, e que reuniu um grupo de outras mulheres que escolhem celebrar essa crença. Donato nos relata essa fábula assumindo um tom de respeito para com o grupo que filma, pois consciente das limitações da imagem, trabalha a carga transcendental através do não-visual, das alusões, do extracampo, em um filme que consegue se balançar no limiar entre o relato direto e a fé absoluta.

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