Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.
Uma das narrativas dentro da obra prima da literatura de terror, House of Leaves, é uma casa assombrada que muda sem avisar. Uma casa que mede do lado de fora um tamanho diferente do que mede dentro, em que portas aparecem e somem, na qual conexões absurdas entre aposentos são feitas, onde surge da noite para o dia um caminho misterioso que leva ao quarto das crianças. Poderes misteriosos, inomináveis e ameaçadores que alteram o lar, que fazem o que era não ser mais o mesmo, que lhe tomam o que era seu, o que sempre foi. Já no longa Panorama somos guiados pelo relato: “Meu avô todo dia media esse terreno aqui, todos os dias, pra saber o que ele tinha.”
Panorama acompanha alguns moradores do bairro Jardim Panorama que sofrem com a especulação imobiliária, com o crescimento de São Paulo ao seu redor. Alinhado ao filme A Colônia, que apresenta uma cidade que cresceu ao redor de dois espaços de segregação, o crescimento do Morumbi faz um movimento oposto e de resultado opressivo semelhante. Em determinada cena vemos uma senhora desenhar sua casa. Após a fala sobre o avô que mede a dele, pensamos ser outra forma de assegurar, de se atestar o que se tem, mas nesse caso ela está desenhando o que espera da sua futura moradia. A justaposição entre as atividades de medição e de desenho, entre o que se quer assegurar e o que se deseja, trás o vislumbramento de futuro e de passado, conectados, contínuos. Assegurar o passado é assegurar o futuro e vice-versa.
Em movimento semelhante, o som do helicóptero que vem do extracampo e invade momentos, o som do balançar das árvores e conversas, é a manifestação dos poderes ao redor do bairro, mas ele não é maior nem dura mais que o som das folhas, que o som de um rap sendo feito apesar dele. É no interior do Jardim Panorama que é possível ouvir algo além do tráfego de São Paulo, que está ao mesmo tempo tão perto e tão longe. Naquelas mesmas casas existem vistas para o interior do bairro e para a cidade que cresce ao redor, com os prédios altos e o tráfego constante. Essa duplicidade traz algo potente para o filme e não é devidamente aproveitada.
Em um movimento que pode parecer semelhante ao dos prédios, o bairro cresce para cima com as construções de novos andares, sobrados, lajes; é o super aproveitamento da terra medida de novo e de novo. Entretanto, esse movimento muito mais se assemelha ao das altas árvores que as casas se desenvolvem ao redor. Uma conexão poderosa com a terra, já que a construção dos condomínios acarretaria em seu desabamento junto com as casas. É como se os moradores do bairro se alinhassem com a natureza das árvores. O terror da mudança constante e imposta ao redor, se vê atenuado se é dos próprios moradores que vem a inconstância, as mudanças na casa, a adição de novas portas, paredes, uma reafirmação de poder sobre o espaço.
À medida que o filme avança vão se mostrando os prédios ao redor, os helicópteros, mas ao colocá-los em cena se perde o aspecto abstrato do terror, do poder, e se ganha uma suposta materialidade. Mesmo que em cena ainda carreguem um valor virtual, simbólico, e que os personagens sejam colocados para confrontar ou viver ao redor desses prédios que também representam o que busca destruir seu bairro. Esses símbolos de opressão têm um poder reduzido se comparado com sua ausência, sua abstração, o que soma com o esvaziamento de potência que se faz recorrente no decorrer de Panorama.
No caminho para o fim do filme a observação vai dando lugar a uma ficcionalização mais clara dos personagens. Eles conversam e refletem sobre as temáticas, seus passados, às vezes de forma crível, outras não. Conversam sobre uma questão dramática: vender ou não vender a casa? Algo que já sabemos que aconteceu no passado, para então os moradores retornarem ao bairro. Nesse caso a história quando se repete como farsa. A direção se faz presente, temos um filme para terminar: os cacoetes do documentário contemporâneo brasileiro se explicitam, festas de aniversário, conversas descontraídas que desenham arcos, personagens com expressões artísticas que vimos uma palhinha no início do filme, para retornar no fim na tentativa de um fechamento poderoso. Esses elementos todos vão pesando e dificultando a manutenção de uma ideia de naturalidade. Uma escolha de mise-en-scène que não se organiza em uma ficção convincente, um hibridismo de abordagens e regimes de olhar que se denunciam mais enquanto uma indecisão do que um experimento estético bem resolvido.
A gentrificação causada pela especulação imobiliária já é a manifestação de um poder maior que o indivíduo, maior do que uma família. É o “poder misterioso”, o capitalismo que circunda e gera mais formas de segregação e colonização, cria muros onde antes não existiam. O que Panorama diz: essa é nossa medida, o terreno é a imagem que nós temos, um 4:3 que no lugar de delimitar e reafirmar a resistência do bairro e seus moradores, reforça os lugares comuns do cinema híbrido brasileiro. Os personagens falam de suas infâncias e lamentam que as crianças de hoje não brincam pelo bairro como eles brincavam. Nesse movimento há também uma forma de medição, a metragem dos quadrados das fotos, do passado, você mede o que é seu. Caso o filme se ativesse a isso sem precisar adotar um tom pedagógico através de uma ficção mal elaborada, caso acreditasse no poder da duplicidade entre o passado e o futuro, poderia nos surpreender com portas misteriosas, um interior maior que seu exterior: “A gente não existe, mas estamos aqui.”
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