Cobertura: Rosa Tirana (dir. Rogério Sagui)

Texto: Leonardo A. Amorim. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.

Rosa Tirana nos apresenta uma representação clichê do nordeste, com um tom tanto fantasioso, fabular, quanto farsesco. É como se essa iconografia já tão batida na arte brasileira se visse materializada em um pastiche, mas ao mesmo tempo há um outro sentimento. O filme de Rogério Sagui apresenta uma narrativa direta e foge de qualquer reflexão mais profunda, de qualquer realismo, de qualquer coisa comum a um “cinema de festival brasileiro”, e é nisso que reside seu aspecto mais interessante.

A protagonista, uma jovem criança que escuta seus pais chorarem por causa da seca que os aflige, toma a única flor que sobreviveu ao cenário do sertão e parte para oferecê-la a Nossa Senhora Imaculada. Inicia-se então uma jornada, uma aventura que é amálgama de tantas imagens comuns do nordeste brasileiro, uma parede cheia de todo um imaginário, que se apresenta em arquitetura semelhante a parede de uma igreja, a um cordel. Penso também que não seria errado perceber nesse mural, nessa ideia de nordeste, um cenário propício de ser comparado com a Odisseia grega. Por exemplo, quando pega carona com um homem estranho, que nunca mostra seu rosto, e logo se vê trancada em uma casa com mesa farta e perigo iminente, remete diretamente a algo como a ilha dos comedores de lótus. Mas a velocidade com que essa sequência se desenvolve e resolve, sem deixar espaço para refletir uma moral de “cuidado com estranhos”, me assegura que não há interesse em dizer qualquer coisa.

A maneira com que Rosa Tirana é filmado, com que o filme se desenvolve, sem muita consequência que perdure, apresenta tanto uma capacidade de invenção quanto delata a precariedade da produção. Os interesses de Sagui parecem muito focados nessa sucessão de cenas, um ícone atrás do outro, uma situação atrás da outra, guiadas pela vontade de pôr em imagem. A trilha constante colabora com a plasticidade do filme, não dando brecha para qualquer ideia de que aquele espaço é realmente o que ele é, são mitos interagindo com mitos.

Em outro momento de sua viagem, a protagonista se vê em um local deserto cercada por figuras que podem remeter a golems, criaturas de terra, desta terra. Como se as imagens produzidas por estrangeiros a partir do nordeste fossem ressuscitadas, em uma sequência que remete a um pesadelo, uma alucinação, e no seu fim, ao desmaiar por tamanho calor, ela se vê acolhida por uma família de retirantes. A ficção se resolvendo com a ficção, a iconografia a salvando de seu delírio.

A ideia principal que o filme me passa é do artifício como caminho para atingir a catarse, além de lógicas de representação, do cinema propositivo em relação à crise nacional. Em alguma medida apresenta o mesmo pressuposto do filme anterior da Mostra Aurora, Oráculo: na sua curta duração, o mais interessante é estar aberto para suas imagens. A cena das danças com o grupo fantasiado, de circo, de quadrilha, pouco antes da protagonista adentrar à capela da Nossa Senhora Imaculada, carrega uma alegria genuína, sentimento pleno afunilado pela plasticidade do subdesenvolvimento.

Para além do realismo, para além do filme denúncia, do cinema engajado, Rosa Tirana oferece uma iconografia tão batida que se desloca completamente de qualquer mensagem. Os monólogos de sofrimento pela seca e vida dura têm o mesmo peso do figurino e da maquiagem, que tem o mesmo peso das noites iluminadas por fogo e do cristianismo. De alguma forma isso é bem vindo por trazer um artifício despropositado, um interesse pelas imagens que se nutrem delas mesmas: um filme-homenagem a uma ideia de nordeste. Não há crítica ao cristianismo, ou interesse em lidar com a negligência do Estado para com a população sertaneja.

Me interessa essa característica porque relembra as limitações da arte no grande esquema das coisas, porque não busca forçar uma sensação de que, ao estarmos assistindo um filme, estamos realizando um grande ato revolucionário, que o filme em si veio para mudar o mundo. Há a fé pela ficção e pelas imagens, o suficiente pra fazer o sertão virar mar.

Acompanhe a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes on-line pelo site.

Be the first to comment

Leave a Reply

Seu e-mail não será divulgado


*