Construção de uma codireção, uma entrevista com Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti

Perguntas: Janderson Felipe e Leonardo Amaral. Respostas: Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti. Revisão: Larissa Lisboa e Karina Liliane. Foto em destaque: Amanda Guerra.

Depois de mais de 10 anos de carreira passando por curtas e médias metragens Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti estreiam em longa-metragem com Cavalo na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, primeiro longa produzido no estado a partir de edital de incentivo público, contemplado no Prêmio Guilherme Rogato da Prefeitura de Maceió, através da Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC), contando com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA.

Refletindo um momento de amadurecimento do audiovisual alagoano no avanço do acesso as políticas públicas direcionadas ao setor e no diálogo com as instituições públicas, esse amadurecimento não se dá apenas no contexto político, uma vez que essa edição da mostra de Tiradentes é a que mais receberá filmes alagoanos, junto a Cavalo, estão: A Barca (dir. Nilton Resende) na Mostra Foco, Trincheira (dir. Paulo Silver) na Mostrinha e Ilhas de Calor (dir. Ulisses Arthur) na Mostra Jovem.

Esse momento é fruto de um cinema que produz, em sua maioria curtas, com frequência há mais de 10 anos, em que Rafhael Barbosa com Km58 (2011) e O que Lembro, Tenho (2012), um dos filmes alagoanos de maior circulação em festivais e mostras pelo país, e Werner Bagetti com Exu – Além do Bem e do Mal (2012) e Interiores ou 400 anos de solidão (2012), são alguns dos filmes desses realizadores que contribuíram e contribuem para esse cenário que mesmo com o temor dos ataques praticados a cultura e principalmente ao audiovisual pelo governo brasileiro, faz o contexto em Alagoas parecer tão promissor.

Janderson Felipe e Leonardo Amaral: Como se deu a parceria entre vocês dois?

Rafhael Barbosa: Eu comecei a trabalhar com a Núcleo Zero há 11 anos. Primeiro como redator, e depois desempenhando algumas funções nos filmes da produtora. Mas antes mesmo disso eu atuei como repórter e tive oportunidade de entrevistar Werner e cobrir o Festival de Brasília de 2009, em que ele recebeu o Candango de melhor roteiro junto com Geraldo Sarno, pelo documentário Tudo Isto me Parece um Sonho. O primeiro filme que produzi foi Interiores ou 400 Anos de Solidão (2012). Ai começou a parceria que dura até hoje e culmina na codireção do Cavalo.

Werner Salles: Nossa parceria vem bem de antes de Cavalo. Já trabalhamos juntos há mais de 10 anos. E durante esse tempo sempre tivemos uma relação complementar, um respeito mútuo. E dividir a direção de Cavalo foi dentro desse processo de respeito e de complementaridade.

JF e LA: Como vocês se organizam para dividir a direção?

RB: Acho que nunca paramos para estabelecer como seria essa divisão. Foi um processo de acomodação natural, a partir das afinidades de cada um. Temos perfis profissionais distintos, que de certo modo se complementam. Eu costumo trabalhar como produtor e também como assistente de direção. Então naturalmente me aproximei mais da equipe de produção, do elenco, e da assistência de direção.

Já Werner tem uma experiência mais focada na direção, então talvez por isso esteve mais próximo da equipe técnica, pensando a fotografia, o som, os equipamentos que seriam utilizados, etc. Mas tudo foi discutido e consensuado.

WS: Tivemos muito tempo de planejamento e de pensamento sobre o filme. Encontros de pesquisa, de embates criativos, em que discutimos muito sobre o caminho estético e as escolhas cinematográficas do filme. Essa etapa de maturação foi a mais difícil em relação a codireção. Nunca é fácil dividir um processo criativo. A criação é algo muito pessoal. Esse período de maturação foi fundamental para aprendermos a abrir concessões, entender o processo e o tempo do outro. Algo que ajudou a finalmente concluir essa etapa foi a decisão de deixar o processo ser conduzido principalmente pela intuição. O roteiro de Cavalo é um roteiro feito com a intuição. Isso foi definidor para que a gente sintonizasse nossas antenas. Por isso a experiência no set foi muito harmoniosa e respeitosa.

JF e LA: Sabemos que Cavalo foi o primeiro projeto de longa contemplado em edital no estado, como foi o processo de início da ideia até de maturação do projeto? Como ser o primeiro longa incentivado por edital alagoano afetou o fazer fílmico?

WS: O fato de ser o primeiro filme alagoano feito com edital pesou menos que o fato de ser nosso primeiro longa. Foi uma grande escola para toda equipe, mas principalmente para nós diretores. Fazer um filme com recursos incentivados é uma responsabilidade enorme. Requer extrema perícia e cuidado. Tivemos contribuições fundamentais para conseguir realizar essa tarefa. Principalmente de Valeska Leão, que fez uma produção executiva muito profissional. O filme é dedicado a ela, com todo o mérito.

Eu lembro que durante a construção coletiva das primeiras políticas de fomento ao audiovisual em Alagoas se falou bastante sobre a questão do longa-metragem. Se estávamos preparados ou não. Se era mais produtivo investir o recurso em outras categorias. Mas quando o edital da prefeitura foi lançado com essa categoria, não havia mais o que discutir. Era uma demanda da gestão pública ter esse longa, e alguém o faria. Como só tinha uma vaga, a primeira decisão que tomamos foi a codireção. Decidimos que não iríamos competir. Estávamos trabalhando juntos e pensamos que seria mais estratégico unir esforços para encarar o que seria o maior desafio de nossas carreiras até então.

O dilema seguinte foi escolher um projeto que contemplasse as buscas artísticas de ambos. Iniciamos uma pesquisa sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Avançamos, lendo livros, entrevistando estudiosos, reunindo o máximo de conteúdo possível. Seria um documentário clássico sobre o mito de Zumbi. Trabalhamos nele até a penúltima semana do prazo de inscrição do edital. Mas algo nos dizia que ainda não era aquilo. Entramos numa crise criativa, que foi resolvida quando surgiu a vontade de investigar a ancestralidade no contemporâneo. A ideia do Cavalo veio meio pronta e aceitamos muito rapidamente.

RB: Exu, curta de Werner que eu produzi em 2012, era um filme sobre um orixá ou uma entidade, sobre uma força espiritual. Porém, enquanto vivenciava o processo de pesquisa do filme, o que mais me interessava não era o sobrenatural, mas o humano. O aspecto psicossocial. A entrega daquelas pessoas que abdicavam de muitas coisas de suas vidas e cotidianos para emprestar o corpo a uma força externa. Há um conflito na mediunidade dos terreiros que é muito fascinante. As entidades da Umbanda são personagens subversivos que representam figuras oprimidas pela história brasileira: o caboclo indígena, o preto velho, a pomba gira, entre muitos outros. Junto com estes espíritos, os cavalos incorporam também o imaginário do país. Uma vez incorporados com uma outra persona, extravasam tudo que é reprimido na vida social. Nos terreiros eles experimentam as diversas faces da liberdade. A liberdade do corpo, da sexualidade, dos sentimentos. Liberdade que não é absoluta. Ao mesmo tempo eles precisam se submeter às vontades de suas entidades.

JF e LA: Vocês passaram muito pelo cinema documental e alguns filmes tocam no tema da questão religiosa de matriz africana, o que dessa trajetória de vocês se vê em Cavalo?

RB: A história de Cavalo começa quando Werner decidiu fazer o curta Exu – Além do Bem e do Mal (2012). Eu fui convidado para produzir e iniciei uma imersão no universo das religiões de matriz africana em Alagoas. Visitei diversos terreiros, conhecendo o cotidiano das casas, suas festas e ritos. Acho que todo mundo da equipe foi muito impactado pela experiência. Nenhum de nós tinha qualquer vivência com a temática. E Werner optou por fazer um filme de processo, de pesquisa, sem um roteiro muito pré estabelecido. Foi um processo de visitar, conhecer, conversar com os religiosos, filmar tudo que era permitido, com o máximo de respeito, e aos poucos ir descobrindo um mundo novo.

Para mim, particularmente, foi transformador. Ter um contato mais próximo com a riqueza da mitologia africana abriu os poros da minha sensibilidade para enxergar o mundo de uma outra maneira. Foi como se diversas coisas que eu não compreendia passassem a fazer mais sentido. Entendi melhor o conceito de identidade. Me senti mais brasileiro, mais alagoano. E passei a refletir sobre ancestralidade. Antes da experiência de Exu eu ainda não tinha refletido sobre a minha negritude.

WS: Nós dois somos jornalistas e trabalhamos com cinema. Encontramos no documentário um veículo para dar vazão ao nosso interesse pela pesquisa. Um trabalho que tem um pouco de etnográfico, mas também busca apreender os muitos signos que compõem esse universo a partir da linguagem cinematográfica. Desde Exu não paramos de pesquisar. E nossa pesquisa consiste principalmente em filmar. Ouvir com a câmera ligada. Aprender enquanto filmamos. Durante esse processo, que já chega há oito anos, temos desenvolvido uma parceria com pesquisadores e com as casas que nos receberam e abrem suas portas para nós. Essa relação tem proporcionado convites para registrar algumas atividades. Esses registros estão gerando nossos filmes. É uma pesquisa e um projeto artístico que segue proporcionando novos encontros.

Filmamos A Feijoada da Vovó Maria Conga em 2018, durante a pesquisa do Cavalo, e voltaremos ao tema em Utopia, nosso próximo longa em parceria.

JF e LA: Como a forma que vocês percebem a performance mudou antes e depois de Cavalo?

RB: A decisão de trabalhar o corpo como instrumento de expressão nos levou a pesquisar a performance. De Maya Deren a Pina Bausch, mergulhamos nesse universo que é muito potente artisticamente. É fascinante como o corpo pode comunicar, dizer, expressar sentimentos. A pesquisa também nos levou a descobrir artistas performáticos alagoanos que são extremamente talentosos. Alagoas possui um cenário muito rico nas artes cênicas. Existe uma tradição na performance, e também no cinema que se utiliza desse recurso. Cavalo chega para somar a esse movimento que talvez seja um dos caminhos de linhagem mais marcantes do cinema alagoano.

WS: A experiência de trabalhar com a performance, com o ator no palco ou performando na cidade, reforçou uma vontade antiga de trabalhar com o teatro. Temos algumas premissas para espetáculos de teatro e essa vontade está mais viva do que nunca. O próprio Cavalo pode vir a derivar uma experiência expandida de artes cênicas. Conversamos com o elenco e com os preparadores Glauber Xavier e Flávio Rabelo. Se tivermos oportunidade vamos dar continuidade a esse processo artístico.

JF e LA: Pelo teaser, podemos ver filmagens de locais como a rua das árvores ao mesmo tempo que outros não tão utilizados pelo cinema, como Maceió foi pensada para Cavalo?

RB: Uma parcela das locações foi determinada pelos personagens. Filmamos suas casas e entornos. Os bairros do Benedito Bentes, Pinheiro, Village, Garça Torta, a cidade de União dos Palmares, entre outros. Algumas outras locações foram escolhidas como cenário para as performances ou para o transitar desses personagens.

Conversamos muito sobre esse ponto de vista para a cidade. Queríamos de verdade revelar pontos de vista inéditos ou capazes de ressignificar o imaginário do sol e mar. A Alagoas de Cavalo definitivamente não é a do cartão postal. Mas isso também não quer dizer que nosso objetivo era mostrar miséria. O filme tem muita beleza e plasticidade.

Filmamos locações impressionantes. Uma sequência muito especial foi filmada no Porto do Sururu, em Santa Luzia do Norte, uma locação que nos transportou para o cinema de Apichatpong. Em Coqueiro Seco filmamos algumas outras sequências muito fortes visualmente. As margens da lagoa foram muito exploradas. Em Fernão Velho filmamos uma das cenas mais lindas do filme.

Em Maceió, filmamos a Rua das Árvores, a Avenida da Paz, a Praça Sinimbu e outras ruas do Centro.

WS: A cidade, a espacialidade diz muito sobre quem somos. Os personagens trouxeram isso para o filme, mas o filme traz isso também para a cidade. É uma Maceió vista de outros ângulos.

JF e LA: Qual o desafio em falar sobre e divulgar um filme tão híbrido entre a ficção e o documental?

RB: Isso é algo difícil até na hora de fazer inscrição em festivais. Alguns só apresentam as opções documentário ou ficção. Em Tiradentes Cavalo está classificado como “experimental”. Por ser uma linguagem que não é tão difundida, no geral as pessoas estranham mesmo. Ele também é documentário, e também é ficção. O clímax do filme se entrega ao fantástico. Existe o aspecto interessante que é sempre provocar o espectador. A linguagem do filme faz isso, então o desafio está posto.

WS: Classificamos o filme entre a ficção, o documentário e o experimental. É um flerte com o cinema de poesia também.

JF e LA: Devido ao tempo entre aprovação e pagamento ocorreram grandes mudanças no que estava proposto para ser o filme?

WS: Aconteceram algumas mudanças importantes. A primeira versão do roteiro, que foi contemplada no edital, tinha apenas três personagens. Durante o desenvolvimento começamos a pensar em ter apenas um protagonista, e foi nessa fase que decidimos que ele seria um dançarino. Abrimos o processo de pesquisa de elenco em busca desse protagonista. Aí vieram os testes e conhecemos diversos personagens incríveis, com histórias que nos impactaram. E todos eles eram dançarinos extremamente talentosos. Depois dos testes decidimos que não teríamos nem um, nem três protagonistas, mas sete.

RB: Essa foi uma decisão muito difícil. Sabíamos que seria um desafio narrativo muito grande contar sete histórias, apresentar satisfatoriamente sete personagens. Encaramos quando chegamos ao conceito de trabalhar os sete personagens como sete partes de um mesmo arquétipo, que é cavalo.

Bastidores do set de Cavalo. Foto: Vanessa Mota

JF e LA: Qual a importância para vocês de iniciar a trajetória do filme nesse festival? Quais as expectativas para a sessão de lançamento em Tiradentes?

RB: Eu sempre acompanhei com atenção a trajetória de filmes que estrearam em Tiradentes. É um festival que tem esse recorte do cinema de invenção, que me interessa bastante. Então o sentimento é que Cavalo está em casa. Acredito que ele será bem acolhido. Tiradentes também tem uma presença forte de críticos de cinema, o que faz com que a passagem do filme por lá seja ainda mais recompensadora. Eu comecei minha carreira cobrindo festivais e escrevendo sobre cinema. Tenho grande respeito e admiração pela crítica. E penso que a recepção do filme vai muito além do gostar ou não gostar. Já recebi muitas críticas positivas e negativas dos meus filmes, e em ambos os casos aprendi com as experiências. Sem dúvida lerei todos os textos sobre o Cavalo com muito interesse.

WS: Estaremos em Tiradentes com uma boa parte da nossa equipe, e com todo o elenco. Alguns deles nunca estiveram num festival de cinema. Estaremos também com uma comitiva alagoana de mais de 30 pessoas, representando os quatro filmes do estado presentes no festival. Certamente será um momento muito especial para todo mundo.

JF e LA: Pensando em projetos futuros, vocês foram mais uma vez contemplados no último edital da Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC) de Maceió, dessa vez com uma animação, sendo o primeiro longa-metragem desse tipo contemplado em edital, como surgiu a elaboração do projeto de Utopia?

RB: Utopia é o desenvolvimento do projeto que faríamos antes de surgir o Cavalo. Antes seria um documentário sobre O Quilombo dos Palmares, mas o projeto evoluiu para uma animação. Ele foi muito influenciado pelas experiências que vivemos em Cavalo e também pelas pesquisas de animação que temos feito junto com o Weber Salles Bagetti e o Maurício Nunes, que são os animadores do filme. É preciso uma boa dose de coragem (ou de loucura) para fazer um longa-metragem de animação e também para contar uma história tão icônica para o imaginário brasileiro.

WS: Utopia é um projeto ambicioso. Queremos fazer um épico de resistência, pop e contemporâneo. Um filme com potencial para dialogar com um grande público. Mas temos consciência da dimensão do desafio que temos. Vai demandar muita pesquisa e diálogo com quem reflete sobre o legado de Palmares na contemporaneidade.

Deixem suas minibios aqui.

Rafhael Barbosa

É graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas. Atuou como repórter, curador de mostras, produtor cultural e redator publicitário. Realizou os filmes Chimarrão, Rapadura e Outras Histórias (2008); KM 58 (2011), e O que Lembro, Tenho (2013), curta selecionado para cerca de 30 festivais brasileiros e internacionais, e vencedor de 20 prêmios. Também dirigiu os documentários Tempo de Cinema (2014), Jangada de Pau (2014) e A Feijoada da Vovó Maria Conga (2018). Além dos trabalhos autorais, atuou como produtor em diversos curtas e médias-metragens. Cavalo é seu primeiro longa-metragem. Atualmente trabalha na pré-produção de Olhe para Mim, projeto contemplado na linha de Arranjos Regionais do FSA – Fundo Setorial do Audiovisual, por meio do Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas.

Werner Salles

Jornalista, documentarista, roteirista e designer gráfico. Escreveu e dirigiu dois documentários vencedores do programa DocTV: Imagem Peninsular de Lêdo Ivo (2003) e História Brasileira da Infâmia – Parte 1 (2005), e Interiores ou 400 Anos de Solidão (2012, projeto contemplado no prêmio Petrobras Cultural), EXU – Além do Bem e do Mal (2012) e A Feijoada da Vovó Maria Conga (2018). É vencedor do Troféu Candango no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro pelo roteiro do documentário Tudo Isto me Parece um Sonho, dirigido por Geraldo Sarno. Cavalo é seu primeiro longa-metragem. Atualmente prepara a produção do longa-metragem de fição Miami, projeto contemplado na linha de Arranjos Regionais do FSA – Fundo Setorial do Audiovisual.

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