Crítica: A Morte Branca do Feiticeiro Negro (dir. Rodrigo Ribeiro)

Texto: Leonardo Hutamárty. Revisão: Larissa Lisboa. Imagem: divulgação.

Numa abordagem experimental, A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020) se vale da carga pungente do seu material de arquivo para assentar um olhar sobre as marcas históricas dos apagamentos da diáspora africana. O ensaísmo da abordagem ocorre por meio da representação formal de certo deslocamento constrito – tanto no espaço quanto no tempo – e da simulação sensorial do sofrimento (sonoplastia e super exposição fotográfica). O filme de Rodrigo Ribeiro também reflete sobre a nostalgia profunda que, no Brasil, conduzia os povos negros escravizados a uma morte voluntária, e que se conhecia por banzo.

Para Gilmara Santos Mariosa, há muito que os negros neste país estão por perder os seus territórios culturais, espaciais e geográficos. São perdas que se iniciam na África, com o processo de colonização, e permanecem após a diáspora. Não raro, atualmente presenciamos terreiros, quilombos e demais territórios de identidade negra sendo invadidos, deturpados ou desvirtuados. Sob a conjectura, é que a decupagem do curta parte das imagens de películas em P&B do passado para o cromatismo digital da contemporaneidade; das antigas filmagens de velhas vilas movimentadas aos recentes registros de sepulturas de cemitérios; das fazendas dentro da serra à grande Salvador moderna; do enquadre da obscuridade da terra que simboliza a vida ao plano da branquidão do céu que representa a morte.

Posto que o meio e os locais de origem são referências para a construção das subjetividades, e a perda dos territórios é o que afeta diretamente a identidade de determinado povo; esse deslocamento no tempo e no espaço diegético atua em função de transportar o olhar ancestral – um olhar familiar, diletante e atemporal, que também enquadra moradas, cativeiros, famílias e retratos –, fazê-lo assim presente. Por outra via, calha a simulação sensorial da dor e do lamento através da trilha sonora (maior apelo do filme), que se aproveita de seu artifício sinestésico, do feito de seu “gemido” inacabável, para expressar uma ideia quase que metafísica sobre a memória dos povos de origem africana. Ideia igualmente substanciada pela aparição de imagens autênticas de escravos – semelhantemente às de judeus em campos de concentração –, são imagens condicionadas a atiçar o olhar, tal como fossem registros genuínos de espectros.

A partir da legenda, que é lócus da ignescência do filme, cuja cadência acompanha esse zunido enigmático (esse eco das profundezas do inferno) na condição de trilha, ao invés de uma presumível narração (de uma fala), é que se dá a ideia formal de silenciamento. À medida que tal ideia se configura por meio da ausência da narração; contrariamente a ela, as palavras da carta de suicídio de Timóteo, negro escravizado que morreu em Salvador no ano de 1861, evidenciam o significado do banzo, além dos processos perversos da escravidão, e perpassam a tela como um soco no estômago. São palavras que despontam, através de um português arcaico, a condição e o estado de depressão psicológico do homem que existiu apenas para ser subjugado por um outro, que foi falsamente acusado, que provavelmente sentiu na pele todo tipo de violência e punição, e, não mais enxergando um sentido na vida, optou pela morte.

Ao passo que a nostalgia é uma experiência humana idealizada que nos permite lidar com o afastamento da terra natal, ou seja, com os sentimentos da perda e da falta; o banzo é o desgosto profundo causado pelo afastamento violento da África e pelo cativeiro – daí as senzalas, as câmaras escuras e os casarões antigos, a remeterem à fotografia de Nuit et brouillard (1955), captados como monumentos da consternação –, é o sentimento que conduz o sujeito ao extremo ato de comer vidro, de tomar solimão (veneno), de pendurar uma corda ao pescoço, ou de saltar no mar para se afogar. Assim, por não ser idealizado e só ser possível de superar no campo físico, o banzo é a nostalgia que mata.

De modo a contribuir para sua unidade estilística, a escolha formal pelo arquivo também acaba por ser uma forma de preservar do passado algo que já se mantém vivo na consciência. Uma vez que o banzo é a manifestação psicológica proveniente dos apagamentos da diáspora africana, isto é, da perda dos territórios culturais e espaciais (e que ainda permanece) dos povos pretos escravizados, e dado que o “retorno” à África já não é possível; os ritos, as narrativas, as representações em registros e as redescobertas de arquivo, portanto, são meios capazes de fazer com que esses territórios perdidos se constituam.

Por isso, da câmera o assentamento do olhar nostálgico – mas também cheio de terror – sobre os terrenos e as figuras fantasmagóricas, isto é, um olhar que exprime a si mesmo sobre as marcas da história que o circunda, e que mais está interessado na força impressiva desses espaços e nas suas possíveis ressignificações simbólicas do que numa mera documentação. Daí também as imagens que enquadram figuras desconhecidas (de corpos tão pretos ou tão brancos) que aparecem e desaparecem: já que ao lado das lembranças jaz o esquecimento. Figuras em gestos enigmáticos e situações sugestivas (de enforcamento, de sujeição); terras e cantos que se assemelham e dos quais o olhar não se origina, mas tão somente padece.

N’a morte branca do feiticeiro negro o olhar ancestral, dentre os planos de intensa claridade e os de forte obscuridade, é constituído de apreensão, tormento e martírio. A liberdade da decupagem é a que parte do diletantismo da captura, dissimula-se na montagem e se integra no conteúdo temático. À proporção disso tudo é que a verbalização resigna o seu espectro; mas não para ser ao final um filme testamento, pois, composto na dimensão sensorial, o seu manifesto é o que persevera.

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