Crítica: A Última Carta (dir. Eduarda Marques e Sérgio Onofre) e Coração Sem Freio (dir. Cris da Silva e Hallana Lamenha)

Texto: Lucas Litrento.

SINCERIDADE.

É permitido mentir na arte. Para alguns chega a ser obrigatório, a arte como exercício da construção de um outro. O documentário mais quadrado como ficção porque é um recorte. O cinema é uma colcha de retalhos mentirosos. O contraste é que, paralelo a isso, em determinados filmes pulsa um elemento oposto: a sinceridade. Explícita em todos os elementos estruturais do filme, ela desnuda a relação simbiótica entre criador e criatura. Essa força é o ponto-chave que diferencia dois filmes exibidos na IX Mostra Sururu: A Última Carta, dirigido por Eduarda Marques e Sérgio Onofre, e Coração Sem Freio, de Cris da Silva e Hallana Lamenha.

Ambos os filmes são produções sem grande orçamento, oriundos de projetos de cinema com estudantes de escola pública. Roteiro, direção, produção, trilha sonora, atuação; tudo pelos alunos e alunas. Para muitos, mais que um exercício: a primeira experiência no audiovisual.

A Última Carta começa como uma história de amor onde o acaso une dois jovens, um casal interracial sem muita química que logo se apaixona. As saídas pela noite de Penedo ao som de uma trilha sonora genérica logo são interrompidas por uma gravidez indesejada e uma oportunidade de emprego em outra cidade. A partir desse ponto sem volta, o melodrama leva as personagens para uma espiral de tragédia construída sem bases sólidas.

O filme parece uma obra podada. Ao mesmo tempo que tenta se engajar numa discussão da pauta progressista, cai em lugares comuns do moralismo barato e evita dar complexidade aos temas que levanta. Há o discurso na sua superficialidade. Até o texto com números alarmantes sobre aborto exibidos antes dos créditos finais perde o impacto, se torna gratuito.

Não digo que o assunto é complicado demais para os jovens. Não mesmo. Nós vivemos isso diariamente, são pautas caras e familiares. O problema está na coordenação do projeto que não soube liderar os meninos e meninas, que não os deixou livres o suficiente. Já é estranho ver o nome de Onofre na direção, mais estranho soa o resultado final: uma amálgama de discursos vazios, apenas tentativas.

Por outro lado, o curta contemplado com a menção honrosa pelo júri oficial é construído com base na sinceridade e no desejo de fazer cinema, puro e simples. Coração sem Freio faz jus ao título. A cada cena parece que vibra alguma coisa inominável no mesmo ritmo acelerado da protagonista Débora (Ana Carolina Santos). A menina vive o caminhar turbulento que é a passagem da infância para a adolescência e o filme mostra, de forma cômica e onírica, as descobertas das primeiras paixonites.

Como toda jovem da sua idade, Débora tem a mente fértil. E as diretoras exploram essa imaginação para criar cenas de sonhos e delírios que a menina tem enquanto caminha até a escola ou no meio da biblioteca. Todos os delírios envolvendo Brian (Alex dos Santos), o crush da menina. Parece simples, e é, mas o incomum é que o filme, por mais infantil que soe, parece apresentar uma história baseada em arquétipos contemporâneos.

Sim, histórias de amor são as mais batidas em todas as artes. Romeu e Julieta, Sansão e Dalila, Werther, todas as novelas das seis e 80% das músicas que tocam nas rádios; até no rap falam de romances. O especial em Coração Sem Freio é que o curta parece amarrar no seu pouco tempo de tela uma série de dramas e situações vivenciadas pelos jovens da nossa geração. É a decepção amorosa, a expectativa, os planos criados, o amor passageiro, os novos crushs. E a dupla de diretoras consegue jogar tudo isso de forma natural, sem precisar cair em discursos baratos. É a história, apenas. O controle da fábula, que não se alicerça em moralismos e complexidades, é total.

Não poderia ser por menos. No filme (visível porque ressoa, salta da tela) está clara a energia de todos os alunos que participaram do projeto, que também teve como resultado o ótimo No Outro Dia (dir Ester Lima e Vanessa Geovana), exibido no último dia da Mostra. A energia do sincero, do verdadeiro, porque todo o controle criativo foi centrado nas mãos das crianças. A inocência e bom humor da protagonista também vem de dentro das diretoras e roteiristas, de todos os atores e atrizes.

É por isso que o público se encantou tanto com Coração Sem Freio. O filme não precisou apelar para cenas que parecem ensaios do próximo capítulo de Malhação. Em Coração há até o flerte com o gênero trash, com o absurdo do cômico. A sua grande força é a maior fraqueza de A Última Carta. As obras são parecidas, mas não vibram do mesmo modo. Porque parece faltar no curta de Penedo algo essencial, também inominável, que sobra na comédia romântica das meninas do Salvador Lyra.

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