Crítica: A Vida Invisível (dir. Karim Aïnouz)

Tentativa de liberdade e sufoco da prisão social. Tentar ser quem se é, acolher o desejo, a possibilidade do gozo… E terminar louca, queimando os signos do que era mais valioso nessa tal tentativa de ser. Intelectualmente excluída, mesmo depois de tanta resistência. Mesmo com a tal resiliência: Silenciada.
A potência dramatúrgica de uma narrativa focada em duas mulheres que consegue mostrar como as camadas cotidianas de violências determinam nossas vidas. O privado, que ninguém vê. Aquele, que quando a gente fala duvidam, chamam de exagero ou hipersensibilidade. Sim, este filme dirigido por um homem consegue expressar silenciamentos porque se compromete com o protagonismo feminino. “… o que as mulheres vivem em nossa sociedade é uma guerra”, diz o cearense Karim Aïnouz.
E essa consciência está presente em cada detalhe de A Vida Invisível. É um cotidiano de tensões e belezas, e a brutal e delicada direção de arte fala disso. É a árvore de natal como lâmpadas robustas numa casa esquecida pela lei e peixes se movendo num aquário moral antiquado de perdas e expectativas. Há um compromisso em destacar a jornada que começa com a primeira corda enrolada ao nosso pescoço, a de gênero. Desde antes de perdemos o materno cordão umbilical, é o quarto azul e a barriga pontuda. É o “porque mulher como tu tinha que está trabalhando em outro lugar”. O dedo social em riste nos apontando a trilha tortuosa.
Os planos fechados, não sei se pela dificuldade técnica em reproduzir um Brasil antigo, ou pela escolha da sensação claustrofóbica do destino social. Por uma ou outra coisa, afeta. Me lembrou o controverso Mãe (dir. Darren Aronofsky), apenas por esse lugar do bíblico e catastrófico, do verde, da presença da natureza e da decadência do concreto e cimento, paredes descascando, da pia que acabou de ser chumbada mas todos sentam em cima sem ouvir o apelo feminino, do amor e da dor. Não pode viajar, não pode abortar, se viver, Deus castiga. Com esse Deus aí, o destino dessas irmãs só se resolve com a tragédia da morte. É preciso a mãe, o pai e o tempo morrerem, para assim, alguma possiblidade de encontro se concretizar. Dentro do tecido construído na trama, nítido que seus corpos não se tocariam. Elas não teriam um final feliz. Ah, para alguém talvez tenha sido feliz esse final.


A mulher moralmente restituída. Ambas se tornaram parte de famílias dignas de respeito. Mas será? Como essas representações arquetípicas são apresentadas? O núcleo que a primorosa Fernanda Montenegro protagoniza abarca um humor suado. Todos numa expressão de decadência e ansiedade semelhante ao que vivemos em 2019. Uma infantilidade e descontrole emocional, o país não está bem, mas quem que está? A jornada clássica do herói (dessas heroínas) nos levou de volta para o emaranhado social do minhocão de Central do Brasil. Essas personagens, em toda sua trajetória, nos remexem lá fundo, perguntando, quais são nossos valores, o que é uma família e a ética familiar?
A persona atriz que existe em mim e assiste esse filme precisa destacar quão primoroso é o trabalho dessa equipe. Julia Stockler e Carol Duarte, olhem, dentro de minha pequenez, tudo funciona! A humanidade está pulsante. As relações mínimas, frívolas, e tudo de contraditório, expandem-se à luz da narrativa. E talvez, aí esteja um dos trunfos. O melodrama precisa da arte dramática. Sem entrega, não há trama que funcione. A trajetória de Carol Duarte (Eurídice), vai consolidando uma atriz que se rasga e se remenda, como Guimarães Rosa diz que a vida é. E assim, ela faz aquilo que é de mentira, vida ser.
Os personagens masculinos são multifacetados, desde o bonachão funcionário público do Duvivier, que nos faz duvidar da possibilidade de um sexo gostoso, ao pai conservador (António Fonseca) e dependente da esposa (Flávia Gusmão). Conseguimos rir e odiar. Ter empatia e nojo. E nessa dualidade humana, o que une os personagens desse gênero, é a transversalidade das violências. Não há um homem, no filme inteiro, que passe sem se mostrar um catalizador de dor. E Chico, o filho, é colocado como “um homem bom”. O filho da dor. O filho da separação das irmãs. Só brota uma questão em mim: Até quanto o “homem bom” precisa ser regado pela dor feminina pra florir?

No final das contas, esse foi o longa brasileiro que despretensiosamente marcou meu ano. E olha que 2019 teve Bacurau (dir. Kleber Mendonça Filho), Marighella (dir. Wagner Moura), Divino Amor (dir. Gabriel Mascaro), Marés (dir. João Paulo Procópio), Democracia em Vertigem (dir. Petra Costa)… Filmes que querem desvelar algo, e demonstram querer mesmo. Mas escrevo aqui com paixão e posso estar cega. Sempre podemos. Mas escrevo, porque cinema e critica também é sentimento, risco, vulnerabilidade, por mais que certas vertentes políticas queiram transformar em cátedra, norma e ordem. A gente que sente superando o pudor, segue resistindo. Porque sensibilidade é palavra que tem que ser resgatada em sua essência, na raiz etimológica: derivada de sensível, do Latim SENSIBILIS, de SENSUS, particípio passado de SENTIRE, “perceber, sentir”.
E esse filme faz isso sem medo do exagero do sentir, do se lançar nesse abismo sensorial que é criar universos para telas em movimento.

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