Crítica: Adão, Eva e o Fruto Proibido (dir. R. B. Lima)

Texto: Céuva. Revisão: Larissa Lisboa.

Coluna Críticas Transcinematográficas

E eu, não posso ser uma mulher? Quando Letícia Nascimento confronta a égide da mulher, na defesa do transfeminismo, ela cria uma nova formulação do mito. Ao longo da história, os mitos de criação são associados a entidades masculinas conhecidas apenas pelo início do ciclo, entre vertentes cabalísticas é da energia masculina o papel de, apenas, semear. Pensando um corpo sexuado masculino a experiência social se ata, majoritariamente, à normativas dogmáticas de domínio e controle. O espaço do cuidado, do apreço, do amor, do carinho, e todas as atividades decorrentes deste lugar, para além da de genitora, são então entregues à mulher, na qualidade de mãe.  

Ela sai. Vai em busca dele no ponto de ônibus, e enquanto por segundos, parada, acompanha a redenção, abaixar a cabeça e continuar caminhando. Ela o segue de volta, atrás dele. Lhe dando espaço, ao passo que assegura seu bem-estar num ato quase instintivo. 

Tem uma coisa muito curiosa na síntese social da travesti. Quando se entende enquanto travesti, a corpa assume, além do imaginário social sobre o que se é, o dever de manter viva as formulações subjetivas de corpas dissidentes anteriores às nossas. As quais a experiência masculina é reformada, adequada e partilhada com a experiência feminina de coexistir, e unem-se a uma criação única, de disforme padronagem e de variada existencialidade. No exercício de ser travesti, a maternidade se projeta na relação de cuidado que há entre nossas semelhantes, esses trans-afetos pautam o apreço, o amor e o carinho que temos justamente por comunicarmos as mesmas dores. Mesmo não sendo encaradas como mães nosso papel social embutido neste cuidado ganha outras denominações, que pouco referenciam essa experiência supostamente cis. Mas, e eu, travesti, não posso ser mãe?  

Interrompido, invadido, atravessado. Aparentemente sem rumo fácil, ele precisa estar. Como alguém que recebe, ama e quer, ela declara: – Eu posso não ser o pai que tu queria, mas eu vou tentar ser a melhor mãe que tu poderia ter.

O mito da mãe travesti – que é ao mesmo tempo quem semeia e quem cuida nessa experiência de maternidade, entre aspas¹, “cis” –  é um mistério, que apenas sabemos que existe e que aconteceu, numa narrativa sobre dois indivíduos que não se conhecem, mas que estão juntos pela aparente necessidade e aprendem um com o outro a construir em ambos o real sentido de família, um outro lugar de mistério em muitas trajetórias travestis. Uma relação que aos poucos se mostra perpendicular e que apresenta esse lugar do cuidado e do carinho, mesmo que meu olhar se interesse pela rotineira jogadinha de ombro do brega funk, ainda assim a manutenção desta não-obrigação, amor, é tocante, e vem acompanhada de uma fotografia belíssima, monas.

As cores sólidas com planos fixos e poucos movimentos de câmera trazem a sensação de como a relação deles é construída, além de ambientar um olhar da narrativa que em muito se divide ao colocar um na vida do outro. Adão, Eva e o Fruto Proibido, de direção de R. B. Lima, entrega um enredo que abre caminhos para interpretações múltiplas da realidade que apresenta, e deixa a cargo do espectador explorar o não dito dessa história e imaginar as memórias que essa travesti e mãe carrega para passar 15 anos afastada de seu filho e estar a uma vida inteira querendo ser mãe.

NOTAS:

¹ – Está escrito para dar ênfase.

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